Dossiê temático: "Proteção social e direitos humanos"
Assistência Social e Desenvolvimento Social: regressão de direitos socioassistenciais?
Social Assistance and Social Development: regression of social assistance rights?
Asistencia social y desarrollo social: ¿regresión de los derechos de asistencia social?
Assistência Social e Desenvolvimento Social: regressão de direitos socioassistenciais?
Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 25, núm. 2, e25220624, 2023
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
Recepción: 28 Mayo 2023
Aprobación: 28 Mayo 2023
Publicación: 25 Agosto 2023
Resumo: O Desenvolvimento Social enquanto um campo mais amplo que a Política de Assistência Social, quando rebaixada à condição de ação tuteladora, tem sido uma questão presente insistentemente na orientação neoliberal. A questão esteve presente em debates no processo de transição do novo Governo Luís Inácio Lula da Silva (2023-2025), que buscou construir um modelo de concertação direcionado ao restauro democrático. Governos de 2016 a 2022 destituíram a condição do Estado garantidor de direitos sociais. Ilusoriamente apresentavam a lógica da oferta de emancipação e cidadania pela inserção no trabalho, num contexto de grande desemprego e aumento das desproteções sociais. Políticas de proteção social foram rechaçadas, destituídas de recursos, de participação social, de coordenação interfederativa. É dever do Estado Social e do Estado Fiscal resgatar e fortalecer o Sistema Único de Assistência Social e garantir direitos constitucionais. Este texto visa a tensionar a compreensão dos elementos que distinguem a direção do desenvolvimento social da política de assistência social, entendendo que não são sinônimos e nem antônimos. São trazidos argumentos históricos e analíticos sobre tal compreensão situando desafios atuais e futuros para o SUAS.
Palavras-chave: assistência social, desenvolvimento social, direito humano e social, SUAS, proteção social.
Abstract: The Social Development as a broader field than Social Assistance policy, in this case reduced to the condition of guardianship action, has been an issue that is persistently present in the neoliberal orientation. The issue was present in debates during the transition process of the new Government Luís Inácio Lula da Silva (2023-2025), which sought to build a model of concertation aimed at democratic restoration. Governments from 2016-2022 removed the status of the State as guarantor of social rights. They illusorily presented the logic of offering emancipation and citizenship through insertion into work, in a context of high unemployment and an increase in social disprotections. Social protection policies were rejected, deprived of resources, social participation, and inter-federal coordination. It is the duty of the Social State and the Fiscal State to rescue and strengthen the Unified Social Assistance System and guarantee constitutional rights. This text aims to stress the understanding of the elements that distinguish the direction of social development from social assistance policy, understanding that they are neither synonyms nor antonyms. Historical and analytical arguments are brought about such understanding, situating current and future challenges for SUAS.
Keywords: social assistance, social development, human and social right, SUAS, social protection.
Resumen: El Desarrollo Social como campo más amplio que la política de Asistencia Social, en este caso reducido a la condición de acción tutelar, ha sido un tema presente de forma insistente en la orientación neoliberal. El tema estuvo presente en los debates durante el proceso de transición del nuevo Gobierno Luís Inácio Lula da Silva (2023-2025), que buscó construir un modelo de concertación para la restauración democrática. Los gobiernos de 2016-2022 eliminaron la condición del Estado como garante de los derechos sociales. Presentaron ilusoriamente la lógica de ofrecer emancipación y ciudadanía a través de la inserción laboral, en un contexto de alto desempleo y aumento de las protecciones sociales. Las políticas de protección social fueron rechazadas, privadas de recursos, de participación social y de coordinación inter federal. Es deber del Estado Social y del Estado Fiscal rescatar y fortalecer el Sistema Único de Asistencia Social y garantizar los derechos constitucionales. Este texto tiene como objetivo enfatizar la comprensión de los elementos que distinguen la dirección del desarrollo social de la política de asistencia social, entendiendo que no son sinónimos ni antónimos. Se aportan argumentos históricos y analíticos en torno a tal comprensión, situando los desafíos actuales y futuros para el SUAS.
Palabras clave: asistencia social, desarrollo social, derecho humano y social, SUAS, protección social.
1 Introdução
Os direitos sociais no Brasil encontram inequívocos fundamentos na Constituição Cidadã de 1988 e, entre eles, estão os direitos à seguridade social, que congrega três políticas sociais: Previdência Social, Saúde e Assistência Social. O âmbito desse campo de direitos humanos e sociais institui a responsabilidade pública do Estado brasileiro com a proteção social de seus cidadãos de duas formas: a contributiva e a distributiva. A primeira, na forma de seguro, envolve o financiamento do trabalhador e do empresário; a distributiva deve ter sua sustentabilidade ancorada no financiamento do orçamento dos entes federativos Munícipios, Estados, Distrito Federal e União.
O modelo contributivo de seguridade social é seletivo, sua presença afeta a trajetória daqueles que exercem trabalho formal, que devem efetivar contribuições mensais do salário recebido. Essa contribuição, mais a do empresariado sobre a folha de pagamento, é repassada à União, que completa o faltante com recursos orçamentários federais. Esse modelo público-estatal se estende aos servidores públicos de cada ente federativo.
O modelo distributivo de proteção social é direcionado ao(à) cidadão(ã), não sendo seletivo pela sua condição de trabalho ou de exigência de contribuição. Sua atuação é sustentada pelos orçamentos anuais dos entes federativos. A Saúde e Assistência Social operam suas ações entre os entes federativos articuladas por Sistemas Operativos Nacionais: o Sistema Único de Saúde (SUS) e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). O alcance de suas atenções e cuidados, diversamente do caráter centralizado e unitário do sistema contributivo, opera de modo descentralizado e implica, só no Executivo, um contingente de 27 gestões estaduais e 5.568 gestões municipais, sem considerar, nesses números, a presença de múltiplas parcerias com organizações da sociedade civil.
A construção da unidade de atenção aos cidadãos nessa imensidão territorial e de gestores(as) implica em sustentação orçamentária, planejamento e metas — o mais consensuada possível —, aperfeiçoamento contínuo e capacitação dos agentes, forte e regular processo de monitoramento de resultados, garantia de consolidação de direitos sociais etc. Mas, sobretudo, exige frequente diálogo com a ciência e a pesquisa e conhecimento atualizado das demandas e necessidades da população. Mais ainda implica em manter o assentamento das ações sob as condições objetivas das realidades dos territórios de vivência dos(as) cidadãos(ãs).
O artigo 6º da Constituição Federal de 1988 agrega as respostas sociais do Estado na condição de direitos sociais ou direitos de cidadania. Ali cita: educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância, assistência aos desamparados. É de se destacar no mínimo três ausências: moradia ou habitação, segurança alimentar e nutricional, e o trato parcial ao destacar a proteção à infância, um dos segmentos do ciclo de vida humana com fragilidades sem incluir outras faixas etárias da vida (adolescência, juventude e velhice). No caso da moradia e da segurança alimentar e nutricional, ainda que na forma de alimentação, estavam presentes na redação anterior do artigo, alterada em 20151.
O alcance de direitos sociais, em cada um desse campos, implica em políticas sociais. Todavia o amadurecimento de cada um deles em produzir propostas públicas apresenta variações de experiências, que ora são guiadas pela lógica da garantia de direitos, ora pela sedução da ideologia do desenvolvimento social. O alcance da dimensão coletiva em uma sociedade de forte desigualdade econômico-social-política tem sido tensionada sob a relação público-privada, considerando que a atenção pública deveria ser destinada ao(à) cidadão(ã) que não tivesse condições do consumo da oferta privada. Essa disputa se agudiza sob orientação neoliberal e passa a exigir o compromisso do Estado com o processo civilizatório e a denúncia quanto à sua forma de presença ou de sua omissão. Trata-se de um confronto à ética pública ao responder parcialmente à direção social que garante direitos sociais que preservam e protegem a dignidade humana.
É importante entender que proteção social significa preservação de condições dignas de vida e que a vida humana é muito mais do que a capacidade individual de consumo de mercadorias. É importante entender que proteção social significa preservação de condições dignas de vida, que é muito mais do que a capacidade individual de consumo de mercadorias, ou mesmo, do que a resposta governamental sob padrão de suposta inclusão mitigada dos “excluídos”, ou de alcance da prosperidade utópica por meio de lógicas meritocráticas. O sentido de preservação é fundamental para a proteção social pois ele implica a percepção e o sentimento de certeza social, isto é, do que se conta com sob a presença da dimensão relacional, ou com uma externalidade de presença protetiva, que é diversa da dimensão da ação de âmbito individual.
Importa destacar que a perspectiva de desenvolvimento (mesmo que social) como movimento de contínua alteração de uma dada realidade não contém dimensões de direito, universalidade ou mesmo de preservação. Essa limitação ficou patente quando foi introduzido o conceito de desenvolvimento sustentável, que traz luz à possiblidade de permanência, durabilidade buscando aproximar-lhe da resiliência da prevenção inerente à proteção social2. Preservar a vida é o contraponto à violência, à morte e à necropolítica3 que foi decodificada por Achille Mbembe (2018).
Ao instituir a política social no campo da proteção social, os resultados esperados ultrapassam a dimensão individual e se inserem na dimensão coletiva e pública da preservação da dignidade de um povo, ou dos padrões de dignidade das pessoas que vivem no Brasil.
Sob essa perspectiva as referências a condições de acesso à dignidade humana são afetadas fortemente pelas diferentes expressões de desigualdade social no trato da vida. Perversamente, a desigualdade acaba por justificar e naturalizar o destrato da condição humana sob a exigência de trato isonômico respeitoso com as diversidades entendidas como característica própria da humanidade, e não, expressão de preconceitos, opressões, desqualificações e discriminações socialmente construídas.
Uma das máscaras aplicadas sobre os resultados desiguais é o nominado cálculo médio de incidências quantitativas que desprezam as informações qualitativas baseadas na realidade, no cotidiano de sofrimentos e violências por que passam as pessoas que são marcadas pelas diversidades e tratos discrepantes. Cálculo médio de condição de vida esconde as piores e melhores expressões, não mostra distâncias e medidas de discrepância existentes entre uma e outra. Gera um lócus arbitrário inexistente, pois esconde as polarizações reais.
Este texto tem por objetivo tensionar a compreensão dos elementos que distinguem o propósito do Desenvolvimento Social e o da política pública de Assistência Social, tornado, já à partida, entendimento de que não são sinônimos, e nem antônimos, e que suas afinidades são aparentes quando limitadas à presença ao mesmo campo social como aquele em que estão os que não conseguem ser consumidores do mercado e, por isso, considerados “vulneráveis”. Faz-se necessário entender que Política de Assistência Social mantém, conforme Constituição, relação estrutural com a seguridade social, ou seja, seu âmbito está cravado na proteção social, como prevenção e como atenção às desproteções. Regida pela cidadania não é área de benemerência ou filantropia, mas de afirmação de direitos. Não cabe identidade de sentido entre benemerência/ajuda e cidadania; como não cabe atribuir à assistência social o entendimento unidirecional e específico de política de combate à pobreza. Essa interpretação faz um deslocamento do campo econômico favorecedor da concentração de riqueza e de não distributividade que atinge a precarização do valor monetário do trabalho, ampliando indiretamente as taxas de lucratividade privadas.
Entre ação social de governo ou de iniciativa privada e o direito de igualdade de trato pela condição de cidadão ou de direito de cidadania eles se distinguem. Desse modo, aqui é problematizada a construção social e política do Desenvolvimento Social que insiste em colocar o direito à assistência social à margem da garantia constitucional, renegando sua identidade e seu fortalecimento. Tal fato ameaça historicamente a proteção social não contributiva, bem como o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), criando arenas de disputa de lógicas de atuação do Estado. Para tanto este texto, além desta introdução, inicia pelo debate da proteção social, intensificando sua presença/ausência entre Desenvolvimento e Assistência Social; a seguir detém-se em elementos históricos na construção da política pública de Assistência Social, suas gramáticas, institucionalidades e recursos (ARAÚJO; BOULLOSA, 2017, 2015; ARAÚJO, 2015) demonstrando um processo de luta que foi sendo sugado em seus componentes de acesso a direitos socioassistenciais e de gestão democrática. Por fim, evidencia alguns desafios que impactam no presente e futuro de tal política.
2 Proteção Social entre o Desenvolvimento Social e a Assistência Social
O entendimento de proteção social como preservação exige que os padrões de trato e cuidados humanos sejam objetivados e assegurados como direitos humanos e sociais e não somente envelopados sob a nominação de atendimentos, expressão desnutrida de padrões quanti-qualitativos de dignidade e direitos humanos e sociais. É nesse ambiente que se dá o acesso e reconhecimento de direitos socioassistenciais.
A forma como diferentes atores públicos e privados concebem e tratam os direitos socioassistencias (por vezes confusos e equivocados) é difusa. Conforme artigo 6º da CF-88 (BRASIL, 1988), há dificuldades em serem aceitos como direitos de proteção social e como campo de política pública. Porém, é sempre bom destacar que um(a) cidadão(ã), independentemente de idade, gênero, raça ou classe social, requer proteção social pública, o que não significa que ele(a) seja um necessitado(a) social, isto é, um(a) pobre, miserável, vadio(a), “vulnerável” que não conta com renda pessoal para consumir. A prevalência desse entendimento pode guiar, de modo perverso, para uma lógica de maior vulnerabilização das pessoas, uma vez que as ofertas poderão ser pautadas pela lógica da caridade e da benemerência e não pela do direito que deve ser garantido pelo Estado. Além dessas lógicas, cabe ressaltar que o tratamento da garantia constitucional não ocorre quando sob égide do “desenvolvimento social”, que trata a “inclusão” de modo pragmático e fugaz que a esvai de permanência e a encapa com o sentido de prosperidade.
A visibilidade do entendimento da proteção social distributiva como um direito é baixa. Persiste a dificuldade em ser aceita a proteção social como campo de política pública, voltada para efetivação do artigo 6º da CF-88 e garantia de trato da dignidade humana como direito humano e social (BRASIL, 1988).
É preciso entender de vez que assistência social não é política econômica marcada por laivos sociais. Não há como corrigir modelo econômico concentrador com política social sem que esta fique na camada superior de aparências do trato comunicacional. É preciso reconhecer a anterioridade protetiva da assistência social no convívio civilizatório para assegurar a universalidade da dignidade humana. Nesse sentido, assistência social não é política apaziguadora do trato à indignidade humana, e sim, reveladora das demandas que se têm por conquistar e atender.
Desenvolvimento Social e Assistência Social são distintos por natureza e seus objetivos vão além da presença de direitos de cidadania. O campo da assistência social é o da proteção social, que, como política social, pertence ao âmbito da seguridade social. Como proteção social, a direção é a preservação das condições qualitativas da dignidade humana, dos direitos e da cidadania. O desenvolvimento social combina investimentos na dimensão econômica com a humana para obter maior bem-estar de um coletivo. O desenvolvimento social tem sentido programático coletivo, mas não opera com o alcance da certeza social, condição fundante da proteção social: estar e sentir-se protegido das iniquidades da vida em sociedade.
As lógicas subjacentes ao Desenvolvimento Social se coadunam com fases iniciais de construção do Welfare State europeu, que, sobretudo no pós-guerra na Alemanha – perdedora do conflito –, foi fortalecido pela lógica do “investimento social” não apenas para satisfazer demandas e necessidades sociais de modo justo, mas também para aumento da eficiência da economia nacional. Após e ao final de governo de traço socialista, a ideia que ali prevaleceu foi a de que os “necessitados” deveriam aprender a contribuir para sua própria segurança, tendo como ideia-chave a “ativação” (aktivierung), que significa que o(a) cidadão(ã) não apenas é responsável por manter sua própria capacidade de ganho, mas também deve fazer provisões privadas para sua própria segurança, ou seja, deve poupar (OFFE, 2023). Tem-se aqui a proposta segundo a qual a proteção social é de âmbito individual, e não coletivo ou civilizatório4.
A conexão e, ao mesmo tempo, a distinção entre Desenvolvimento e Assistência Social residem na universalização. A condição de direito implica em que ele seja reconhecido, respeitado e reclamável, portanto domínio de uma política pública social assentada na relação Estado e sociedade. O Desenvolvimento Social resulta de um investimento programático de um governo, que não implica em exigência de extensão a todos na mesma condição ou situação. A noção de direito movimenta atenção no sentido de prover garantias, o que exige compromisso com a solidariedade humana.
Sabido é da presença de interdições ao exercício da fraternidade, igualdade e equidade, embora há muito tempo presentes nos brados da sociedade. Isso exige que a solidariedade entre humanos seja resultado de pacto social que tenha meios, metas e concretizações e não só um sonho que se entenda poder contar ou esperar.
A força da distinção entre Desenvolvimento e Assistência Social reside na presença constitucional do acesso a direitos socioassistenciais a quem deles necessitar, o que significa dar provisão de atenção e cuidados de proteção social a determinadas necessidades materiais ou imateriais sob financiamento estatal.5 Os direitos socioassistenciais pertencem à Seguridade Social, pois a Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) unificou, sob propósitos comuns, os direitos à Saúde, à Previdência Social e à Assistência Social. Um tripé que nem sempre é muito fácil ser entendido como de direitos, ou de assim ser reconhecido. Com essa nova construção, alargou-se a cobertura estatal pública da proteção social, nela incluída a Assistência Social. Passados 30 anos, entende-se que a Segurança Alimentar e Nutricional deveria ser incluída como parte da Seguridade Social brasileira.
Defende-se que não sejam aplicados entendimentos difusos e confusos sobre o sentido constitucional aplicado à política de Assistência Social ao mencionar “a quem dela necessitar”. Isso pode não significar que o usuário da política pública deva ser alguém sem capacidade própria de consumo, ou nominado, no jargão popular, como um necessitado. Há um bom tempo, Sonia Fleury Teixeira esclareceu que esse entendimento é o da “cidadania invertida” na qual o(a) cidadão(ã) precisa mostrar que não é, que não tem, para que seja aceito como detentor de um direito social, ao se reconhecer um(a) não cidadão(ã), diante de atributos jurídicos e institucionais que podem reproduzir lógicas caritativas e benemerentes, mesmo quando as ofertas possam ser exercidas por instituições públicas estatais (FLEURY, 1989)6. Cidadania, como certeza social, implica em ser incluído e ter o direito social garantido por ser parte de uma condição genérica e não de uma condição específica, sobretudo se relacionada a perda/inexistência de atributos.
Como explica Sping-Andersen, desde a década de 90, uma política social só o é pelo fato de “desmercadorizar”7 uma atenção (SPING-ANDERSEN, 1991). Serviços de Saúde, de Educação não exigem comprovação em ser necessitado social, somente a condição de ser uma ou um cidadão. Por óbvio que preside o uso de qualquer serviço ou atenção a necessidade de frequentá-lo. E essa necessidade não é igual para todos(as) e ao mesmo tempo. Por vezes a proximidade da necessidade de proteção social, que implicaria em acesso a uma mercadoria, torce o entendimento do direito ao acesso para o campo da benemerência. Tem-se aqui um reverso negativado do alcance de um direito.
O que se desmercadoriza na proteção social? Esta é uma questão que, embora quase imexível, consegue-se movimentar ao conjugá-la com as seguranças socioassistenciais, quais sejam:
segurança de sobrevivência- nenhum ser humano deve viver sob condição sub-humana, que, além de colocar sua dignidade em risco, subtrai as condições de sua própria vida. Deve o brasileiro, o refugiado, o migrante ter o direito a receber roupas, alimentação, abrigo, escuta e condições para reagir aos riscos sociais;
segurança de acolhimento e abrigo- nenhum ser humano deve viver sob abandono em qualquer idade, gênero, etnia, credo, entre outras diversidades. Proteção social é relacional e implica em condições objetivas de contar com que/com quem lhe possa ministrar cuidados e atenções, que devem ser providas mesmo que o cidadão não tenha recursos para adquiri-las, como provisão em centros de acolhida permanentes para diferentes situações; centros-dia; cuidados domésticos que incluem higiene e alimentação; e cuidados de saúde, sempre sob gestão democrática. Essa segurança social se estende à superação de ocorrências emergenciais que geram desabrigos ocasionados por fenômenos naturais, acidentes atmosféricos, entre outros que levem à morte, ferimentos graves e perda de moradia;
segurança de convivência- promover a saída do isolamento, a ruptura da solidão e a presença do diálogo são movimentos relacionais que geram referências, apoios, promovem a aproximação, a associação sobretudo entre aqueles que, sob vivência de situação/condição similar, identificam-se pelas carências fazendo emergir novas forças de encontros coletivos pela identidade de carência e busca de sua superação;
segurança de autonomia- busca de construção de novas formas de representação social de necessidades e demandas;
segurança de renda- a monetarização dos acessos gera interditos que demandam mecanismos emergenciais ou permanentes para garantia da sobrevivência e da redução do sofrimento;
segurança às vítimas de violências e discriminações- especialmente deve ser voltada à criança e ao adolescente, à mulher, à pessoa idosa, à pessoa com deficiência, às pessoas negras, à comunidade LGBTQIA+, aos migrantes e refugiados(as), entre outros públicos que devido aos seus marcadores sociais de diversidades passam por opressões, violações de diretos e violências, chegando a exigir até mesmo sua proteção física face às ameaças e riscos que enfrentam.
3 Assistência Social – Desenvolvimento Social: apontamentos históricos
A decisão da CF-88 de realizar a expansão da proteção pública estatal exercida pela Seguridade Social foi uma novidade. As políticas sociais no Brasil foram instituídas em tempos e situações diversas, sob identidade individual, responsabilidades e orçamentos específicos. Atuaram (e ainda atuam) isoladamente mesmo quando seus serviços eram avizinhados em um só território. À Saúde, um direito de todos, não só do trabalhador formal, coube operar os serviços, historicamente vinculados à Previdência e à Assistência Social, junto à Legião Brasileira de Assistência (LBA). À Previdência Social coube a gestão do seguro, uma proteção contributiva, de natureza trabalhista, substitutiva da remuneração salarial do trabalhador formalizado. Já a Assistência Social assumiu a responsabilidade pela gestão do benefício não contributivo de Renda Mensal Vitalícia, até então de gestão previdenciária, que foi nominado pela Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), em 1993, como Benefício de Prestação Continuada (BPC). Além das heranças, o campo dessas políticas sociais foi ampliado por conquistas científicas, técnicas e, sobretudo, aquelas resultantes de lutas sociais de movimentos sindicais e sociais. Todavia isso não significou ainda suas identidades territoriais, onde, sob uma possível complementariedade de ações, operam com a mesma população.
A Seguridade Social distinguiu em uma só unidade a proteção social contributiva, em separado da não contributiva ou distributiva. Porém, para se constituir campo de proteção, não bastava à Assistência Social operar um benefício monetário às pessoas idosas com trajetória de trabalho informal ou com tempo incompleto de contribuição para a Previdência Social, mesmo que acrescidas das pessoas com deficiência, desde seu nascimento até a morte. Era preciso construir o campo da política de proteção social distributiva, o que implicou consolidar novas responsabilidades do Estado Social brasileiro face às desproteções vivenciadas pela população e o rompimento com histórico complexo pautado no assistencialismo, na ausência de direitos humanos e sociais e na falta de transparência na relação público-privado.
Ocupar esse campo é uma lide contínua em enfrentamento com ideias políticas da esquerda à direita passando pelo centro. Favorecer a proteção social pela religiosidade ou pelo positivismo político persiste como algo fora do Estado, pois seria um território da sociedade civil a exercê-la, fosse pela filantropia ou pela benemerência.
A proteção social distributiva, isto é, caso não implique na disciplina de imposição de condicionalidades, é moralmente barrada e considerada não educativa, tuteladora, assistencialista, favorecedora da dependência, no caso, uma antítese do protagonismo desejado do desenvolvimento e empreendedorismo social.
A ocupação parcial do campo da Assistência Social no Brasil, até a CF-88, não se deu na gestão direta do Estado, pois, ainda que sustentada com verbas públicas, se manteve sob o poder das esposas de governantes. Em 1942, foi criada a (Fundação) Legião Brasileira de Assistência (FBLA), inicialmente com o objetivo de apoiar famílias de combatentes brasileiros na Segunda Guerra Mundial. Com o tempo, sua ação foi se complexificando, incluindo unidades de atenção à maternidade e à infância por meio de centros sociais inundados de clubes de mães, sob orientação higienista da puericultura.
A máquina federal do que poderia vir a ser institucionalizado como campo da Assistência Social era o espólio da FLBA em instalações, sobretudo no Nordeste, e de trabalhadores, servidores federais. Se a infraestrutura de saúde passou de pronto para o Ministério da Saúde, o mesmo não aconteceu com a Assistência Social.
Foram momentos tormentosos entre 1988 e 1995. A aprovação da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) após o veto de Fernando Collor de Mello, que optou pela manutenção da LBA, foi uma luta vigorosa, que só alcançou resultados em 1993 com Itamar Franco. Collor manteve a primeira-dama na presidência da LBA atravessada por escândalos de corrupção por desvio de verbas públicas e isenções imorais de impostos e tributos aplicadas pelo uso de falsos certificados de filantropia às entidades vinculadas a parlamentares, os chamados “Anões do Orçamento”.
Os anos turbulentos foram marcados pelos embates entre os ventos da pressão popular organizada sobre velhos modos de ver – ou esconder – os direitos sociais. A Secretaria de Estado de Assistência Social (SEAS) foi recriada, no Ministério da Previdência e Assistência Social (MPAS), e nova gestão democrática e paritária foi consolidada no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS). O Presidente ernando Henrique Cardoso extinguiu a LBA em 1995, mas manteve a gestão da primeira-dama, no Programa Comunidade Solidária, com ações focalizadas com organizações da sociedade civil. O peso político desse Programa presidencial foi fortalecido por seu vínculo com a Campanha de Combate à Fome, assentada na incidência de 32 milhões de brasileiros em estado de subnutrição.
Em 1996 começa a operação na SEAS do BPC e do Programa Erradicação do Trabalho Infantil (PETI). Os serviços procedentes da extinta LBA foram mantidos por diretorias regionais. Até 2002 não foi possível estabilizar o campo de proteção social distributiva uma vez que permaneciam os resquícios da gestão patriarcal exercida pelas primeiras-damas. A ausência de perspectiva de gestão sistêmica e federativa para a Assistência Social se manteve praticamente inalterada nesse período.
Em 2003, reacendeu no país o movimento pela efetiva implantação da LOAS – que acaba de completar 28 anos, em 07 de dezembro de 2022. Após uma década, a lei não se fazia presente em todo o território nacional. O primeiro governo de Luís Inácio Lula da Silva, em 2003, instituiu o Ministério de Assistência Social (MAS), sob a liderança de uma mulher negra, a então deputada federal Benedita da Silva. De forma concomitante instalou, no Gabinete da Presidência, uma comissão de experts sem vínculo com a gestão do MAS para desenhar um programa de transferência de renda de modo a unificar subsídios monetários/isenções existentes sob diferentes órgãos, que já mantinham o uso do CADÚnico, implantado no Governo Fernando Henrique Cardoso, sem contar, contudo, com unidade de trato monetário.
Em 2004, o MAS foi extinto, e a gestão de seu conteúdo rebaixada para uma Secretaria Nacional integrada ao novo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Desde então a assistência social passou a ocupar uma posição secundária na gestão federal, embora tenha sido, em boa parte, recuperada com a implantação do Suas – Sistema Único de Assistência Social –, que trouxe à cena os municípios. O SUAS resultou de um movimento dos munícipios que lutaram para instalar a IV Conferência Nacional de Assistência Social em dezembro de 2003, com realização de uma bienal, confrontando dispositivo do governo FHC que alterara os intervalos para período quadrienal. O tema dos 10 anos da LOAS, de 1993, mostrou que se tratava de um novo momento histórico, em que, finalmente, a assistência social assumia lócus administrativo próprio de gestão e saía do teto da Previdência Social. Ali germinou a proposta do SUAS finalmente delineado na Norma Operacional Básica – NOB de 2005, posteriormente inserido na Lei Federal nº 12.345/20118.
Razões variadas para essa decisão foram formuladas, prevalecendo: primeiro, o desconhecimento da proteção distributiva e seus serviços, pois o entendimento era o de que o Ministério da Assistência Social (MAS) seria um órgão para operar um benefício, o BPC e seus recursos. Com essa compreensão fragmentada sobre a Assistência Social federal, ela era entendida como uma ação tão só de Brasília que expressava o MAS como lócus de gestão do BPC (por isso advogados e usuários nominam o BPC de “o LOAS”). Além disso, havia uma avaliação de que o grupo dirigente do MAS era frágil para dirigir um programa nacional de transferência de renda. Esses eram argumentos redutores da proteção social distributiva e só expressão da proteção social monetarizada. Não estava presente a noção de serviços socioassistenciais, de seguranças sociais que operavam desde os municípios. Prevalecia a leitura do poder central, e assistência social era só a concessão de benefício. Importante destacar que a construção, em 2003, do programa de transferência de renda – o Bolsa Família – não contou em sua equipe, com nenhum dos profissionais específicos da assistência social.
Entendeu a superior administração que o campo da assistência social não apresentava densidade (técnica, política e administrativa) para constituir um Ministério ou para coordenar o Programa de Transferência de Renda, o Bolsa Família. A gestão das transferências monetárias foi gradativamente sendo retirada da Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS) e deslocada para outros órgãos, como ocorreu com BPC para o INSS. A transferência de renda constituiu uma secretaria própria com gestão paralela à SNAS, no caso, a Secretaria Nacional de Renda de Cidadania (SENARC), que, durante a gestão do Governo Bolsonaro, se bifurcou em Secretaria de Cadastro (SECAD) e Secretaria de Renda de Cidadania (SENARC).
A construção do conteúdo da proteção social distributiva foi historicamente refém de operações monetarizadas, gestão centralizada e fragmentada em diferentes órgãos, operados sob ausência de vínculos entre a descentralização, participação e canais institucionais de uso contínuo pelas unidades de gestão federativa. Não houve o entendimento da dimensão federativa das atenções herdadas da LBA, que incluíam desde vagas de creches a atenções a idosos e a pessoas com deficiência. Não se enxergou ou reconheceu a Assistência Social no Executivo Federal como política pública de direitos!
Como se pode perceber, até então, a Assistência Social não ganhara hegemonia, visibilidade da sua presença federativa na construção de rede de serviços socioassistenciais. Fazia falta a aprovação de uma Política Nacional de Assistência Social (PNAS) que pudesse construir o conteúdo dessa política de proteção social para além da monetarização, ocorrendo sua aprovação em outubro de 2004. A regulação dos serviços socioassistenciais enquanto ofertas continuadas e tipificadas da política só ocorreu em 2009.
Nos governos Dilma Rousseff, seguiu-se com o MDS e a SNAS, aprofundando a lógica do Desenvolvimento Social, principalmente por meio do Programa Brasil sem Miséria, lançado em junho de 2011 com o objetivo de retirar da situação de pobreza extrema 16,2 milhões de pessoas que viviam com menos de R$70,00 por mês. Houve uma tímida expansão de novos serviços socioassistenciais e supervalorização de instrumentos como o CadÚnico.
O caminho de enfrentamento e luta para superar o precário reconhecimento da Assistência Social, como nos esclarece a LOAS, dever de Estado e direito de cidadania, parece encontrar significado no âmbito da disputa argumentativa quanto ao nexo do seu campo com a Seguridade Social ou com o Desenvolvimento Social. A natureza, a finalidade e o lócus dessa política pública se altera em um e outro argumento, sobretudo no que concerne aos objetivos do Sistema Único da Assistência Social (SUAS).
O vínculo da Assistência Social com a Seguridade Social a revela, em sua maior inteireza, como parte de um sistema articulado de garantias de proteção social distributiva que busca garantir um conjunto específico de direitos sociais. Sua natureza justifica e orienta, de modo mais direto, sua finalidade realizadora enquanto política pública federativa, assumindo a configuração de sistema único com operação alargada, em estrutura e responsabilidade, um metainstrumento de política pública, para além da organização de benefícios, serviços e programas ofertados pelas unidades públicas e parceiros da rede privada. O SUAS é também um modelo de gestão participativa e colaborativa, que poderia ser facilmente descrito como um exemplo importante de construção e deliberação coletiva. Como lócus, lida-se também com uma disputa ontológica sobre a força das/os trabalhadoras/es do SUAS (assistentes sociais, psicólogas/os, gestoras/es, educadoras/es sociais, cuidadoras/es sociais, advogadas/os, entre outras/os), uma categoria que ainda luta pelo devido reconhecimento social e político enquanto implementadores/as de uma política pública de direitos, que devem atuar de modo crítico e engajado nos serviços socioassistenciais.
Enquanto parte do Desenvolvimento Social, a Assistência Social recebe tratamento ausente da lógica de direitos e se perde como operadora de um sistema, pois a pauta do crescimento objetiva o que é nominado de "portas de saída", isso é, um processo de estímulo ao esforço individual, ficando sua atuação mais facilmente refém daquele passado assistencialista, em competição com outras demandas e interesses. Corre o risco de se perder ou se encontrar tão só como algo restrito à atenção passiva e mais obediente dos pobres, necessitados de transferência desde que cumpram as condicionalidades, privados de qualquer canal ascendente de comunicação entre as unidades federativas e os cidadãos.
É importante aqui destacar que a lógica do Desenvolvimento Social está diretamente atrelada à atividade laboral remunerada vitalícia e sem alternativa, o que até poderia ser aceitável se realmente houvesse oportunidades iguais e a qualquer momento, com certa confiabilidade e segurança para o(a) trabalhador(a). Mas não ocorre assim, por razões circunstanciais e secundárias, fazem com que o trabalho remunerado seja cada vez mais duvidoso na sociedade capitalista. Além disso, há a desvalorização do trabalho fora da esfera do trabalho remunerado, como aquele relacionado aos cuidados, à criação dos filhos, à atenção a pessoas idosas e com deficiência etc. (OFFE, 2023).
Em suma, Desenvolvimento Social é um campo complexo com diferentes acepções. Embora importante para o desenvolvimento econômico, seria necessário que envolvesse outras questões civilizatórias, além dos binômios pobreza e riqueza, econômico e social, fiscal e social. A concepção de direitos sociais, equidade, incorporação e defesa das diversidades, combate às desigualdades, produção e circulação de informação, gestão democrática, avaliação e mobilização social, participação social e avanço civilizatório são princípios essenciais na gestão da assistência social e complementares, se é que presentes no desenvolvimento social.
4 As ameaças e desafios do SUAS sobre a égide do Desenvolvimento Social
Colocar em prática o SUAS, implementá-lo, com toda a sua complexidade, requer compromisso de gestores, representação e manifestação de trabalhadores, presença e representação de usuários de serviços e de benefícios, para que possa ser produzida efetiva construção e implementação articulada de serviços socioassistenciais, desde sua base operacional. A Rede Socioassistencial do SUAS, sob gestão indireta de serviços socioassistenciais implementados por organizações da sociedade civil (OSC) ou por gestão direta de unidades públicas, precisa avançar com relação aos vínculos entre implementadores de serviços buscando melhor definir padrões das ofertas, relações territoriais, formas de gestão democrática inclusive com relação à representação de usuários(as) em todos os processos. É necessária a articulação entre unidades de referência, benefícios e transferência de renda, atenções e cuidados providos por serviços socioassistenciais geridos diretamente ou por OSC capazes de, juntos e de modo orgânico com papéis bem definidos, garantir os o direito à Assistência Social e afiançar as seguranças sociais previstas no desenho do sistema. Requer também um nível de profundidade que só a participação social e a incorporação de suas gramáticas (valores, conceitos, práticas) peculiares são capazes de proporcionar (ARAÚJO; BOULLOSA, 2017, 2015; ARAÚJO, 2015).
O SUAS é um modelo de gestão que poderia facilmente ser descrito como uma espécie viva, e vivente, de deliberação pública. Sua natureza de expansão e consolidação por meio da participação se apoia em conferências, conselhos, comissões tripartites e bipartites, fundos, representantes de usuários de serviços e de benefícios desde a instância de gestão local. Outras instâncias de diálogo e deliberação, como as frentes parlamentares, desde as Câmaras Municipais e aproximação de Defensoria Pública, estão inserindo em sua agenda as questões que se põem para a proteção distributiva.
Essa relação de caráter interinstitucional, intersetorial, interdisciplinar com identidade territorial exige que o SUAS e seus protagonistas saiam de redomas e expressem o que se observa na realidade e sobre o padrão de respostas operadas. É preciso crescer na construção do conhecimento da demanda reprimida superando a informação, que nada diz, de atendimentos realizados, que não permitem a informação efetiva do que foi feito, daquilo com que o usuário ou o beneficiário de fato pode contar.
Trata-se o SUAS de um modelo que, por ser vivo e orgânico, precisa enfrentar desafios relacionados a sua estabilidade e resiliência. E nisso ainda temos muito o que caminhar, não obstante os avanços alcançados antes do golpe jurídico e parlamentar de 2016.
O SUAS sob o foco do Desenvolvimento Social perdeu centralidade e projeção político-institucional, operando por usos e costumes, como se sua existência já estivesse “naturalmente” posta, resultante de procedimentos burocraticamente operados pelo fato de que já estariam ativados. Isso não pode ser considerado uma verdade. O resultado que se tem é o de um sistema que possui dificuldades de criticamente ver a si mesmo, em sua natureza desde a instância local até a federativa, recebendo pouca ênfase nas argumentações dos/as decisores/as políticos/as. Trata-se de uma política pública pouco reconhecida como espaço de produção articulada de direitos, pois suas demandas e ações são reorganizadas e adaptadas em função de outras políticas. Traça-se um perfil subalterno de gestão sem protagonismo.
É preciso reafirmar que as gestões federais da Assistência Social entre 2016 e 2022, com o golpe jurídico e parlamentar, foram agudizando restrições à concretização de direitos sociais, à aplicação de princípios democráticos na gestão nacional do SUAS, que sofreu cortes intensos que deixaram sob penúria a orçamentação para a manutenção da rede nacional de serviços socioassistenciais. O (des)governo de Jair Bolsonaro despiu a gestão federal da Assistência Social, tornando-a inócua na coordenação federal do SUAS, transferindo parte de suas competências para outros ministérios, tornando cada vez mais ausente a unidade de comando da política pública, como o fez com outras políticas como a de saúde, tendo como resultado pretendido a fragmentação e o desmonte.
Seguridade Social e Desenvolvimento Social são, portanto, campos que têm suas próprias disputas, público e demandas. A proteção social deve ser oferecida pela garantida do direito, por meio da Assistência Social prestada pelo Estado, com acesso direto, fácil, tipificado, em unidades preparadas, por profissionais bem formados/as, como parte de um sistema sólido, reconhecido, bem operacionalizado, acolhedor, estável, mas também sensível e reflexivo, como deve ser o SUAS. Tudo isso é muito mais fácil quando a Assistência Social é discursiva e politicamente parte da Seguridade Social, com o protagonismo que qualquer sistema, que se pretenda único e universal, deve ter. Limitá-la à parte, mesmo que importante, de um campo mais amplo – o do Desenvolvimento Social – significa alterar sua natureza e propósito. Denota também desconsiderar um movimento político pela expansão dos direitos sociais que ainda está em curso no país afetado por retrocessos como os que temos visto nos últimos anos.
Tal movimento teve seus alcances ancorados em um processo intenso de participação social. Olhar a sua trajetória é também perceber nossos movimentos sociais na construção das profissões da Assistência Social e dos cursos de formação para conceber a trajetória da política no país. Como resultado, temos um SUAS que nos oferece um passado e um presente construídos por e apoiado em conferências, conselhos, comissões tripartites e bipartites, fundos, além de outras instâncias de diálogo, consulta e deliberação.
O SUAS, mesmo com seus ainda inúmeros problemas, deve ser reconhecido como um modelo concreto e brasileiro de deliberação pública de garantia de direitos sociais de proteção social. Um modelo, contudo, que, por ser vivo e orgânico, precisa enfrentar desafios relacionados a sua estabilidade e resiliência. E nisso ainda temos muito o que caminhar, não obstante os avanços alcançados antes do golpe contra a democracia e a presidenta Dilma Rousseff.
5 Desafios do presente... E, o futuro do SUAS?
Neste urgente presente, grandes desafios precisam ser enfrentados como: sentidos e significados da assistência social no Brasil, seu lócus de produção e a incorporação da perspectiva interseccional ao SUAS. Tudo isso está associado à dissolução do “apartheid” de trato pela aplicação de números e algoritmos, priorizando a forma digital ausente de escuta, representação e manifestação.
A multiplicidade de entendimentos sobre a presença e o alcance da política de assistência social parece que é customizada por diferentes grupos de interesse ou de tradições ideológicas e políticas que subtraem o entendimento e sentido do SUAS para a superação de desproteções sociais vividas pelo(a) cidadão(ã). Assim o debate é marcado por disputas argumentativas que alguns acreditam que estariam superadas, mas que retornaram com força na atual conformação social cada vez mais marcada por afetos como medo, ódio, desespero e outras expressões produzidas por uma afetação mais ampla de um abandono público politicamente produzido. Sem retomar caminhos e buscando unidade de entendimento e seus impactos políticos de compromissos assumidos, não será possível produzir avanços9.
Pares nessa jornada entusiasmados com a volta de um governo de ampla frente progressista, com Lula no comando, consideram que naturalmente seria retomada e bem-sucedida a caminhada pela defesa da Política de Assistência Social, desde onde, argumentativa e valorativamente, se estava em 2016. Não vamos! É preciso mais do que a inércia!
Portanto um desafio fundamental se encontra entre sentidos e significados da Assistência Social no Brasil. Logo de cara, ele nos remete para uma emocionada arena política em que disputas entre compreensões antagônicas da relação não só entre Estado e Sociedade, Estado Social e Estado Fiscal, entre indivíduo e coletivo, entre público e privado, mas também entre Assistência Social e assistencialismo, universalização e focalização, transversalidade e interseccionalidade. São valores em debate que conformam parte do jogo em torno dos direitos socioassistenciais como campo político, mesmo quando não são explicitados. Construções de sentido que se imaginava incorporadas se fragilizaram. Há um retrocesso em disputa de cunho valorativo, no qual os terrenos e tecidos já ganhos, que ainda eram pouco articulados entre si, não tiveram forças suficientes para resistir aos ventos ultradireitistas, liberais e opressores (aporofóbicos, sexistas, racistas, capacitistas etc.) do desastroso governo Bolsonaro.
Trazer tais questões não se limita à alteração da semântica, mas a um processo de legitimação, incorporação e prática de gramáticas do SUAS (ARAÚJO, BOULLOSA, 2017, 2015; ARAÚJO, 2015) na institucionalidade federal, na Secretaria Nacional de Assistência Social (SNAS) e no Ministério de Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate a Forme-MDS e demais órgãos gestores subnacionais responsáveis pela pasta. Significa avançar para romper com possíveis dicotomias que possam existir entre fato e valor, nas análises e práticas de implementação do SUAS. É necessário entender que a linguagem não é apenas um instrumento de comunicação e que a as políticas públicas são argumentações, para além de lógicas prescritivas e normativas, implicando nas práticas comunicativas e políticas para construir e refletir realidades sociais diversas por meio de ações baseadas em crenças, ideologias, identidades e poderes.
Muitas vezes a retórica é que justifica o uso de termos como “desenvolvimento social” ou “cidadania”, considerando-os como nominação avançada pois, a partir de ideias estereotipadas, é considerado que Assistência Social remete ao “assistencialismo” e a um isolacionismo que não dá conta, por exemplo, de abarcar ações intersetoriais de proteção social. Na prática, não é pela nominação que ocorre, ou não, a efetiva intersetorialidade, mas talvez por falta de entendimento e conhecimento sobre a importância estratégica do setor de Assistência Social. Não se trata também de “separar o joio do trigo”, mas do reconhecimento e fortalecimento de espaços setoriais para que, inclusive, tenham poder para dialogar e trabalhar conjuntamente de modo mais efetivo. Nesse sentido, é preciso criar um espaço estabilizado de integração e representação dos interesses e demandas sociais que fortaleça: atores coletivos (trabalhadores/as, usuários/as, sociedade civil, leigos etc.); práticas institucionais (envolvendo regras, instrumentos, orçamentos, escolhas organizacionais etc.); e a cognição referente à visão dos atores sobre esse ambiente, seus limites e o que deve ser praticado nas ações públicas do SUAS.
Além disso, fortalecer o sentido e significado do SUAS remete à ideia de um sistema discursivamente pouco resiliente em termos de políticas públicas, reforçado institucionalmente pelo desamparo do órgão gestor federal, que perdeu sua coordenação interfederativa. Chama-se a atenção para o fato de que é necessário entender que linguagem, argumento e discurso são elementos essenciais de políticas públicas (FISCHER, 2007), para além de lógicas prescritivas e normativas. É por meio deles que transitam os valores, o que deveria ter nos levado para práticas comunicativas mais dialógicas, capazes de ampliar o debate público, as arenas públicas. O não enfrentamento desse desafio, que tem a ver com a falta de protagonismo do SUAS nos últimos anos, fez retroceder para um ponto ainda mais tenso de disputa de ideias. Não retomar o protagonismo é um erro que não se pode mais repetir!
O SUAS é uma conquista histórica num contexto do Estado Social que é complexo e em constante mudança frente às lógicas do Desenvolvimento Social. Como aponta Offe (2023), é como se pensasse num prédio que tem porão. No porão está o bem-estar social moderno para os pobres, que muitas vezes é comunitário e consiste em benefícios financeiros. No primeiro andar está a autorização para atuação dos sindicatos para a defesa dos(as) trabalhadores(as). No segundo andar estão os seguros, transferências obtidas mediante contribuições trabalhistas, em caso de velhice, desemprego etc. No terceiro andar estão as transferências sociais, como os abonos-família e benefícios educacionais, que são extremamente novos em alguns países. Não estão ligados a relações de trabalho, mas sim à condição de cidadania (OFFE, 2023).
Outro desafio tem por referência o lócus de produção da Assistência Social e sua materialidade expressa principalmente em benefícios, redes de serviços socioassistenciais e de modo complementar algumas atividades para programa de transferência de renda, que, de fato, não são geridos pela SNAS, e sim, pela SENARC e não pertencem ao SUAS. Por seu caráter de proteção social não contributiva, historicamente tem lidado com lugares secundários na configuração institucional dos executivos das instâncias federais, estaduais e municipais, muitas vezes incorporada como secretaria especial ou como superintendência – situação muito diferente da Previdência Social, da Saúde e de outras políticas públicas.
Como já tratado, no âmbito federal, a assistência social já foi parte ou “puxadinho” de diferentes ministérios, tais como Cultura e Cidadania (como Secretaria Especial de Assistência Social). Após a redemocratização, só durante os governos petistas é que passou a ser objeto de um ministério próprio. É interessante observar a transitoriedade das institucionalidades e nomenclaturas dadas ao órgão gestor federal da política. Não é exaustivo relembrar que, quando da criação da LOAS, chamava-se Ministério do Bem-Estar Social. Em 1995, foi criada a Secretaria Nacional da Assistência Social, vinculada ao retomado Ministério da Previdência e Assistência Social. Entre 2003 e 2004, ensaiou-se o Ministério da Assistência Social, que logo virou o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS). Em 2018, passou a ser o Ministério da Cidadania, que, embora a nomenclatura soasse como mais próxima da Assistência Social, ao contrário, distanciou-se ainda mais, fazendo com que o SUAS agonizasse.
A Assistência Social fica escondida, sem o protagonismo devido, porque ainda é praticada como uma instância de assistência ao povo, erroneamente tratado como os “vulneráveis” ou vista como a política para atender aos “pobres”. Historicamente se trata de um campo, visto como próprio de uma natureza muito mais privada, no sentido tanto do indivíduo que “recebe” seus efeitos quanto de quem o “distribui”, do que propriamente coletiva. Então, ao colocá-la como parte de estruturas mais amplas de direitos sociais, facilita-se também o uso oportunístico de seus conteúdos, que deveriam ser públicos. É uma forma histórica de privatização da garantia de direitos, que se torna mais evidente em tempos de eleições, como aconteceu recentemente de modo notório, não obstante as inúmeras denúncias.
Os profissionais dos 8.545 Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), que atuam na Proteção Social Básica, com caráter mais preventivo dos riscos e vulnerabilidades sociais, apesar dos avanços, são insuficientes e irregularmente distribuídos pelo país, tendo de dar conta de muitas demandas dentro da lógica instrumental do desenvolvimento social. O CadÚnico, por exemplo, tem pouca sensibilidade para as necessidades concretas de prestação dos serviços socioassistenciais regulados pelo SUAS – aliás, aquele deveria estar a serviço do SUAS e não o contrário, embora essa seja uma matéria para outra discussão. A situação se torna ainda mais grave quando passamos para a realidade dos ainda mais escassos 2.780 Centros de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS), dos 300 Centros de Referência para a População em Situação de Rua (Centro Pop), dos 1871 Centros-dia de Referência para Pessoas com Deficiência, entre outras unidades que ofertam serviços socioassistenciais, com profissionais em estado de forte pressão (CENSO SUAS, 2022). Aliás, é importante frisar que tais profissionais não se reconhecem valorativamente, tampouco gramaticalmente, no campo do Desenvolvimento Social. Não se dizem trabalhadoras(es) do desenvolvimento social, mas da Assistência Social, do SUAS, de suas unidades e serviços.
Outro desafio diz respeito a uma necessária perspectiva interseccional para promover mais concretamente uma sociedade mais inclusiva por meio do SUAS. Este, enquanto sistema público, precisa avançar quanto à responsabilidade da não reprodução dos padrões de desigualdade hoje encontrados no Brasil. É preciso entender que tais avanços devem estar entrelaçados com as condições objetivas da população brasileira nas quais as desigualdades são marcadas pelas relações de gênero, de raça, da faixa etária, dos territórios vividos, e, ainda, pelo grau de presença de condições relacionais de segurança social. Por isso, é preciso garantir, além da segurança de renda, outras seguranças afiançadas em todo o arcabouço normativo do SUAS (seguranças de sobrevivência, de acolhida, de convivência, de desenvolvimento de autonomia, com apoio de benefícios materiais ou em pecúnia) considerando as intersecções que marcam os/as seus/suas usuários/as.
Não dá para pensar nas ações de governos e nas ações públicas, que envolvem mais atores, como caixinhas separadas. Sujeitos/as sociais sobre os/as quais recaem tais ações não sentem ou sofrem discriminações e opressões em caixinhas. O sofrimento, a fome, a pobreza, a dor têm de ser analisadas sob prisma interseccional, como já ensinaram os feminismos negros. Quem sente, quem se afeta não sente por partes. As afetações são complexas e, para além do combate às privações materiais, torna-se necessário atentar para outras dimensões menos tangíveis que afetam pessoas vulnerabilizadas, tais como a subalternidade, a vergonha, a baixa autoestima, o medo, a falta de esperança, a baixa capacidade de agência, o pouco empoderamento, entre outros fatores amplamente tratados na literatura especializada. Para lidar com tais fatores, certamente é preciso fortalecer serviços socioassistenciais numa perspectiva de respeito às diversidades, ao combate aos preconceitos e desenho de ofertas considerando que não existem, por exemplo, apenas mulheres, mas mulheres negras, LGBTQIA+, indígenas, com deficiência, de comunidades tradicionais. Temos de avançar no SUAS com relação às abordagens sobre discriminação que consideram a subinclusão, ou seja, quando nos processos discriminatórios a diferença torna invisível um conjunto de problemas; bem como, a superinclusão, quando a própria diferença é invisibilizada (CRENSHAW, 2012).
Em outras palavras, o SUAS precisa trazer para si uma natureza democratizadora que considere e respeite a essência das diversidades, o que ainda não foi suficientemente problematizado. Isso fica ainda mais explícito quando se observam as limitações do CadÚnico quanto à exigência daqueles que demandam acesso às ofertas socioassistenciais. Tal instrumento, na atual estrutura do federal, parece ganhar centralidade na política pública enquanto fim em si mesmo, ainda que entendamos a sua inexorável utilidade para a gestão do Programa Bolsa Família, dos benefícios e serviços socioassistenciais, entre outras ofertas. Ferramentas de gestão da política de Assistência Social não podem ser operadas apenas por homogeneidade de lógica numérica e algoritmos. A lógica deve ser outra, pois se trata de uma política pública que lida com necessidades e demandas materiais e não materiais. É preciso que o CadÚnico esteja a serviço do SUAS e não o contrário.
Enfim, o enfrentamento desses desafios passa pela defesa e afirmação da Assistência Social na institucionalidade dos órgãos gestores da política pública, implicando no reconhecimento não apenas nominal mas de sentido de garantia de direitos. Durante a equipe de transição do novo Governo Lula, após diagnósticos e exaustivos debates, o Grupo de Trabalho de Desenvolvimento Social e Combate à Fome clamou pelo Ministério da Assistência Social, podendo esse incorporar outras seguranças sociais, como a Segurança Alimentar e benefícios monetários, com trato permanente e gestão federativa democrática, priorizando a escuta e demandas dos(as) usuários(as)-cidadãos(as) do SUAS. A esperança era inclusive que isso gerasse uma onda de replicação nos níveis estaduais e municipais em termos de secretarias. Tais defesas foram para reforçar que é preciso trazer o SUAS de volta para ao centro do debate e da institucionalidade política! A materialidade do sistema deve se dar essencialmente pela garantia da oferta de serviços socioassistenciais articulados intra e intersetorialmente, com referência e contrarreferência claras, com fluxos de atendimento, acompanhamento e encaminhamento bem definidos, considerando as capacidades estatais da diversidade de municípios do Brasil. Incorporar a essência do SUAS e seus sentidos à nova institucionalidade que era criada por meio de um ministério era fundamental para saber por onde nos guiaremos.
Tratou-se, portanto, da defesa da legitimidade da Assistência Social realizada em um ministério próprio, como um campo singular de políticas públicas, sem o risco de (mais um) apagamento dentro de um hiperbólico ou metonímico “desenvolvimento social”. Legitimar a política por sua essência é necessário a fim de que se fortaleçam as coalizões para uma reconstrução do pacto federativo visando ao fortalecimento da Assistência Social enquanto política pública garantidora de direitos.
Considerando as forças e tensões políticas próprias de um governo de coalizões, em busca da união, como forma de combater o ódio, o conservadorismo, o negacionismo, entre outras mazelas ocorridas nos últimos seis anos após o golpe de 2016 e institucionalizadas no desgoverno de Jair Bolsonaro, prevaleceu a junção de várias pastas e políticas em um mesmo ministério. Criou-se, assim, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, numa certa réplica do antigo MDS, agregando novas secretarias e pautas, guiadas pelo hibridismo do desenvolvimento e da assistência social com protagonismo do SUAS.
6 Considerações Finais
As tensões entre Desenvolvimento Social e Assistência Social que foram apresentadas neste texto levam a entender que o primeiro, cada vez mais, leva ao entendimento no qual as transferências de renda e garantia de direitos prestados pelo Estado vão progressivamente se tornando mercadorias que cada um deve pagar, dentro da lógica da “ativação”, que prega que o indivíduo deve se sustentar e garantir sua capacidade de trabalho. Porém, frente à estagnação econômica, a distribuição da riqueza social por meio de contratos de trabalho e salários torna-se modelo que não é mais suficiente. Por isso, deve haver outros modelos como a renda básica, transferências, dividendos nacionais, ou seja, a distribuição de todos os benefícios econômicos e sociais a todos(as) os(as) cidadãos(ãs) e não apenas aos(às) trabalhadores(as) (OFFE, 2023).
No caso brasileiro atual, precisamos inicialmente traçar um diagnóstico preciso da situação do SUAS, identificando principalmente o que se tem, qual o ideal com relação aos padrões de qualidade e custo das ofertas, cobertura dos serviços socioassistenciais, entre outros aspectos. Entender como se encontra no momento é fundamental para saber o rumo-guia da direção social a adotar. Deve-se estar atento(a) para que a Assistência Social não seja colocada num escopo de elipse, frente à lógica do Desenvolvimento Social. Nesse sentido, não basta que a preocupação seja pela alteração do orçamento (praticamente inexistente) apenas para a transferência de renda. É preciso também priorizar o orçamento para a oferta e expansão dos serviços socioassistenciais e para a manutenção, melhoria e ampliação das unidades públicas em todo o território nacional. Alerta-se para a lida em espaços institucionais, com arenas diversas e com a sedução por pautas trazidas pela lógica do desenvolvimento social, tais como da educação financeira, dos empréstimos consignados (ao nosso ver uma perversão da política social), da inclusão produtiva, entre outros fetiches que visam à maior agilidade da desvinculação da família beneficiária dos programas de transferência de renda.
Nesse novo governo Lula (2023/2025), de esperanças e desafios, espera-se que toda pessoa que necessite concretizar direitos socioassistenciais possa tê-los garantidos, sentindo-se acolhida em suas necessidades, respeitada em seus vínculos e suas escolhas, socialmente protegida, garantida pela solidez e compreensividade de um SUAS cada vez mais amplo.
É mister que, na agenda pública, o combate à pobreza e à fome se dê em nome do desenvolvimento social, mas deve-se ter cuidado para que esse não se torne um discurso que reduza a complexidade dos problemas públicos, dos riscos e vulnerabilidades sociais, das opressões e discriminações que são enfrentadas pela população brasileira. Sem dúvidas, a maior tarefa e dever ético do atual Governo Lula no que diz respeito à proteção social deve ser o enfrentamento das desigualdades, com ênfase no combate às opressões e violências de raça, gênero, classe social, deficiência, orientação sexual, faixa etária, entre outras. Assim, espera-se, por redundante que possa parecer, que se faça uma gestão social do SUAS, de modo que as decisões sejam tomadas com base na dialogicidade, horizontalidade e respeito às demandas territoriais que tenham como centro o enfrentamento e a redução das desigualdades, para além da pobreza.
Garantir proteção social demanda também a formação política dos(as) usuários(as)-cidadãos(ãs) do SUAS para compreender que o sistema não se restringe à “ajuda” dada pelo Bolsa Família ou pelo “LOAS”, como se referem alguns(mas) beneficiários(as) do BPC. Pode parecer apenas um preciosismo semântico, mas não se trata disso. É compreender que a argumentação sustenta a política pública e, sendo assim, reforçar que a “ajuda” é antônima ao direito social. É importante que as pessoas se sintam sujeitos(as) do direito à Assistência Social e que isso seja feito livre de estigmas e preconceitos.
A demanda pelo Ministério da Assistência Social, historicamente explicitada pelas Frentes Nacional e Estaduais de trabalhadores(as) e de usuários do SUAS — que, aliás, nunca se identificaram como trabalhadores(as) de Desenvolvimento Social —, foi incorporada ao atual Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate a Fomes. É importante ressaltar que a nomenclatura do órgão é só um pontapé para termos mais SUAS, não sendo, porém, suficiente. Legitimar a política por sua essência é necessário a fim de que se fortaleçam as coalizações necessárias, para uma reconstrução do pacto federativo visando ao fortalecimento da Assistência Social enquanto política pública garantidora de direitos.
É preciso estar atentos(as) para que a Assistência Social não seja colocada num escopo de elipse. Que nestes esperados novos tempos, de esperanças e desafios, nenhum(a) cidadão(ã) entenda que um programa, projeto, benefício, transferência de renda ou serviço socioassistencial é “uma ajuda do governo”, mas um DIREITO que gera dignidade humana, garantido pelo SUAS!
Referências
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Notas
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NOTA DE TÍTULO: As ideias iniciais deste texto foram propostas numa versão reduzida publicada em dezembro de 2022, durante os debates da equipe de transição do Governo Luís Inácio Lula da Silva, apontando elementos que justificam a necessidade de criação do Ministério da Assistência Social. O texto está disponível em: SPOSATI, A; BOULLOSA, R. F.; ARAÚJO, E. T. Desenvolvimento Social? Pelo reconhecimento e legitimidade do trato federativo do SUAS no Governo Lula. Estadão. 20 dez. 2022. Gestão, Política & Sociedade. Disponível em: https://www.estadao.com.br/politica/gestao-politica-e-sociedade/assistencia-social-ou-desenvolvimento-social-pelo-reconhecimento-e-legitimidade-do-trato-federativo-do-suas-no-governo-lula/ Acesso em: 20 dez. 2022.
COMO CITAR (ABNT): SPOSATI, A.; ARAÚJO, E. T.; BOULLOSA, R. F. Assistência Social e Desenvolvimento Social: regressão de direitos socioassistenciais? Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 25, n. 2, e25220624, 2023. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v25n22023.20624. Disponível em: https://essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/20624.
COMO CITAR (APA): Sposati, A., Araújo, E. T., & Boullosa, R. F. (2023). Assistência Social e Desenvolvimento Social: regressão de direitos socioassistenciais? Vértices (Campos dos Goitacazes), 25(2), e25220624. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v25n22023.20624.