Dossiê temático: "Proteção social e direitos humanos"

Serviço Social, Assistência Social e Proteção Social: Entrevista com a Professora Ivone Pereira da Silva

Social Service, Social Assistance, and Social Protection: Interview with Professor Ivone Pereira da Silva

Servicio Social, Asistencia Social y Protección Social: Entrevista con la profesora Ivone Pereira da Silva

Ivone Pereira da Silva 1
Brasil
Alan de Loiola Alves 2
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), Brasil
Rosemeire dos Santos 3
Universidade Federal de Tocantins, Brasil

Serviço Social, Assistência Social e Proteção Social: Entrevista com a Professora Ivone Pereira da Silva

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 25, núm. 2, e25220559, 2023

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

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Recepción: 01 Mayo 2023

Aprobación: 12 Mayo 2023

Publicación: 31 Agosto 2023

Resumo: Ivone Pereira da Silva é Assistente Social, formada em Serviço Social - Faculdades Metropolitanas Unidas (1978). Mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1995). Trabalhou como Assistente Social na Prefeitura de São Paulo, por mais de 30 anos. Tem experiência na área de pesquisa, com ênfase nos temas: assistência domiciliar, cuidador familiar, assistência social e idoso dependente. Dedica-se a aprofundar na política de assistência social e na pesquisa nesta área. Tem experiência como docente na graduação e especialização em Serviço Social. Lecionou por 19 anos em ensino superior. Atualmente encontra-se aposentada.

Palavras-chave: Serviço Social, assistência social, direitos humanos.

Abstract: Ivone Pereira da Silva is a Social Worker, graduated in Social Work - Faculdades Metropolitanas Unidas (1978). Master in Social Work from the Pontifical Catholic University of São Paulo (1995). She worked as a Social Worker at the São Paulo City Hall for over 30 years. She has experience in the research area, with emphasis on the themes: home care, family caregiver, social assistance and dependent elderly. She is dedicated to delving into social assistance policy and research in this area. She has teaching experience in graduation and specialization in Social Work. She taught for 19 years in higher education. She is currently retired.

Keywords: Social Work, social assistance, human rights.

Resumen: Ivone Pereira da Silva es Trabajadora Social, graduada en Trabajo Social - Facultades Metropolitanas Unidas (1978). Máster en Trabajo Social por la Pontificia Universidad Católica de São Paulo (1995). Trabajó como Trabajador Social en la Municipalidad de São Paulo durante más de 30 años. Posee experiencia en el área de investigación, con énfasis en las temáticas: cuidado domiciliario, cuidador familiar, asistencia social y anciano dependiente. Se dedica a profundizar la política de asistencia social y de investigación en este ámbito. Tiene experiencia como docente en la graduación y especialización en Trabajo Social. Enseñó durante 19 años en la educación superior. Actualmente está jubilada.

Palabras clave: Trabajo Social, asistencia social, derechos humanos.

Entrevista

Alan de Loiola Alves & Rosemeire dos Santos: Professora Mestre Ivone Pereira da Silva poderia nos contar como foi seu encontro com o Serviço Social?

Ivone Pereira da Silva: Aos 19 anos de idade tive muitos questionamentos sobre qual profissão eu deveria seguir. É mais ou menos quando você se pergunta o que quero fazer para o resto da vida. Não é assim que funciona para todas as pessoas, mas foi o que aconteceu comigo. Busquei informações sobre duas profissões: Assistente Social e Socióloga. Após pesquisar sobre o que tratava o curso superior de ambas as profissões, me identifiquei mais com o Serviço Social. O que me atraiu nessa profissão foi a exigência de um profissional que tem uma ação direta e comprometida com as demandas das pessoas mais vulnerabilizadas. É evidente que ao longo da minha vivência profissional essa visão inicial foi ampliada, pois não se trata apenas das demandas materiais, mas também das imateriais. No processo de graduação e, especialmente durante os períodos de estágio fui totalmente conquistada pelo Serviço Social. Ao longo do exercício profissional tanto como Assistente Social quanto docente nosso encontro (“eu e o Serviço Social”) foi arrebatador. Essa é a palavra que resume tudo.

Assim, que conclui o curso de Serviço Social nas Faculdades Metropolitanas Unidas (FMU) fui convidada pela Professora Maria Lúcia Martinelli, que era a então diretora do curso, para ser a sua Assistente de Direção. Permaneci nessa função entre 1979 e 1984. Aprendi muito sobre as mudanças curriculares de 1982 implementadas pela então Associação Brasileira de Escolas de Serviço Social (ABESS). Cada ano tínhamos que fazer o planejamento da grade horária de professores adequada às mudanças. Participei de alguns encontros promovidos pela ABESS sobre mudanças curriculares articuladas a uma proposta de exercício profissional junto à realidade social na perspectiva em se formular respostas profissionais de acordo com as demandas.

O III Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais (1979) com o tema “Serviço Social e Política Social”, provocou um movimento de inflexão do Serviço Social levando a uma profunda alteração na formação e no exercício profissional do Assistente Social. A minha inscrição neste evento foi franqueada pela pelas FMU, por iniciativa da Profa. Maria Lúcia Martinelli.

A Comissão Organizadora do Congresso tinha elaborado uma programação e escolhido como o Patrono do Congresso o Presidente João Baptista de Oliveira Figueiredo (1979 a 1984). Este foi o último governo da ditadura militar que se iniciou em 1964. Uma parte dos Assistentes Sociais liderados pela Luiza Erundina de Sousa questionou o formato do evento e principalmente, o patrono definido para o congresso. A crítica foi pertinente, pois estávamos homenageando um ditador que havia declarado que “O cheirinho dos cavalos é melhor do que o do povo”. Para destituir esse patrono do Congresso, uma faixa foi estendida à frente da mesa diretora com os seguintes dizeres: “Todos os trabalhadores brasileiros que lutaram e morreram pelas liberdades democráticas”. Alguns sindicalistas foram chamados para fazer parte dos debates, como o então líder metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva que ocupou a mesa principal do Congresso. Nesse momento histórico, também se definia a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) face à pressão popular pela abertura política. Luíza Erundina de Souza assumiu a liderança dos debates para mudar os rumos do Congresso em uma assembleia realizada em um dos auditórios do Anhembi. Os Assistentes Sociais reivindicavam mudanças substantivas no conteúdo e na coordenação dos debates. É evidente que a mudança de rumo foi articulada politicamente para essa intervenção no Congresso. Mas o clima de animosidade esteve presente durante a realização do Congresso, especialmente daqueles congressistas que discordavam das alterações na programação, como por exemplo, a realização das visitas técnicas previstas.

Este Congresso foi um marco no sentido de romper com a tradição conservadora para um Serviço Social articulado aos segmentos que lutavam pela democracia e comprometido com as demandas dos trabalhadores, operando uma contribuição decisiva na transformação da dinâmica profissional no país. O exercício profissional passa a ser compreendido como uma prática politicamente engajada e comprometida com as classes trabalhadoras e com os movimentos sociais e sindicais, além de ser partícipe da classe trabalhadora, considerando que o Assistente Social é um trabalhador assalariado. É importante destacar que essa direção não foi incorporada por toda a categoria de forma hegemônica. Uma grande parte manteve-se alienada em face ao quadro político do país, ou seja, uma prática omissa em relação à ditadura militar. Mas o monopólio conservador foi quebrado no interior da categoria, emergindo um contingente de profissionais alinhados a uma visão crítica de Estado e da sociedade capitalista, contribuindo decisivamente para as mudanças que se seguiram no Serviço Social. Neste Congresso, foi lançado pela Editora Cortez, o primeiro número da Revista Serviço Social & Sociedade, permeado de artigos de autores (as) que já apresentavam uma leitura crítica da política social.

Em 1982, assumi como professora de estágio supervisionado no curso de Serviço Social das FMU. No primeiro momento estava muito insegura, mas aos poucos fui entendendo a importância do estágio na formação do estudante de Serviço Social, como projeto pedagógico, para além das questões burocráticas. Fiquei durante um ano nessa função e depois, permaneci apenas como Assistente de Direção.

Impulsionada pelos movimentos sociais e políticos nesse momento histórico, a categoria debateu exaustivamente o projeto de formação do Assistente Social. Participei de alguns encontros promovidos pelo então denominado Conselho Regional de Assistentes Sociais (CRAS) e pelo Conselho Federal de Assistentes Sociais (CFAS) para a construção do novo Código de Ética de 1986. Esse Código de Ética já incorporou uma abordagem teórico-crítica que embasa a formação e o exercício profissional.

Mas é no processo de construção do Projeto Ético-Político do Serviço Social, posteriormente foi aprovado O Código de Ética Profissional de 1993, a Lei de Regulamentação da Profissão, as Diretrizes Curriculares para o Curso de Serviço Social da ABEPSS, aprovadas em 1996, e posteriormente a Política Nacional de Estágio da ABEPSS, de 2009. São esses instrumentos que sustentam os pilares do Projeto Ético-Político do Serviço Social.

Em julho de 1980 participei do Curso de Política Social, promovido pelo Centro Latinoamericano de Trabajo Social (CELATS), instância acadêmica da Associação Latina Americana de Escola de Trabalho Social (ALAETS). O curso teve como tema central “O papel do Estado frente às políticas sociais”, sendo realizado em São Paulo. A barreira da língua e o pouco de conhecimento sobre o tema me permitiram constatar o quão precisava estudar para fundamentar a leitura sobre os textos de referência para os debates. Nesse curso estavam presentes alguns intelectuais como a Nidia Zuniga (Nicaraguá), Antonio Puerta (Colômbia) e os brasileiros Luísa Erundina de Souza e Ademir Alves da Silva. Posteriormente, tive a oportunidade retomar os estudos sobre os textos de referência na bibliografia do curso, o que nos fez entender um pouco melhor o debate sobre a Política Social na América Latina.

A entrada de novos professores no curso de Serviço Social das FMU, e principalmente no Departamento de Estágio, proporcionou a adoção de uma postura crítica em relação ao projeto de formação de Assistentes Sociais, provocando mudanças significativas na estruturação das disciplinas e na bibliografia de referência, melhor conectado com o debate que ocorria no interior da ABESS. A maioria desses docentes estava alinhada com as propostas políticas de Luísa Erundina de Souza. Alguns anos mais tarde, foi publicado um artigo na Revista Serviço Social & Sociedade, em que alguns desses professores entrevistaram a Profa. Maria Lúcia Martinelli, fazendo uma reflexão sobre aquele momento.

Enfrentei muitos desafios como Assistente de Direção do curso de Serviço Social das FMU. Construir a grade de horários, todos os anos, adequada às mudanças curriculares, era uma tarefa desafiadora. Algumas vezes desagradavam tanto professores como os alunos. É inegável que essa experiência foi decisiva para vislumbrar novos horizontes profissionais, como o desejo de me tornar professora do curso de Serviço Social. Que foi realizado alguns anos mais tarde.

Entre os dias 08 e 13 de dezembro de 1985 participei do 5º Congresso Brasileiro de Assistentes Sociais, no Anhembi, São Paulo. Este foi organizado pelo Conselho Federal de Assistentes Sociais (CFAS), pela Associação Brasileira de Ensino de Serviço Social (ABESS) e pela Associação Nacional Pró-Federação dos Assistentes Sociais (ANAS) demonstrando o quanto a categoria se tornaria uma força política, dando passos decisivos rumo à construção do Projeto Ético-Político da Profissão. Este Congresso foi realizado na esteira do movimento das Diretas-Já (1984), logo após a derrota da Emenda Dante de Oliveira no Congresso Nacional e, quando Tancredo Neves é eleito Presidente do Brasil, pelo Colégio Eleitoral. Com sua morte repentina, José Sarney assumiu a Presidência da República, após 20 anos de ditadura militar.

Em maio de 1984 iniciei um curso sobre a Teoria e técnica de Grupos Operativos no Centro de Investigação e Ensino de Psicologia Social, Institucional e Comunitária (CIE-Psic), atualmente, Centro Interdisciplinar em Psicologia Social, Institucional e Comunitária (INTERPSIC). Foi a primeira vez que fiz uma imersão na metodologia de trabalho com grupos, baseada na teoria de Enrique Pichón-Rivière. O curso de formação de Observadores e Coordenadores de Grupos Operativos foi realizado sob a orientação do Prof. Marcos Aurélio Fernandez Velloso. O referencial de Pichón-Rivière remete à compreensão materialista dialética do homem e do mundo e, da psicanálise e da psicologia social. Em 1988 conclui a minha formação. Simultaneamente, fiz um curso sobre o materialismo dialético e histórico, durante dois anos, sob a coordenação do Prof. Irineu Silva Junior, o que me permitiu compreender as concepções teóricas adotadas pelo curso de nucleação, bem como contribuiu para ampliar a visão crítica sobre a realidade social. Esse curso efetivamente supriu a lacuna do curso de Serviço Social, cujas disciplinas não haviam tratado da teoria crítica marxiana.

Um novo encontro com o Serviço Social, ou mais precisamente com a literatura mais atualizada, deu-se em função do concurso público para Assistente Social. Com a publicação do edital do concurso público para Assistentes Sociais na Prefeitura de São Paulo, em 1987, é que tomamos conhecimento da bibliografia mais recente do Serviço Social. Dentre os vários livros indicados estavam: “Relações Sociais e Serviço Social no Brasil: esboço de uma interpretação histórico-metodológica” (1982) de Marilda Iamamoto e Raul de Carvalho; “Assistência na trajetória das Políticas Sociais Brasileiras: uma questão de análise” (1985) de autoria de Aldaíza de Oliveira Sposati, Dilsea Adeodata Bonetti, Maria Carmelita Yazbek e Maria do Carmo Brant Carvalho; “O que é Política Social” (1985) de autoria de Vicente de Paula Faleiros; “Textos de Serviço Social” (1982) de Leila Lima Santos e “A Prática Institucionalizada do Serviço Social” (1982) de Rose Mary Souza Serra, dentre outros. O acesso a essa literatura, provocou uma alteração substantiva do nosso olhar para a formação e o exercício profissional.

Um conjunto de elementos contribuiu para fortalecer o meu exercício profissional. A preparação para fazer o concurso público, a atuação junto aos movimentos populares, os conhecimentos adquiridos no curso sobre grupos operativos e a retomada da literatura do Serviço Social foram cruciais para ampliar nossos horizontes profissionais e, sobretudo, nos permitiu uma leitura mais aprofundada e crítica sobre a prática profissional.

Um novo encontro com Serviço Social se deu quando decidi fazer o Mestrado na PUC-SP, dada a possibilidade em sistematizar o conhecimento acumulado ao longo da minha carreira. Anteriormente eu participei por seis meses do Núcleo de Pesquisa coordenado pela Profa. Ursula Karsch, que era responsável pela pesquisa “Estudo do Suporte Domiciliar aos Adultos com Perda de Independência e o Perfil do Cuidador Principal” que investigava a vivência do (a) cuidador (a) de pessoa idosa dependente acometida por Acidente Vascular Cerebral (AVC). Esse período nos deu os instrumentos necessários para a elaboração do pré-projeto de pesquisa e assim, participar do processo seletivo para o Mestrado, em 1993. Fui aprovada! O que me colocou em movimento foi o estudo de vários textos indicados na bibliografia. O processo de aprendizado foi intenso nesse período pelas disciplinas cursadas, pela participação do Núcleo de Pesquisa e, finalmente, pela construção da dissertação. Em 17 de novembro de 1995 conclui o mestrado, com o estudo denominado “As relações de poder entre o adulto dependente e a mulher cuidadora”. Em 1998, pude ter a alegria de ver publicada uma síntese do meu estudo, no Capítulo 4, do livro “Envelhecimento com Dependência: revelando cuidadores”, organizado pela Profa. Ursula Karsch.

O mestrado me deu algumas condições para o exercício da docência. Em 1996, iniciei minha caminhada no Curso de Serviço Social da UNICID, depois nas FMU e, por último na UNINOVE. Aqui considero um novo e feliz encontro com o Serviço Social. Lecionei por 19 anos e em 2017, me aposentei.

A vivência com a disciplina de Pesquisa em Serviço Social me permitiu participar da elaboração de um livro sobre metodologia, em parceria com mais três colegas docentes: Alex Moreira de Carvalho, Eleni Moreno e Francisco Rogério Bonatto. O título “Aprendendo metodologia científica: uma orientação para alunos de graduação” foi publicado em 2000, pela Editora O Nome da Rosa. A quarta e última edição foi publicada em 2006. Apesar de boa aceitação no mercado, não autorizamos uma nova edição, na medida em que a editora não concordou em fazer as atualizações necessárias, sobretudo quanto às normas técnicas.

Após a conclusão do mestrado, continuei no Núcleo de Pesquisa coordenado pela Profa. Ursula Karsch e, participei durante um ano, do NEMESS – Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre o Ensino e Questões Metodológicas em Serviço Social da PUC/SP, coordenado pela Profa. Maria Lúcia Rodrigues. Nesse participei de uma pesquisa denominada “A dinâmica da ação no trabalho cotidiano do Assistente Social”. A imersão na pesquisa nos dava mais combustível para o exercício da docência e para uma releitura da minha própria prática profissional.

A inserção nos núcleos de pesquisa encorajou-me a participar da seleção para o doutorado, o que acabou acontecendo em 1998. Eu cursei o doutorado entre 1999 e 2002, mas infelizmente não consegui concluir. Cumpri as exigências das disciplinas e conclui a coleta de dados da pesquisa, mas não finalizei a análise e a escrita da tese de doutorado, que tratava de um estudo sobre o atendimento domiciliar aos idosos dependentes e de suas cuidadoras. O recorte de gênero era o foco do meu estudo. Tranquei a matrícula porque não consegui ter a disponibilidade necessária para a escrita da tese, uma vez que naquele momento priorizei o meu trabalho na SAS-Penha, que já implementavam mudanças estruturais exigidas pela política de assistência social na cidade de São Paulo.

Em julho de 2001 eu fiz uma viagem de estudos para cidade do Porto em Portugal, onde durante 30 dias fiz várias entrevistas com os trabalhadores e trabalhadoras dos serviços de atendimento domiciliar implementados nas freguesias mais afastadas da região central desta cidade. Este trabalho foi acompanhado pela Profa. Fernanda Rodrigues, da Escola de Serviço Social do Porto, em Matosinhos. Fui bem acolhida pela Profa. Berta Granja, então diretora da Escola de Serviço Social do Porto, que gentilmente me cedeu uma sala com computador e acesso à biblioteca. Sou muito grata às professoras Fernanda e Berta pelo apoio para o desenvolvimento da pesquisa.

Como já sinalizei, a docência permitiu muitos encontros com o Serviço Social. Mas quero sinalizar que essa caminhada foi coroada com a vivência no curso de Serviço Social da UNINOVE, entre 2011 e 2017. Sou muito grata à equipe de professores, que demonstrou garra e compromisso muito grande com a formação qualificada dos estudantes em Serviço Social, além do empenho de cada um desses docentes com o cuidado das suas próprias formações, reforçando importância do Serviço Social no âmbito da pesquisa.

Alan de Loiola Alves & Rosemeire dos Santos: Professora pode nos contar como foi à trajetória na política de Assistência Social na cidade de São Paulo?

Ivone Pereira da Silva: No último ano do curso de Serviço Social, cuja formação era de quatro anos, iniciei o estágio na Supervisão Regional de São Miguel Paulista, vinculado à então Coordenadoria de Bem-Estar Social (COBES).

Em 1980 participei do processo seletivo para a função de Assistente Social. Naquela ocasião, ainda não havia obrigatoriedade de concurso público, que foi alterado com a Constituição de 1988. Comecei a trabalhar em fevereiro de 1981 e me aposentei em abril de 2011. É importante salientar que fiz o concurso público em 1988.

Entre os anos 1981 e 1988, a Assistência Social na cidade de São Paulo era voltada para o atendimento da população de 0 a 5 salários mínimos nas áreas de: assistência pública (benefícios e situações emergenciais), de habitação (implantação de água e luz e projetos de urbanização nas favelas), educação de adultos (antigo Mobral), educação profissionalizante de jovens e adultos (oferta de cursos profissionalizantes) e creches (estatal e conveniada) para crianças de 0 a 6 anos. Até esse momento a Assistência Social era voltada para a população com corte de renda definido, ou seja, estava longe de ser uma política pública de direito. Era destinada apenas a população pobre e carente e não para uma população beneficiária de uma política pública.

Havia uma pressão forte e contínua dos movimentos populares, sobretudo no que refere à moradia e creche. Eles exigiam prioridade no orçamento público (que era denominado orçamento-programa) para o atendimento de suas demandas nas reuniões e plenárias. Nosso trabalho era participar das reuniões nas comunidades para acolher suas demandas e, depois nas plenárias. Foi uma experiência que modificou substancialmente a minha leitura sobre a realidade social. Vivíamos ainda o processo de abertura política, mas os textos sobre o marxismo, sobre a luta do Araguaia e textos críticos sobre conjuntura eram proibidos e de difícil acesso. Algumas lideranças desses movimentos é que nos municiavam de informações, textos e livros, dentro de envelopes fechados para a leitura posterior.

Os movimentos de moradia eram os mais visados pela polícia repressiva. Para evitarem-se possíveis acessos aos seus dados ou processo de retaliação, tínhamos uma relação de cumplicidade com as lideranças desses movimentos, orientando as famílias que deveriam se recusar em responder ao nosso cadastramento. Nesse sentido, o grau de confiança dessa relação foi aumentando consideravelmente, o que permitiu a conquista de algumas respostas importantes para a luta por moradia.

Logo assumi também a Coordenação de Estágios, das mais diferentes áreas profissionais, que considero uma das experiências mais desafiadoras da minha trajetória profissional. Vários desses estagiários (as) foram contratados posteriormente, o que nos permitiu o fortalecimento das nossas relações profissionais face ao forte comprometimento com o trabalho. Nossa relação foi tão intensa que tenho a honra de gozar até hoje, da amizade de alguns deles.

A partir de 1984, assumi a Coordenação do Planejamento da Supervisão Regional de São Miguel. Esse foi um dos momentos marcantes! Mesmo sendo uma jovem com pouco tempo de formação, a equipe de profissionais depositou uma confiança que nem eu acreditava nas minhas condições em assumir uma função dessa magnitude. A responsabilidade era grande, mas o planejamento era participativo, coletivo.

Participamos ativamente de todo o processo para que eleição para presidente do Brasil fosse realizada por meio do voto direto e não mais pelo Colégio Eleitoral. Fazíamos debates entre os profissionais da Supervisão e com lideranças dos movimentos populares para envolver a população no “Movimento das Diretas-Já”. Temos uma capa na Revista Isto É em uma passeata no centro de São Paulo. A não aprovação da Emenda Dante de Oliveira no Congresso Nacional foi um choque, mas não desistimos da luta.

Com a derrota do Fernando Henrique Cardoso para a Prefeitura de São Paulo e com a vitória inesperada de Jânio Quadros passei a trabalhar na Supervisão Regional da Penha, a partir de janeiro de 1986. Três meses depois assumi a Coordenação da Equipe Multiprofissional responsável pela supervisão e capacitação dos profissionais das creches na região da Penha. Mais um desafio! A Supervisão Regional estava vinculada a uma Delegacia da Secretaria da Educação, cujo Secretário era Paulo Zinck. O governo autoritário de Jânio Quadros nos exigia muitos enfrentamentos.

Na publicação do edital do concurso público para Assistentes Sociais da Prefeitura de São Paulo, em 1987, um dos textos que nos chamou a atenção foi “Assistência na trajetória das Políticas Sociais Brasileiras: uma questão de análise”, publicado em 1985, de autoria de Aldaíza de Oliveira Sposati, Dilsea Adeodata Bonetti, Maria Carmelita Yazbek e Maria do Carmo Brant Carvalho. Esse texto e mais o livro “Política Social” de autoria de Vicente de Paula Faleiros nos permitiu uma transformação do nosso olhar sobre a “assistência como assistencialismo” e “assistência social como política pública”.

É importante lembrar que o país estava em pleno processo da Constituinte, com uma forte presença de movimentos sociais especialmente nas áreas da saúde, educação, habitação e assistência social, para que fosse assegurado como direito social na Constituição Federal de 1988.

No campo da assistência social, por uma ação contundente da categoria profissional, os trabalhadores dessa área, impulsionados pela força dos movimentos sociais e, dos avanços dos estudos na academia, contribuíram para a inserção da Assistência Social no campo da Seguridade Social no texto constitucional, para fortalecer o campo democrático e dos direitos sociais.

Em 1989, Luiza Erundina de Souza assume a Prefeitura da Cidade de São Paulo, imprimindo um caráter democrático popular a sua gestão. Nesse momento, o presidente da República é Fernando Collor de Mello que estava implementando o “Plano Collor”, que foi um desastre para economia brasileira. Durante o governo Collor, a assistência assumiu um caráter assistencialista, tendo a primeira-dama Rosane Collor assumindo a presidência da Legião Brasileira de Assistência, com desvios e irregularidades no uso dos recursos públicos.

É importante destacar as mudanças que estavam ocorrendo no mundo, cuja mais expressiva foi a Queda do Muro de Berlim (1989), que significou a vitória do projeto capitalista sobre o socialismo, com a reunificação da Alemanha.

No caso da Secretaria Municipal de Bem Estar Social (SEBES), foi nomeada a Assistente Social Marta Campos, que prioriza programas e serviços de caráter inovador nas áreas de criança e adolescente, plantão social e centros da juventude. Instaura-se uma nova concepção de assistência para superar a política do favor, da tutela e do clientelismo, para uma perspectiva de efetivação de direitos. Mesmo sem ter a Lei Orgânica de Assistência Social regulamentada, houve avanços consideráveis na perspectiva da participação popular e do reconhecimento da assistência como direito de cidadania. Vários seminários e encontros foram realizados buscando dar uma nova direção para reverter o trabalho da assistência social, com investimento e capacitações de seus servidores, o trabalho social coletivo; assumir a intervenção junto à população em situação de rua e de construção de uma política de atendimento a pessoa idosa. Se até esse momento a assistência social era responsável para trabalhar com todas as demandas que envolvia a população de 0 a 5 salários mínimos, agora não mais. O trabalho com moradias foi assumido pela Secretaria de Habitação e a educação de jovens e adultos, pela Secretaria da Educação. As creches foram posteriormente para a Educação, com a aprovação da Lei Nacional de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), em 1996. Esse processo de transição foi lento e gradual face aos inúmeros obstáculos colocados pela própria Secretaria de Educação, ocorrendo apenas no governo Marta Suplicy. A partir da LDB/96 as creches passam para a serem denominadas Centro de Educação Infantil (CEI), compreendida como um direito da criança à educação.

A Assistente Social Heloisa Brasil Ramos foi nomeada para a Supervisão de Assistência Social da Penha. Nessa nova gestão fui ratificada para continuar na coordenação da Equipe Multiprofissional responsável pela supervisão de creches e dos centros de convivência voltados para o atendimento a adolescentes. Enfrentei muitos desafios, mas um dos mais complexos foi assumir o processo de avaliação de desempenho de todos os diretores das creches diretas (estatal) da região da Penha. Esse processo foi muito estressante, principalmente quando tivemos que enfrentar o debate com funcionários de duas creches que discordaram da demissão das diretoras.

Nesse processo ficou muito claro para mim o que o novo governo esperava de uma gestora: não é possível separar a ação técnica da ação política. É importante destacar que esse governo investiu muito na formação gerencial.

Em 1990, foi aprovado na Câmara Municipal de São Paulo a Lei Orgânica do Município, que previa a criação das Subprefeituras com uma atuação intersecretarial, mas apesar de não conseguir implantar plenamente essa proposta, esta visão acabou sendo assumida, mesmo com todas as dificuldades, sob a coordenação das chamadas Administrações Regionais (atual Subprefeitura). Esse processo foi interrompido com a eleição de Paulo Maluf (1993).

A mudança de gestão da assistência social já estava no curso uma atuação territorializada, onde cada distrito era considerado uma microrregião que deveria estar articulada a então Administração Regional (no caso Penha) e às demais secretarias. Para cada uma das microrregiões foi designada uma coordenação. Inicialmente eu assumi a microrregião de Arthur Alvim. As microrregiões se articulavam no âmbito do Planejamento Regional da Supervisão Regional.

No plano nacional nova batalha se inicia. Enquanto a saúde já havia aprovado o Sistema Único em 1990, a assistência social precisou de muitos debates e articulações no campo acadêmico e institucional, para que fosse aprovada a Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), que somente aconteceu em 07 de dezembro de 1993 – Lei n. 8.742. A regulamentação da assistência social como política pública de direito foi sancionada depois de muitos enfrentamentos e fruto da pressão popular. Mesmo após a sua aprovação, continuamos a exigir a extinção da Legião Brasileira de Assistência Social (criado em 1942) e do Conselho Nacional de Serviço Social (criado em 1938, que era um órgão cartorial). Foi uma luta árdua para a implantação do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e dos conselhos no âmbito dos estados e municípios brasileiros. Lembramos que a cidade de São Paulo foi a última metrópole brasileira a implantar o Conselho Municipal de Assistência Social (COMAS), no ano 2000. As mesmas dificuldades foram encontradas para a implementação dos Fundos de Assistência Social nos âmbitos federal, estadual e municipal.

A 1ª Conferência Municipal de Assistência Social (1995) foi convocada pelo Fórum de Assistência Social da Cidade de São Paulo, sem a presença dos gestores da Secretaria de Bem-Estar Social. A gestão municipal havia se recusado a promover a conferência. Participei dessa conferência, sem poder representar os trabalhadores da assistência e não pude participar da eleição dos delegados para a Conferência Estadual e, consequentemente para a Conferência Nacional. O mesmo sucedeu-se na 2ª Conferência Municipal realizada em 1997, a Secretaria participou apenas com presença de alguns representantes do Gabinete. Eu participei mais uma vez sem representar os servidores públicos da Secretaria. A cidade de São Paulo não teve delegados eleitos na Conferência Estadual e tampouco na Conferência Nacional. Tudo isso afetou muito a implantação da assistência social como política de direitos na cidade de São Paulo.

O Benefício de Prestação Continuada (BPC), definido no artigo 203, embora assegurado pela LOAS para fosse regulamentado pelo INSS, só foi concretizado em 1996, após muita pressão. Esse debate no campo dos benefícios atrasou de certa maneira o processo de construção de uma política pública de cidadania.

Um primeiro texto sobre a Política Nacional de Assistência Social foi editado em 1998 na tentativa de concretizar o estabelecido na CF/88 e na LOAS/93. Avançou-se pouco nas instâncias de deliberação e participação da política de assistência social, especialmente no que referiu à regularidade das conferências de assistência social, conforme definido na LOAS.

Na III Conferência da Assistência Social, em 1999, o governo assumiu o compromisso de realizar a eleição dos representantes da sociedade civil e a implantação do Conselho Municipal da Assistência Social. Apenas em março de 2000, foi constituído do Conselho Municipal da Assistência Social (COMAS), ainda de forma incompleta, dado o veto do executivo aos aspectos da Lei 12.524/97 no que dizia respeito à criação do Fundo Municipal de Assistência Social.

A partir de 1991, deixei a coordenação da Microrregião de Arthur Alvim, para assumir a Coordenação Regional de Planejamento da SAS-Penha. A programação do trabalho com creches passou por grande revolução nesse período. Em junho de 1989, a Secretaria promoveu um grande encontro no município para definir as diretrizes do trabalho socioeducativo com as creches. Em outubro deste mesmo ano, a Prefeitura de São Paulo promoveu o “Seminário Internacional Crianças e Adolescentes de Baixa Renda nas Metrópolis”. Este seminário foi muito importante para ter uma leitura da situação crianças e adolescentes, vistas como sujeitos de direitos e, ainda, conhecer o novo estatuto jurídico, sob a ótica dos movimentos de defesa de seus direitos. Um dos momentos inesquecíveis foi a mesa de abertura com a presença de Paulo Freire, então Secretário da Educação e de Marilena Chauí, como Secretária de Cultura. Logo em seguida, foi sancionado o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em 13 de julho de 1990, considerado uma das legislações mais avançadas pelo seu cunho democrático de reconhecer a criança e adolescente como sujeito de direitos.

Nos últimos anos, o ECA tem sido objeto de disputa na sociedade e no legislativo, para aprovar proposições como a maioridade penal e aumento de penas para crimes considerados hediondos praticados por adolescente.

O ECA interferiu também para mudar atuação da assistência social junto a crianças e adolescentes, na medida que, ainda neste momento, ela era responsável pela rede de creches estatais e conveniadas e pelos centros de convivência voltado para atendimento a adolescentes.

Nos governos autoritários Maluf e Pitta, entre 1993 e 2000, a assistência social na cidade de São Paulo sofreu reveses com as velhas práticas clientelistas e assistencialistas, com instituição de várias legislações que colocavam travas no trabalho profissional. Foi no governo Pitta que eu pedi afastamento do trabalho (1999-2000) para dedicar-me a minha vida acadêmica. Retornei em 2001 para assumir a assessoria do Subprefeito da Penha entre 2001 e maio de 2003, com uma atuação mais política junto às demandas dos munícipes. Depois voltei para trabalhar na Supervisão Regional de Assistência Social Penha (SAS/Pe).

Os novos rumos da política de assistência social na cidade de São Paulo, na perspectiva da LOAS, só foi viabilizado com governo de Marta Suplicy.

Na cidade São Paulo, a Profa. Aldaíza Sposati assume a Secretaria de Assistência Social (atual SMADS), entre 2001-2004. Um dos maiores desafios foi a construção do Plano Municipal de Assistência Social (PLAS) de forma participativa. Em 2003 fui nomeada como Supervisora Regional da SAS-Penha, onde permaneci até julho de 2005.

Foi na IV Conferência Municipal da Assistência Social, com a forte presença de trabalhadores, gestores e usuários é que ficou claro que estavam dadas as condições para o avanço na Política de Assistência Social, na cidade de São Paulo.

Além do Plano Regional de Assistência Social, tivemos a tarefa de sensibilizar os trabalhadores das SAS e das organizações sociais conveniadas e, os usuários da assistência social para participarem da V Conferência Municipal de Assistência Social (2003). As conferências, realizadas a cada dois anos, são instâncias que avaliam o processo de implantação da política de assistência social e do SUAS no município e de definição de metas para atender as demandas dos cidadãos e cidadãs usuários da política de assistência social. As conferências são parte integrante do processo de participação dos trabalhadores e da sociedade e do exercício do controle social da política de assistência social. No entanto, decorrida a realização de inúmeras conferências, a representatividade dos usuários ainda é muito pequena. A sua voz ainda é tímida, não ecoa de forma ampla. A questão da representação e da representatividade dos usuários nos conselhos de assistência social, em todas de esferas de governo, vem sendo discutida em vários fóruns de debates, nas conferências, exigem revisão tanto no que diz à proporcionalidade, quanto ao espaço destinado à vocalização de suas demandas.

A IV Conferência Nacional de Assistência Social (2003), realizada em Brasília, da qual participei na condição de observadora, apontou como a principal deliberação o atendimento aos requisitos da Lei Orgânica de Assistência Social - LOAS, para dar efetividade à implantação da política de assistência social em todo o território nacional e da implementação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS).

A Profa. Aldaíza Sposati fez a conferência magna “Menina LOAS: 10 anos”, na IV Conferência Nacional de Assistência Social (2003). A Profa. Aldaíza levou uma menina de 10 anos, usuária da política de assistência, para fazer parte da mesa. Foi muito emocionante e acabou resultando nessa publicação que passou a ser uma referência importante para a política de assistência social.

Em 2005 foi publicada a primeira Norma Operacional do Sistema Único de Assistência Social (NOB/SUAS), que foi um primeiro instrumento para orientar e padronizar os serviços prestados pela política de assistência social em todo o território nacional. Posteriormente foi publicada a Norma Operacional de Recursos Humanos - NOB/RH/SUAS - em 2006, que representou um avanço em termos de valorização e qualificação dos trabalhadores do SUAS. Todos esses instrumentos foram fundamentais para alavancar o processo de implantação da política de assistência social em todo o território nacional.

Todo esse movimento rebateu nos municípios brasileiros e de forma particular, em uma metrópole como São Paulo, cujas Subprefeituras têm uma área territorial e população maior do que muitas cidades brasileiras. Eram 31 SAS Regionais, acompanhando área territorial de cada Subprefeitura, o que amplificava os diversos entraves para a execução de uma política pública com esse novo arcabouço. Os desafios foram muitos, não apenas pelo tamanho da população, mas também pelas particularidades e diversidades de um centro urbano altamente desigual, sobretudo no acesso a serviços públicos.

Eu trabalhei na SAS Penha com uma equipe de profissionais comprometida e com muita vontade de enfrentar cada uma das barreiras encontradas. O território é composto por quatro distritos: Penha, Cangaíba, Vila Matilde e Arthur Alvim, que somados representam uma área de 42,8 km² e com uma população de aproximadamente 470 mil pessoas. Tivemos avanços significativos, principalmente em duas grandes frentes: a implantação do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) e implementação do novo escopo jurídico, na relação com as organizações sociais, que passaram a assumir a gestão de serviços socioassistenciais, a partir de participação em audiências públicas.

Atravessamos muitos embates políticos com a descentralização da assistência social para o âmbito da Subprefeitura, sob a coordenação de uma instância denominada Coordenadoria de Assistência e Desenvolvimento Social. Ficamos com dois comandos: “político” subordinado a essa Coordenadoria e, o “técnico” sob a coordenação da Secretaria Municipal da Assistência Social. Apesar dos embates, a Secretária Aldaíza Sposati não sucumbia às orientações do governo, porque era competente profissional, como também firme e corajosa na defesa da implantação da Política de Assistência Social na cidade São Paulo.

Um dos grandes desafios foi a participação como gestora na instância denominada Governo Local para definir as prioridades e interfaces das políticas, na elaboração do orçamento participativo, no enfrentamento da dengue, na intervenção nas áreas de riscos, nas mudanças estruturais para implementação da Subprefeitura, na elaboração do Plano Diretor Regional, na organização das conferências regionais temáticas, entre outros, que envolvia planejamento e divulgação para ampliar o envolvimento da população de forma democrática e participativa.

Em setembro de 2005, já no governo José Serra, fui convidada para trabalhar na assessoria técnica da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS). Esse trabalho envolvia basicamente o planejamento das reuniões semanais com os Supervisores Regionais de Assistência Social. Confesso que não foi uma tarefa fácil, pois a relação Secretaria e Regionais sempre foi tensa. No entanto, esses encontros eram necessários, especialmente para articular a volta dessas regionais, para o pleno comando da SMADS, sempre com a justificativa para viabilizar implantação do sistema descentralizado e participativo da assistência social.

Em 2006, assumi a coordenação da Coordenadoria de Proteção Social Básica da SMADS. Novamente admito que foi uma atitude corajosa diante dos desafios e dos conflitos que enfrentamos tais como: a implementação de serviços socioassistenciais voltado para crianças e adolescentes, na consolidação dos Centros de Referência de Assistência Social, na construção de uma nova política de convênios e na implantação de projetos internacionais junto à União Europeia.

Durante esse período participei de vários processos que envolviam diretamente o debate em torno da política de assistência social: das conferências municipal, estadual e nacional de assistência social, nos anos de 2005 e 2007; do curso de capacitação para gestores dos CRAS, em Brasília; das reuniões do Colegiado de Secretários Municipais (CONGEMA); Reuniões Nacional do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS); das reuniões mensais da Comissão Intergestores Tripartite, em Brasília. Além disso, participei de curso de formação de gestores da Política de Assistência Social promovido pelo Ministério de Desenvolvimento Social (MDS).

Todo esse longo relato é para contar um pouco da minha relação intensa com a Política de Assistência Social, que mesmo após a aposentadoria continua. Entendo que é um compromisso de vida!

Alan de Loiola Alves & Rosemeire dos Santos: Como a senhora analisa o Sistema Único de Assistência Social – SUAS implantado no Brasil em 2004?

Ivone Pereira da Silva: O Sistema Único de Assistência Social (SUAS) é um instrumento fundamental para estruturação e regulação da Política de Assistência Social em todo o território nacional.

Com a Constituição de 1988 promoveu-se uma ruptura histórica com a área social da assistência aos pobres para o campo do direito, ou seja, para o campo da cidadania, do reconhecimento da pessoa como um sujeito de direito. Nesse sentido, a assistência social é ressignificada do ponto de vista legal, como política de proteção social não contributiva, no campo da Seguridade Social.

É pertinente assinalar que o processo de implementação da política de assistência social não ocorre com a celeridade exigida face às demandas da população mais vulnerável. A aprovação da Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS) em 1993 foi uma vitória após muita luta dos trabalhadores da área e da pressão popular. Somente em 2004, conseguimos conquistar um texto para a Política Nacional de Assistência Social na perspectiva do direito de cidadania.

Enquanto um produto de demandas e conquistas da sociedade brasileira, o SUAS foi instituído em 2005, mas é somente reconhecido com a promulgação da Lei n. 12.435/2011. Nesse curso histórico tivemos avanços importantes, como a implantação dos conselhos de controle social em todas as esferas do governo; a criação dos fundos de assistencial social; a realização de conferências nacional, estaduais e municipais; a implantação da/s unidades públicas estatais como CRAS e CREAS; a aprovação da tipificação dos serviços socioassistenciais; a definição de uma política de recursos humanos e de capacitação continuada e, ainda a construção de várias normativas que viabilizaram uma unidade em todo o território nacional, como a relação com as organizações sociais vinculando-as ao SUAS. Vale destacar os avanços nos processos de organização e articulação em defesa do SUAS, tanto por parte dos trabalhadores do SUAS como de seus gestores, particularmente nas instâncias de pactuação e deliberação.

O Fundo Público de Assistência Social criado para o repasse automático para o financiamento da assistência social ocupa um papel relevante na condução desse processo. Houve alguns avanços, mas a política de ajuste e austeridade fiscal e de contrarreformas (sobretudo as da previdência social e trabalhista) impactou de forma incomensurável a implementação do SUAS em todo o território nacional. A sustentabilidade do SUAS tornou-se inviável com a aprovação do novo regime fiscal estabelecido na Emenda Constitucional n. 95/2016, que adotou um congelamento dos gastos sociais por 20 anos. Agravou-se ainda mais, com a tentativa de desqualificação do SUAS, no contexto da covid-19, que por meio de severos cortes orçamentários, leva a assistência social para atuação voltada especialmente, nas emergências socioassistencial e de calamidades (desastres).

Em que pese os avanços, a Assistência Social ainda não é reconhecida como parte da Seguridade Social brasileira, mesmo com a responsabilização do Estado com a provisão da proteção social para a garantia da segurança social aos cidadãos e cidadãs.

A sociedade brasileira ainda percebe assistência social como caridade, no campo da ajuda e, não como uma política de direitos de cidadania. Nesse sentido, avançou-se muito pouco tanto junto aos trabalhadores do SUAS quanto na sociedade brasileira.

Diferentemente do Sistema Único de Saúde (SUS), o SUAS não é compreendido como responsabilidade do Estado, mas sim da sociedade, das organizações sociais. Isso ficou mais explícito no processo da pandemia da covid-19. Para o SUS ficou muito evidente que tipo de proteção social deveria prestar em face ao grave risco das vidas humanas. E para o SUAS? Naquele momento em que as vulnerabilidades humanas e sociais estavam mais agudizadas sobressaiu-se com a reedição do assistencialismo, sobretudo porque resumiu-se à oferta das cestas básicas, ou seja, foi reduzido a uma mera atenção emergencial. Além disso, é preciso demarcar que o combate à fome e a insegurança alimentar não é área de ação exclusiva da Política de Assistência Social, porque envolve, sobretudo, a Política de Segurança Alimentar, mas que também foi solapada nesse governo.

Cabe destacar a importância, mesmo com o esvaziamento político, das instâncias como Comissão Intergestora Tripartite (CIT) e do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS), que resistiu às inúmeras tentativas de sua extinção pelos governos autoritários instalados no Brasil, a partir de 2016. A criação da Frente Nacional de Defesa do SUAS demonstrou que existe um estado de permanente de resistência para que a proteção social brasileira permanecesse viva. Diante de sucessivos cortes orçamentários houve um fortalecimento de instâncias como o CONGEMAS – Colegiado Nacional de Secretários Municipais de Assistência Social. Essas instâncias de resistência permitiram aos municípios construírem suas respostas diante da ausência dos recursos federais para evitar o colapso da atenção da assistência para pessoas e famílias vulnerabilizadas.

Com a eleição do novo governo que assumiu a partir de janeiro de 2023, há um compromisso declarado com uma agenda em defesa do SUAS. O cenário não é tão alvissareiro, face à crise econômica que o Brasil enfrenta, mas apresenta sinais incontestes de que há prioridade do investimento no social. Estamos esperançosos com o novo tempo que se inicia.

Alan de Loiola Alves & Rosemeire dos Santos: Professora Ivone, como analisa a relação da política de Assistência Social com os Direitos Humanos?

Ivone Pereira da Silva: É inegável que existe uma relação intrínseca entre Política de Assistência Social e os Direitos Humanos.

De forma ampla quando entendemos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que propõe uma agenda de 17 objetivos para 2030, a Política de Assistência Social como integrante da Seguridade Social brasileira tem um papel relevante, mas não exclusivamente.

A Assistência Social opera como instrumento de efetividade dos direitos humanos, especialmente para a construção de direitos das pessoas vulnerabilizadas. A Constituição Federal de 1988 reconhece a assistência social, como direito social, que será prestada a quem dela necessitar nos termos do Art. 203, independentemente de contribuição à Seguridade Social. A Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), aprovada em 1993, regulamenta os benefícios (BPC e os Benefícios Eventuais) e os serviços socioassistenciais, que são serviços continuados que visam à melhoria das condições de vida de pessoas vulnerabilizadas.

A estrutura descentralizada de atendimento, atribuindo responsabilidades aos municípios brasileiros, permite uma atenção às demandas sociais presente nos territórios mais vulneráveis.

O caráter descentralizado é fundamental para a gestão das ações na área da assistência social, por um sistema participativo denominado SUAS – Sistema Único de Assistência Social, que é integrado pelos entes federados (União, Estado e municípios) e pelos respectivos conselhos e fundos de assistência social. Em 2011, o SUAS foi sancionado pela Lei nº 12.435, que permitiu alterações em alguns artigos da LOAS/93 e organizou ações da assistência social para garantir a proteção social aos cidadãos e cidadãs, no enfrentamento de suas dificuldades, por meio de serviços, benefícios, programas e projetos.

A partir de 2004 foi instituída a essencialidade da Política de Assistência Social e houve avanços importantes do ponto de vista de suas normatizações e que, sem sombra de dúvida, vão em direção aos objetivos do desenvolvimento sustentável.

É incontestável que a luta pelos direitos humanos é uma luta política, pela ampliação da democracia e pela mudança para uma sociedade mais humana e com mais justiça social. Portanto, entendemos que a retirada de recursos orçamentários das políticas sociais é uma forma de violar os direitos humanos, pois afeta o princípio da dignidade humana ao fragilizar o acesso aos direitos sociais. Ao se reduzir a política de Assistência Social a uma mera atenção emergencial, ela é retirada do campo da proteção social de responsabilidade do Estado. Nenhuma política social supera a questão da desproteção social, se atua isoladamente.

Portanto, a assistência social deve atuar de forma intersetorial, e de complementaridade para assegurar o acesso aos direitos humanos e sociais. Toda pessoa humana tem o direito a ter uma vida com dignidade e, esse princípio ético é norte para qualquer ação pública.

O impacto das sucessivas tentativas de fragilizar o SUAS é uma violência contra os direitos socioassistenciais e, portanto, desconsidera que o usuário é apenas uma pessoa pobre e não um cidadão, uma cidadã de direitos.

A defesa de direitos socioassistenciais tem que necessariamente estar baseado em princípios éticos, como o senso de justiça e, no reconhecimento que o SUAS foi construído a partir de uma luta coletiva e, por isso, os direitos devem ser garantidos coletivamente.

Cabe à Política de Assistência Social construir mediações para incorporar a pauta social de direitos humanos, reforçando a responsabilidade do Estado na garantia dos direitos econômicos, sociais, culturais e o direito à inclusão social de cidadãs e cidadãos vulnerabilizados.

A responsabilidade do Estado é diluída, endossada por justificativas apresentadas pelo senso comum que as desigualdades sociais existentes é uma questão individual, alegando que aqueles que mais se esforçam, os mais dedicados, os que mais trabalham e os que mais estudam podem romper com o ciclo das desigualdades. É o discurso do mérito. Nessa perspectiva, o acesso à educação, ao trabalho, a proteção social é um processo livremente escolhido, em que todos têm as mesmas oportunidades. Não se reconhece que as desigualdades sociais produzidas no interior do sistema capitalista de produção se expressam nas questões de renda, de raça, de gênero e de geração, entre outros, que limitam o acesso aos direitos sociais e humanos.

Combater o racismo no cotidiano dos trabalhadores da Política de Assistência Social ainda não é algo incorporado. Muito embora se reconheça que são as mulheres pobres e pretas que mais sofrem com a regressão de direitos, que mais mulheres negras recorrem ao Centro de Referência de Assistência Social em busca de apoio protetivo, há um silenciamento, tanto por parte dos gestores como dos profissionais de que são as famílias pretas que mais morrem nesse país, vítimas do desmantelamento das políticas sociais. Não está claro para todos e todas, que o racismo estrutura as desigualdades.

No cotidiano dos trabalhadores e trabalhadoras da Política de Assistência Social, ainda se expressa de forma quase imperceptível a identificação com lutas sociais e políticas presentes na atualidade, porque há um refluxo quanto à consciência de classe trabalhadora. Com quais lutas o trabalhador da assistência social se identifica?

Sabemos que o trabalhador é a espinha dorsal do SUAS. Sabemos também que, parte desses trabalhadores reconhece o trabalho na Assistência Social, como espaço de defesa de ampliação de direitos, de defesa dos direitos socioassistenciais e de construção de mediações contra racismo, a xenofobia, homofobia, entre outros, empenhando-se em eliminar todas as formas de preconceito.

É imprescindível para os avanços da política de assistência social, ter um quadro de trabalhadores e trabalhadoras qualificado e valorizado, que receba de forma continuada insumos necessários para se fortalecerem e terem as condições imprescindíveis para acolher as múltiplas e diversas demandas que se apresentam nos serviços socioassistenciais, materializando o acesso aos direitos de cidadania da população usuária.

Nesse processo de formação continuada, os trabalhadores necessitam sempre retomar as dimensões éticas, políticas e técnicas do trabalho da Assistência Social, além priorizar a educação em direitos humanos, que provoque transformações na postura profissional para romper com práticas preconceituosas e de intolerância à diversidade. No processo, a construção de uma postura profissional política e de enfrentamento ao racismo, ao capacitismo, ao etarismo, a homofobia, a transfobia, ao sexismo e contra a violência em todas as suas dimensões.

Alan de Loiola Alves & Rosemeire dos Santos: Quais as potencialidades e os desafios do trabalho do/a Assistente Social na política de Assistência Social na atualidade?

Ivone Pereira da Silva: Vivemos uma crise estrutural do capitalismo que se arrasta pelo mundo globalizado, mas que atinge, sobretudo, os países latino-americanos, provocando uma fratura no investimento do Estado nas políticas sociais.

O capitalismo na sua vertente neoliberal reforça o consumo de forma aviltante na base da sociedade, na qual a cidadania passa a ser vista como a possibilidade individual de pode acessar determinados direitos.

Com a nova ordem mundial instituída a partir do fim da guerra fria, novos paradigmas de produção e de consumo, criou-se um cenário perfeito para a emergência do neoliberalismo, que muda a concepção de Estado Social para o Estado mínimo.

No Brasil, sobretudo a partir dos anos 1980, com fim da ditadura militar (1964-1984), o processo de democratização em curso, pela pressão de movimentos sociais e políticos, possibilitou a aprovação de Constituição Federal de 1988, conhecida com a “Constituição Cidadã”, contrapondo-se ao projeto neoliberal em curso.

No Brasil, os governos eleitos entre 1990 e 2002 aderiram massivamente ao projeto neoliberal, com sucessivas revisões de normas constitucionais abrindo espaço para a instituição de políticas sociais focalizadas, para o fortalecimento do terceiro setor e para as privatizações de órgãos públicos.

A ação dos movimentos sociais pressionando para o alargamento das condições de cidadania coloca alguns freios na agenda neoliberal, o que explica a perda da força desse modelo no Brasil e, em alguns países da América Latina.

A partir do primeiro governo Lula, em 2003, percebe-se uma retomada do chamado “projeto neodesenvolvimentista” que reposiciona o Brasil no cenário internacional e nacional, criando uma agenda voltada para o investimento no social, sobretudo para viabilizar o acesso a bens e serviços da população mais vulnerabilizada. As políticas sociais contribuem para ampliação de direitos o que leva o Brasil, naquele momento, a sair do Mapa da Fome, ao aumento de empregos e ao aumento real do salário mínimo.

A Política Nacional de Assistência Social (PNAS/2004) compactua com a defesa da intervenção do Estado na área social e, portanto, o direito na perspectiva do direito de cidadania. Ela expande a responsabilidade do Estado na provisão da proteção social. A Assistência Social não é instrumento de ajuda aos pobres, mas resulta de resistências ao modo de produção capitalista, gerador de desigualdades e injustiças sociais.

No entanto, ainda convivemos com muitas práticas que se remontam ao assistencialismo na medida que se perpetua uma visão liberal e conservadora. O Estado renuncia a sua responsabilidade direta pela política pública, atribuindo à sociedade a responsabilidade de minimizar os efeitos do próprio capitalismo, que ao mesmo tempo que gera riqueza, gera a pobreza e a desigualdade social.

A questão social que se manifesta de diversas formas a depender da dinâmica do capitalismo impacta diretamente como o Estado se estrutura a serviço de uma agenda neoliberal. A dimensão contraditória do Estado se expressa na forma como oferta a proteção social e que ainda permite prospectar um movimento na perspectiva do direito de cidadania.

Em que pesem as conquistas de políticas sociais públicas, sobretudo nos governos democráticos entre 2003 e início de 2016, elas foram altamente fraturadas a partir do golpe jurídico-parlamentar (2016). A partir desse momento, entendo que o projeto de Estado passa a ser minado pelo debate ideológico que se instaura. Há deslocamento para o campo da moral, que é o projeto da chamada “extrema direita”, que são valores subjacentes ao processo de formação social e econômica do Estado brasileiro, em detrimento de valores na direção dos direitos humanos.

A polarização política, a cultura do ódio, alimentado pelas redes sociais se acirra durante o processo eleitoral e aprofunda ainda mais com eleição do governo autoritário (2019-2022).

O caráter meritocrático assola o direito de cidadania, muito propagado que só quem merece viver dignamente são as pessoas boas, as pessoas competentes, as pessoas do bem. As pessoas incompetentes, as pessoas más não merecem viver dignamente. O pensamento liberal responsabiliza o indivíduo pelo seu sucesso e pelo seu fracasso. Esse reforça o ideário que o Estado deve investir o mínimo possível na área social provocando as sucessivas reformas como a trabalhista e da previdência que retiram os direitos sociais.

O desmonte das políticas sociais públicas inicia-se com a aprovação da Emenda Constitucional nº 95/2016 que instituiu o congelamento de recursos para as políticas da área social, por 20 anos.

O Programa Criança Feliz (2016) imposto pela gestão federal (2016-2018) é um exemplo de tentativa de minar, por dentro, o processo em curso de implantação do SUAS nos munícipios brasileiros. Houve um processo de resistência muito grande, houve uma grande frente de resistência, principalmente dos conselhos de assistência social, mas a maioria dos municípios acabou aderindo a esse programa dentro do SUAS, em face de uma forte pressão política do governo federal. O mais grave de tudo é que a implantação desse programa levou recursos que eram inicialmente adotados para serviços socioassistenciais.

Por mais imprecisa que essa noção possa ser, abriu-se um espaço para o retorno das velhas práticas clientelistas e assistencialistas, como o primeiro-damismo e, porque não, o retorno de velhas práticas clientelistas. Um exemplo claro dessa expressão foi à proposta do “Brasil Acolhedor”, onde governo federal e sociedade civil (de forma voluntária) buscam promover ações de apoio à população mais vulnerável no enfrentamento da pandemia, em especial, os imigrantes. A proposta desenhada é um misto de “solidariedade, acolhimento, amor, esperança e fé”, onde o primeiro-damismo retorna ao centro do poder de ação do Estado, ou seja, muito distante de uma política pública de direitos.

Os sucessivos cortes no financiamento dos benefícios e serviços socioassistenciais da Política de Assistência Social, com o esvaziamento e a desqualificação das instâncias de deliberação e participação por parte governo federal, cujo fosso foi ainda mais profundo em tempos de pandemia da covid-19, levou a uma retração no processo de consolidação do SUAS.

O desfinanciamento imposto ao SUAS, rompendo com a lógica do repasse automático, fundo a fundo, foi o principal entrave para assegurar o acesso aos direitos dos cidadãos e cidadãs usuários da assistência social, principalmente no que se refere aos serviços socioassistenciais, cujo corte em alguns deles foi mais de 90%.

Durante a fase mais aguda da pandemia as instâncias de pactuação, deliberação e de controle social do SUAS, embora sendo constantemente atacadas, descredibilizadas pelo governo federal de plantão, se organizaram para a defesa de suas conquistas históricas. O “SUAS resiste” era mote em estado permanente para o enfrentamento do projeto em curso, na tentativa de destruir as conquistas da proteção social brasileira. A Frente Nacional de Defesa do SUAS denunciou as medidas adotadas pelo governo federal para inviabilizar o SUAS, por meio da aplicação de leis, normas e portarias, rompendo com a lógica de repasse automático para os municípios e quebrando o pacto federativo. Mesmo quando o governo federal estabelece que a Política de Assistência Social é essencial, durante a pandemia, não traz nada de novo, pois a natureza da assistência social já está consolidada na Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS).

Nesse contexto de pandemia, houve aumento das desigualdades sociais, com aumento do desemprego, a volta da fome e o crescimento da violência doméstica. É evidente que o Auxílio Emergencial foi importante. Mas seria estratégico se tivesse passado pela estrutura do SUAS, permitindo a ampliação de cobertura de atenção para pessoas e famílias mais vulneráveis, que em síntese é a população atendida pelos benefícios e serviços. Com o Auxílio Emergencial ficou evidenciado que Assistência Social era um instrumento de ajuda das políticas sociais. É no espaço do CRAS, presentes nos territórios mais vulneráveis, que se articulam as políticas públicas para a defesa da vida, da qualidade de oferta de serviços sociais públicos e da construção da cidadania.

Compactuo com a defesa de mudanças no escopo da Política de Assistência Social que estão sendo debatidos, tanto no espaço da academia com os importantes estudos e pesquisas, quanto nos fóruns de debates, colegiados e conferências. O SUAS avançou, mas sofreram retrocessos especialmente nos últimos quatro anos. Destaco apenas alguns aspectos que considero vitais: revisitar o escopo da Norma Operacional Básica de Recursos Humanos (formação permanente e valorização do trabalho); a relação de parceria com as organizações sociais, cujo trabalhador não vê como uma agente pública e as organizações sociais não entendem que fazem parte de um sistema público; é urgente retomar a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais: entende-se melhor o que benefício (BPC – Benefício de Prestação Continuada; Benefício Eventual), mas é por meio de serviço socioassistencial que se garante um atendimento continuado.

E finalmente, eu compreendo que a defesa da democracia, do alargamento da cidadania não se resume aos enfrentamentos numa relação profissional e usuário (a) da assistência social. Isso é não é tudo. A Política de Assistência Social só avançará plenamente, quando seus trabalhadores e trabalhadoras entenderem que se trata de uma prática política exercida para além do cotidiano profissional. É ultrapassar os questionamentos internos da própria política de assistência social, articulando-os com questões e temáticas que envolvem a sociedade como um todo, especialmente no que se refere ao racismo, à homofobia, à xenofobia e todas as formas de preconceitos. No meu entendimento, esses são os maiores desafios para a consolidação de uma política social de direitos e ampliação de um Estado mais democrático e uma sociedade emancipada.

Alan de Loiola Alves & Rosemeire dos Santos: Professora Ivone, muito obrigado por nos conceder esta entrevista!

Notas de autor

1 Mestre em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1995). Docente aposentada, com experiência na graduação e especialização em Serviço Social.
2 Doutor em Serviço Social pelo Programa de Pós-Graduados em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Docente (Serviço Social) na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) - Toledo/PR - Brasil. E-mail: alanloiola@yahoo.com.br.
3 Doutora (Programa de Estudos Pós Graduados em Serviço Social) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Professora Adjunta (Serviço Social) na Universidade Federal de Tocantins - Miracema do Tocantins/TO - Brasil. E-mail: rosemeiresantossp@gmail.com

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): SILVA, I. P.; ALVES, A. L.; SANTOS, R. Serviço Social, Assistência Social e Proteção Social: Entrevista com a Professora Ivone Pereira da Silva. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 25, n. 2, e25220559, 2023. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v25n22023.20559. Disponível em: https://essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/20559.

COMO CITAR (APA): Silva, I. P., Alves, A. L., & Santos, R. (2023). Serviço Social, Assistência Social e Proteção Social: Entrevista com a Professora Ivone Pereira da Silva. Vértices (Campos dos Goitacazes), 25(2), e25220559. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v25n22023.20559.

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