Artigos Originais

Institutos Federais: entre o excesso de passado e a incerteza do futuro

Federal Institutes: between the excess of the past and the uncertainty of the future

Institutos Federales: entre el excesso del passado y la incertidumbre del futuro

Tiago Fávero de Oliveira 1
IF Sudeste MG, Brasil

Institutos Federais: entre o excesso de passado e a incerteza do futuro

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 25, núm. 3, e25320710, 2023

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright © 2023 pelos Autores.

Recepción: 08 Junio 2023

Aprobación: 18 Agosto 2023

Publicación: 05 Octubre 2023

Resumo: Este trabalho faz uma análise da política de criação dos Institutos Federais, quinze anos após sua implementação, no que diz respeito à sua identidade institucional. O estudo se concentra na reflexão acerca da identidade dos Institutos Federais (IFs): instituições multicampi, marcadas pela diversidade de cursos, modalidades e níveis de ensino, bem como com histórias e contextos sociais diferentes. Para isso, o artigo foca sua atenção na análise do objeto a partir da categoria historicidade: busca-se entender como o ensino profissional foi concebido no Brasil ao longo do tempo e os impactos que essas visões e disputas desempenharam na identidade dos Institutos Federais. A partir desse debate, infere-se para as perspectivas futuras da instituição, frente aos desafios que atualmente estão colocados. A título de conclusão, o estudo reconhece a potencialidade da política em análise no que diz respeito à oferta de educação emancipadora, sem deixar de apontar para dilemas, desafios, contradições e ameaças que a Rede Federal precisa enfrentar.

Palavras-chave: institutos federais, identidade institucional, historicidade, educação emancipadora, ensino integrado.

Abstract: This work analyzes the creation policy of the Federal Institutes, fifteen years after its implementation, with regard to its institutional identity. The study focuses on reflection on the identity of Federal Institutes (IFs): multi-campus institutions, marked by the diversity of courses, modalities and levels of education, as well as with different histories and social contexts. For this, the article focuses its atention on the analysis of the object from the historicity category: it seeks to understand how professional education was conceived in Brazil over time and the impacts that these visions and disputes had on the identity of the Federal Institutes. From this debate, it is inferred for the future prospects of the institution, in the face of the challenges that are currently placed. By way of conclusion, the study recognizes the potential of the policy under analysis with regard to the offer of emancipatory education, without failing to point out the dilemmas, challenges, contradictions and threats that the Federal Network needs to face.

Keywords: federal institutes, institucional identity, historicity, emancipatory education, integrated education.

Resumen: Este trabajo analiza la política de creación de los Institutos Federales, quince años después de su implementación, en cuanto a su identidad institucional. El estudio se centra en la reflexión sobre la identidad de los Institutos Federales (IF): instituciones multicampus, marcadas por la diversidad de cursos, modalidades y niveles de enseñanza, así como con diferentes historias y contextos sociales. Para eso, el artículo centra su atención en el análisis del objeto a partir de la categoría de historicidad: busca comprender cómo se concibió la educación profesional en Brasil a lo largo del tiempo y los impactos que esas visiones y disputas tuvieron en la identidad de los Institutos Federales. De este debate se infiere para las perspectivas de futuro de la institución, frente a los desafíos que se encuentran actualmente. A modo de conclusión, el estudio reconoce el potencial de la política en análisis en cuanto a la oferta de educación emancipadora, sin dejar de señalar los dilemas, desafíos, contradicciones y amenazas que debe enfrentar la Red Federal.

Palabras clave: institutos federales, identidad institucional, historicidad, educación emancipadora, educación integrada.

1 Introdução

A Educação Profissional e Tecnológica (EPT) no Brasil é um projeto antigo. Durante essa longa história, muitas disputas, programas, contradições e propostas divergentes foram apresentadas. Nos últimos quinze anos, a formação profissional alcançou um novo status com a política de criação da Rede de Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia (IFs), implementada a partir de 2008, por iniciativa do governo federal. Diante desse longo percurso e a partir de novas questões e demandas, a consolidação da proposta inicial da criação dos IFs precisa ser analisada. Há, atualmente, um novo contexto com novas pressões, tensões, arranjos e disputas que estão colocadas em pauta. Como a Rede tem se posicionado diante da construção de sua identidade institucional? Quais grupos, classes, frações de classe e interesses afetam a política? Como essas disputas e influências interferem no tipo de formação que é oferecida aos estudantes? Como a história centenária da Rede contribui ou dificulta na construção atual da identidade dos IFs? Como o público atendido pelos IFs se alterou ao longo do tempo? Até que ponto a noção atual de ciência e tecnologia contribui para a oferta de uma educação emancipadora e integrada, que supere os dualismos e a desigualdade que historicamente marcou a EPT no Brasil?

As respostas a essas e outras questões serão desenvolvidas a partir do aporte teórico e metodológico do materialismo histórico e dialético. Enquanto um método cujo desenvolvimento se dá a partir do trabalho com categorias (PAULO NETTO, 2011), ganha destaque neste texto a categoria historicidade, uma vez que: “enquanto não enxergarmos a dimensão histórica de um ser, de um objeto, de um fenômeno, de um acontecimento, não podemos aprofundar, de fato, a compreensão que temos deles. É o movimento histórico que passa por todas as coisas e permanentemente as modifica e as torna concretas” (KONDER, 2020, p. 199). A análise histórica que será aqui desenvolvida não visa apenas (re)contar a história da EPT no país obedecendo uma descrição cronológica de todos os fatos. O interesse deste estudo é encontrar contradições e disputas que atravessam o objeto ao longo dos anos, identificando mudanças e transformações que se sucederam.

O tratamento historicizado dos fenômenos implica a explicitação dos processos sociais complexos que ocorrem em determinado tempo-espaço sob a ação dos sujeitos sociais. Implica a reconstrução histórica de fatos e acontecimentos, de figuras humanas expressivas de seus tempos, o que Marx faz, em toda sua obra, através de abundante informação empírica e documental (CIAVATTA, 2022, p. 8).

É importante registrar que a dimensão histórica a partir do marxismo é desenvolvida de modo diretamente relacionado com a forma a partir da qual os indivíduos produzem suas condições de vida. Não é uma história teórica ou abstrata, mas uma história que está de tal modo arraigada nas situações concretas da vida que produzem efeitos que são igualmente concretos. É nesse sentido que Marx e Engels afirmam que: “o primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e este é, sem dúvida, um ato histórico” (MARX; ENGELS, 2007, p. 32-33). Apesar da centralidade desse movimento, não é possível assumir que os homens fazem a história da forma que querem, de forma isolada e/ou desgarrada do contexto social no qual estão inseridos. “Os homens fazem a sua própria história; contudo, não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhe foram transmitidas assim como se encontram” (MARX, 2011, p. 25).

Dessa forma, é importante identificar as condições de possibilidade e de constrangimento segundo as quais os indivíduos fazem a história. Torna-se evidente a relação entre a perspectiva da construção da história e a formação profissional realizada pelos Institutos Federais, o que implica reconhecer que interesses históricos se acumulam e se reproduzem na Rede Federal de modo a alterar e afetar a missão institucional dos IFs nos dias de hoje. Há fatores econômicos, políticos, sociais, culturais e ideológicos que atravessam os objetivos e metas da formação profissional no Brasil, indicando a partir de quais perspectivas e interesses as futuras gerações serão formadas para o trabalho. Todas essas questões interferem na forma como a política dos IFs foi construída, implementada e tem sido discutida na atualidade, com vistas a alterar sua atuação no futuro.

A relevância desta pesquisa se concentra na necessidade de realizar um balanço histórico da recente atuação dos Institutos Federais, ponderando como essa política responde às heranças históricas do passado, às demandas atuais da sociedade presente e a partir de quais parâmetros ela se organiza para atuar no contexto futuro. A relação da Rede com a construção da sociedade brasileira (marcada pela desigualdade, pela exploração, pela dependência e pelo subdesenvolvimento) também é um ponto que merece destaque neste estudo. A partir deste diagnóstico, é possível entender a necessidade de que uma política educacional – pública, gratuita, nacional e interiorizada – seja implementada a partir da perspectiva da integração, da superação das desigualdades e da necessidade da emancipação.

O objetivo geral deste trabalho implica a análise tanto das influências que a história passada realiza na Rede quanto das perspectivas de futuro. Para isso, será importante entender as mudanças no mundo do trabalho, os avanços e ataques do capital, o contexto social do país e o posicionamento que os IFs assumem diante disso, destacando a partir de quais parâmetros sua identidade tem sido construída. Para isso, na primeira seção, o texto irá realizar uma breve recapitulação de alguns pontos da história da Rede Federal no país, identificando atores, movimentos, disputas e grupos que se envolveram com a construção da formação profissional. Na segunda parte, intenta-se problematizar como foi construída a proposta dos Institutos Federais, como a política tem sido implementada a partir da identidade institucional da Rede. Na terceira seção, serão identificadas pressões, disputas e potencialidades da Rede. Aqui é importante registrar as pressões que os IFs sofrem para formar os indivíduos, seja para o trabalho simples ou complexo, para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia, para a autonomia e a emancipação, para o empreendedorismo e para empregos precários. Ao final, a título de conclusão, será apresentada uma agenda com perspectivas de futuro para a Rede.

2 O excesso de passado da educação profissional e tecnológica no Brasil

A afirmação de que a EPT no Brasil possui um excesso de passado se sustenta não só pela longeva história das escolas técnicas e profissionais, mas também pela herança que este período logra para a Rede Federal ainda hoje1. A disputa de classe em torno da oferta da formação profissional é um traço que esteve presente desde o seu nascimento até os dias atuais. Pensada nos primórdios como um tipo de ensino destinado exclusivamente para os desvalidos da sorte, para os órfãos, pobres e miseráveis (CUNHA, 2005a), as escolas técnicas se ocupavam apenas com um ensino rápido e superficial de um ofício. O público-alvo dessas instituições era formado, basicamente, por crianças e adolescentes pobres, ex-escravizados e jovens infratores. Na maioria das vezes, esses indivíduos não tinham condições de acessar um ensino acadêmico e clássico, restando para eles apenas o aprendizado apressado de um ofício para o exercício de uma profissão simples. Tal compreensão partia da crença de que, apesar de necessários para a manutenção da ordem social, a realização de trabalhos manuais era algo inferior, que deveria ser realizado por pessoas inferiores: “não é de se estranhar que certas ocupações não atraíssem muitas pessoas para desempenhá-las. O resultado foi o trabalho e a aprendizagem compulsórios: ensinar ofícios a crianças e jovens que não tivessem escolha” (CUNHA, 2005a, p. 23).

A prática não só evitava qualquer desejo e possibilidade de mudança social (negando uma instrução escolar fundada na emancipação e na autonomia para os pobres), mas também garantia que a oferta de trabalhos manuais simples e de baixa complexidade e remuneração fossem oferecidos. Somado a isso, o viés assistencialista, disciplinador e moral da formação profissional garantia a manutenção do pobre no lugar social que era destinado para ele, desenvolvendo uma subjetividade dócil, resignada e conformada, afastando-os da ociosidade e da vagabundagem, vistas como crime durante um considerável período histórico. Formava-se, nesse contexto, uma “matéria-prima humana” (CUNHA, 2005a, p. 112) que atendia às demandas econômicas e morais do capital, conformando sujeitos para a aceitação tácita das relações capitalista de produção, pautadas na exploração e na negação de problemas sociais. É neste sentido que a EPT alcançava uma dimensão central e quase redentora para a garantia do futuro do país.

A ênfase oscilava da educação geral, carregada de doutrinas religiosas, morais e cívicas, no ensino primário, à educação profissional, simultânea ou posterior àquela. A educação profissional, de todo modo, reunia as preferências, por produzir um alvo perseguido mas frequentemente negado e até invertido: a formação de operários antes mesmo que eles ingressassem na idade e no mundo do trabalho. Desse modo, o ensino profissional seria responsável pela produção de uma mercadoria especial, a força de trabalho, conformada técnica e ideologicamente à produção em que se dava a reprodução do capital, motor do processo de desenvolvimento da sociedade capitalista. Mas, se por um lado, a correção dos “desvios morais” – nos quais os trabalhadores incorriam “espontaneamente” – era defendida como uma necessidade da produção, a justificativa recaía sobre o seu aspecto ideológico, sobre a inversão daquele papel. Assim é que, de outro modo, aquelas medidas eram definidas como resultantes de imperativos de caridade para com os deserdados da fortuna (CUNHA, 2005a, p. 179).

Tal situação corrobora o funcionamento do modo capitalista de produção, para o qual a educação é uma importante ferramenta para sua expansão. Neste sentido, Marx (2017), no primeiro livro de O Capital, já sinalizava que, para a exploração acontecer, não basta apenas a existência de duas classes distintas (a classe proprietária e a classe despossuída). Para ele, além disso, é importante que a classe despossuída seja forçada a aceitar e naturalizar a venda de sua força de trabalho – dentro das condições impostas pela classe possuidora – como única alternativa para sua sobrevivência. Tal forma de pensar penetrou as motivações para a criação das escolas profissionais no Brasil e é constantemente atualizada e rejuvenescida até nossos dias.

À medida que os ideais capitalistas foram aderindo ao novo tecido social que se desenvolvia, a filantropia foi sendo parcialmente substituída, enquanto argumentação, por um discurso mais baseado na racionalidade capitalista, isto é, nas considerações baseadas no cálculo dos custos e dos benefícios do ensino de ofícios para a formação da força de trabalho industrial-manufatureira (CUNHA, 2005a, p. 182).

Dentro do contexto nacional, é importante resgatar o entendimento de Cunha (2005c), no qual a educação profissional sempre foi vista como uma política de governo e não como uma política de Estado. Além disso, destaca-se também que a maior parte das iniciativas nesta área tenham surgido do Poder Executivo. Esses dois fatores resultam num cenário marcado pela descontinuidade das políticas, conduzindo a um contexto em que os interesses de classe hegemônicos acabavam sendo atendidos em detrimento de outras demandas. Na passagem do Império para a República, as disputas ficaram ainda mais evidentes a partir do confronto entre ideias liberais, positivistas e monarquistas, que disputavam o consenso na definição dos rumos do país que caminhava para o desenvolvimento industrial sob o patrocínio da economia agrária e cafeeira. No período, ganha evidência a atuação do então presidente Nilo Peçanha para a articulação política que deu origem à criação das primeiras 19 Escolas de Aprendizes Artífices. Essa ação foi pensada tendo como objetivo superar a imagem rural do brasileiro, quase sempre associada ao Jeca Tatu, um sujeito bucólico e simples marcado pela vida do campo. É neste sentido que se busca formar a imagem de um homem hiperprodutivo, moderno e capaz de trabalhar para a construção do desenvolvimento nacional (CUNHA, 2005b).

Posto isso, reconhece-se que, no início do período republicano, a visão que se tinha das escolas técnicas e profissionais contemplava tanto a formação de mão de obra para contribuir com o desenvolvimento industrial, quanto a de instituições que funcionavam como reformatório para disciplinar crianças e jovens delinquentes e abandonados. Neste período, na escola que “se destinava a ‘gente desclassificada’, a instrução nela ministrada não deveria ultrapassar o que fosse indispensável à integração do internado na vida social, isto é, apenas o ‘cultivo necessário ao exercício profissional’” (CUNHA, 2005b, p. 41). Tal situação reforça e reproduz a construção de uma escola dualista, pois aprofunda cada vez mais a separação entre trabalho manual e intelectual, a partir da origem de classe do estudante. O resultado disso era uma escola acadêmica e clássica para os filhos das classes proprietárias e uma escola técnica, voltada para o desenvolvimento da disciplina necessária para o trabalho que era dirigida para os filhos do proletariado. Nessas últimas, o objetivo do ensino era “formar, no menor tempo de aprendizagem, o operário competente e especializado, dotado de disciplina mental e social adequada ao organismo industrial e ao próprio operário” (CUNHA, 2005b, p. 131). O que se perseguia aqui era o desenvolvimento de um currículo superficial e fragmentado, que sonegava conhecimentos e se ocupava apenas com a capacitação direta para o desempenho de profissões simples e de baixa remuneração.

não se valorizava o preparo profissional do trabalhador, como também não seria propiciado a nenhum deles um maior conhecimento do trabalho a realizar, além daquele correspondente à sua tarefa. Quando um operário fosse capaz de executar corretamente prescrições da lista de trabalho sua formação profissional estaria terminada, qualquer que fosse sua idade. A descrição minuciosa das fichas de instrução não exigia conhecimentos profissionais, qualificação ou iniciativa para sua compreensão. Por esse motivo, seria facilitada também a formação do trabalhador, que necessitaria apenas de alguns dias para a aprendizagem de suas tarefas específicas (CUNHA, 2005b, p. 117, itálicos do autor).

Além do que foi exposto até aqui, outros três pontos podem ser destacados sobre as escolas profissionais ao longo da história. O primeiro diz respeito ao elevado índice de evasão, problemas de matrículas e baixa taxa de conclusão nos cursos. Tal fato era gerado não só pelas características já citadas, mas também pela possibilidade de certificação parcial e da própria condição socioeconômica das famílias, uma vez que “não se pode exigir dos pais dos alunos pobres, e mesmo dos remediados, consentirem aos filhos permaneceram na escola além dos 12 anos de idade, quando se esperava que estes começassem a ‘ganhar a vida’ através de um trabalho remunerado” (CUNHA, 2005b, p. 110). O segundo ponto se relaciona à preocupação exagerada com a garantia da disciplina, através de normas e regimentos muito radicais. Tal fato pode ser entendido por conta do medo que a classe dominante tinha de que a classe trabalhadora atendida por essas instituições organizasse revoltas que comprometessem a ordem social vigente.

O que se observa é que, à medida que a escola se prepara para atender às exigências da produção capitalista, ela assume também as exigências da ordem social desenvolvida nos processos de trabalho, tais como disciplina, exatidão, submissão física, técnica e moral, cumprimento estrito dos deveres, pontualidade, contenção corporal, afetiva e etc., tudo isso com o intuito de aumentar a produtividade da mão de obra, reduzir os custos da produção e obter maior lucratividade nos negócios (CIAVATTA, 2014, p. 51).

O terceiro ponto a ser registrado toca no ideário positivista que via na educação técnica uma via importante para a superação da onda de bacharelização que tomava conta do país. Essa visão positivista entendia que um país como o Brasil não tinha necessidade de ter muitos profissionais graduados em nível superior (de modo enciclopédico, metafísico e acadêmico). O objetivo central a ser buscado era garantir uma massa de operários tecnicamente qualificada para a produção. Logicamente, mais uma vez sobressai o pensamento que reforça o dualismo escolar, uma vez que o critério utilizado para definir quem iria para o ensino superior acadêmico e quem poderia apenas se formar numa profissão técnica partia da classe social do estudante. Apesar de um vasto campo de disputas acerca das finalidades e lugares assumidos pela educação profissional (seja como educação potencialmente emancipadora ou como ensino para suprir a oferta de mão de obra especializada para as demandas do capital), essa visão acerca da EPT vai permanecer por muito tempo na história educacional brasileira. Um exemplo disso é o viés profundamente inspirado pela Teoria do Capital Humano que fundamentou a Lei 5.692/1971, que indicava que o antigo segundo grau (atual ensino médio) tinha como finalidade a profissionalização dos estudantes.

Após o período da ditadura militar (no qual foi aprovada a lei supracitada), o Brasil entra num novo contexto político, marcado não só pela redemocratização mas também pelos debates em torno da redação da nova Constituição Federal. Nesse cenário, várias discussões sobre a natureza e a finalidade do ensino médio e da formação profissional ganharam força. Entendido como etapa final da educação básica pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/1996), o ensino médio passa a se orientar tanto para a formação geral e propedêutica (com vistas ao prosseguimento dos estudos e o ingresso no ensino superior) quanto para a inserção no mercado de trabalho. Apesar dessa visão ampla, na mesma época foi publicado o Decreto 2.208/1997, cujo teor indicava a separação formal entre o ensino médio e a formação profissional, cuja oferta deveria acontecer de forma não integrada e ocupada apenas com o atendimento das demandas do mercado e do setor industrial. Por conta de um viés que aprofundava ainda mais a dualidade educacional, em 2004, após intensos debates e mobilizações de diferentes setores, o Decreto 5.154/2004 revogou a regulamentação anterior, abrindo possibilidade para a forma integrada, concomitante ou subsequente, da formação profissional. Ainda que a transição tenha sido marcada por inúmeras contradições, que deixaram desafios que permanecem abertos,

o embate para revogar o Decreto n. 2.208/97 engendra um sentido simbólico e ético-político de uma luta entre dois projetos societários e o projeto educativo mais amplo. Trata-se de um decreto que expressava, de forma emblemática, a regressão social e educacional sob a égide do ideário neoconservador ou neoliberal e da afirmação da ampliação da desigualdade de classes e do dualismo na educação. O conteúdo final do Decreto, 5.154/2008, por outro lado, sinaliza a persistência de forças conservadoras no manejo do poder de manutenção de seus interesses. Mas também pode revelar a timidez política do governo na direção de um projeto nacional de desenvolvimento popular e de massa (FRIGOTTO; CIAVATTA, RAMOS, 2012, p. 52).

Aqui, além de todas as questões ideológicas já citadas em torno da oferta de educação técnica e profissional, é preciso destacar que os debates também são movidos por um interesse econômico. Isso acontece pelo fato de o mercado identificar, neste campo, uma possibilidade de negócio para a atuação de escolas privadas, tendo em vista a formação de mão de obra barata e alinhada com interesses superficiais de formação. É por conta disso que Ramos (2015) observa a preferência do setor privado e empresarial pela forma concomitante e subsequente em detrimento da integrada. Tal defesa reforça o cenário de dependência, de subdesenvolvimento e de exploração.

O que se vê, ao contrário, é um movimento que tende a subordinar as políticas públicas a padrões de desenvolvimento sob a hegemonia do capital financeiro. Mesmo a ilusão associada à capacidade de coesão social proporcionada por um “empresariado produtivo progressista” não leva em conta que o capitalismo dependente não é resultado de uma escolha, mas sim uma produção histórica e social do próprio capitalismo com a combinação da superexploração do trabalho e incorporação de padrões de consumo de bens que incentiva a produção estrangeira; além da política de adaptação de tecnologia, que é levada, no máximo, ao patamar da inovação (RAMOS, 2015, p. 112).

Avançando um pouco mais no tempo, chega-se a dezembro de 2008, momento em que, por iniciativa do Governo Federal, foi publicada a Lei 11.892/2008, que criou a Rede Federal de Educação, Ciência e Tecnologia. Naquele momento, a Rede foi formada pela fusão de antigos centros e escolas técnicas já existentes. O movimento não foi isento de disputas ou tensões. Otranto (2010) descreve o contexto político de criação dos IFs destacando a surpresa e a desconfiança das escolas agrícolas e agrotécnicas federais existentes na época, a resistência dos CEFETs, a divisão das Escolas Técnicas vinculadas às Universidades Federais quanto à proposta e às disputas sindicais. Apesar de todas essas tensões, a criação dos IFs inaugurou uma nova era para a educação profissional e tecnológica no país. Pacheco (2011) a interpreta como uma revolução na oferta de formação profissional, representando não só a expansão dessa oferta, mas, sobretudo, uma nova maneira de compreender a relação entre educação, trabalho e mundo produtivo. A Rede foi criada para oferecer cursos de formação profissional de nível médio (integrados, concomitantes e subsequentes), cursos rápidos de formação inicial e continuada (FIC), educação de jovens e adultos (EJA), cursos superiores de tecnologia e formação de professores (licenciaturas), além de pós-graduação lato e stricto sensu.

O ensino oferecido traz a marca da verticalização e da busca pela indissociabilidade entre as áreas finalísticas (ensino, pesquisa e extensão). Merece destaque, também, a organização interiorizada da estrutura dos IFs: uma política que chega em regiões distantes do país com a oferta de ensino gratuito e de qualidade para uma população que historicamente foi privada de tal possibilidade. Mesmo com todos esses pontos, a política em análise não é objeto de consenso. Boito Jr. (2018) destaca que a Rede surgiu num contexto social marcado por um fenômeno identificado por ele de ideário neodesenvolvimentista, a partir do qual “há um programa de política econômica e social que busca o crescimento do capitalismo brasileiro com alguma transferência de renda, embora o faça sem romper com os limites do modelo econômico neoliberal ainda vigente no país” (BOITO JR., 2018, p. 105). Tal posicionamento concorda com a conclusão de Ramos (2015), para quem o neodesenvolvimentismo no Brasil pode ser interpretado como uma linha auxiliar do neoliberalismo.

Outra análise crítica da construção e atuação da Rede Federal é construída por Porto Jr. e San Segundo (2023). Considerando a tecnologia como parte da cultura humana que é desenvolvida juntamente com a ciência, tendo como fundamento a base material do trabalho, os autores destacam a dimensão política da tecnologia. De acordo com eles, a construção dos IFs se organizou a partir de uma visão naturalizada da tecnologia que se apresenta de modo apartado da luta de classes, por conta da sua fetichização. Além disso, a imaturidade do posicionamento ético-político de uma Rede que ainda não se estabeleceu com firmeza acerca do seu compromisso social também contribui para enfraquecer a política. É nesse sentido que se pode conceber que a atuação dos Institutos Federais oscila entre a tendência do capital e a do trabalho, “ora tendendo para uma perspectiva contra-hegemônica, ora atendendo às expectativas mercadológicas do capital” (PORTO JUNIOR; SAN SEGUNDO, 2023, p. 274).

Não obstante todos os limites e contradições dirigidos à política, é inegável reconhecer o avanço que a implantação dos Institutos Federais representa para o país. O aumento da oferta de ensino médio integrado à formação profissional, sobretudo no contexto interiorizado, é um exemplo disso. A estrutura física diferenciada das demais escolas de ensino médio (com biblioteca, laboratórios, quadras), a formação dos professores, o regime de trabalho em dedicação exclusiva, a realização de projetos de ensino, pesquisa e extensão, entre muitos outros pontos, são fatores que indicam um avanço na garantia de acesso a inúmeras possibilidades que até então inexistiam para muitos estudantes, sobretudo do interior do país. Ainda que, como já pontuado, a política de criação dos IFs não represente, de forma plena, um projeto de educação diretamente alinhado com a superação das desigualdades fundantes do modelo neoliberal do capitalismo, é possível perceber que ela representa uma travessia, dentro do capital, para um projeto educacional que supere a lógica do capital (FRIGOTTO, 2018).

3 Os embates e disputas acerca da identidade dos Institutos Federais

No intuito de entender todas as tensões relacionadas à disputa pela construção de uma identidade institucional dos novos IFs, é importante recorrer à visão já trazida anteriormente acerca da formação técnica e profissional. Sobre isso, Manacorda entende que ela esteve ligada, inevitavelmente, à valoração do trabalho nas sociedades, “a instrução profissional nasce como uma instrução servil: terá que percorrer um caminho bastante longo para conquistar sua verdadeira dignidade” (MANACORDA, 2004, p. 72). Tal caminho não é uma estrada solta e perdida no meio do nada. Ao contrário: está intimamente ligado à transformação e ao desenvolvimento dos modos de produção. Antunes e Pinto (2017) pontuam que a passagem do modo taylorista-fordista reformula o projeto das escolas profissionalizantes. Essa reformulação permanece em curso com o avanço do modo de produção flexível.

Surgem novos modos de produção em que a relação ciência e operação manual é mais desenvolvida e a especialização é mais avançada; para isso é necessário um processo de formação em que o simples observar e imitar começa a não ser mais suficiente. Tanto nos ofícios mais manuais quanto naqueles mais intelectuais, é exigida uma formação que pode parecer mais próxima da escolar, embora continue a se distinguir da escola pelo fato de não se realizar em um “lugar destinado a adolescentes”, mas no trabalho, pela convivência de adultos e adolescentes. Surge agora o tema novo de uma aprendizagem em que ciência e trabalho se encontram e que tende a se aproximar e a se assemelhar à escola. É o tema fundamental da educação moderna que apenas começa a delinear-se (MANACORDA, 2004, p. 161).

Dessa forma, apesar de ter como missão a formação profissionalizante para o trabalho, esse fato não deve ser entendido como se os IFs fossem uma escola que oferece apenas um curso rápido e superficial de capacitação. Acredita-se que a formação técnica almejada pelo novo contexto social só será possível através de uma formação no mundo das letras, das humanidades e das ciências. Não se intenta formar apenas o técnico especialista mas sim o politécnico, de acordo com o entendimento desenvolvido por Saviani (2003), como o sujeito que possui não apenas o domínio de diferentes técnicas, mas que desenvolveu o saber que fundamenta essas técnicas. Há, neste caso, a construção de uma escola que dialoga com os interesses da classe trabalhadora, não ocultando dela conhecimentos que são necessários para sua emancipação.

A partir desse conceito é possível iniciar uma problematização acerca da construção da identidade institucional. Longe de ser um processo controlado, estático e fixo, a identidade de uma instituição é permeada por disputas, tensões e movimentações que alteram a política prevista ao longo do tempo. É interessante recapitular a noção de ciclo de políticas de Mainardes (2006), para quem há diversas fases em que ações são negociadas, interpretadas e discutidas. Destaca-se, assim, a participação de agentes (públicos e privados) que influenciam desde a identificação de um problema que entra na agenda até a fase da discussão, elaboração, implementação e avaliação da política. Isso implica que, no caso dos Institutos Federais:

a construção de uma nova identidade institucional não é um ato unilateral, no qual um Estado onipotente define, por Lei ou por Decreto, as feições de suas instituições escolares. A construção de uma identidade institucional é um processo conflituoso, no qual as expectativas das comunidades escolares também jogam papel, influenciando, inclusive, nas formas finais do texto legal (MORAES, 2016, p. 7).

Dessa forma, há uma novidade na construção da identidade dos Institutos Federais que está ligada à inspiração no modelo clássico das universidades com o diferencial de tentar se construir de forma distinta a ele: “Os Institutos nascem, assim, pelo menos no seu formato jurídico-institucional, procurando distinguir-se da universidade clássica (embora nela se inspirem), assumindo uma forma híbrida entre Universidade e CEFET e representando, por isso mesmo, uma desafiadora novidade para a educação brasileira” (PACHECO, PEREIRA e DOMINGOS SOBRINHO, 2010, p. 10). Nesse contexto, é possível identificar três dimensões que interferem na construção da identidade dos IFs.

A primeira delas, diz respeito à pressão que o mercado exerce na disputa pela Rede. Isso ocorre por conta do interesse do capital em difundir, nos jovens e nos futuros trabalhadores, um ideário compatível e funcional às suas necessidades. Otranto (2010) corrobora essa visão ao pontuar que a política de criação dos IFs se situa num modelo alternativo entre a universidade de pesquisa e uma instituição que faz pesquisas aplicadas aos interesses estreitos do mercado de trabalho.

A forma como está estruturado o IFET prevê otimização de custos, e total controle da nova instituição, o que pode acarretar uma fiscalização e um direcionamento mais eficaz na subordinação da educação por ela ministrada aos interesses do mercado, que deve ser fiscalizado desde já pelos docentes, discentes e técnicos dos Institutos Federais. A observação deve ser feita nos vários níveis de ensino, uma vez que a disseminação ideológica deve subordinar-se à lógica do mercado, pode começar bem cedo, na educação básica, principalmente no ensino médio e é bom lembrar que a educação não é mercadoria, mas um bem que deve ser disponibilizado a todo cidadão, condição indispensável à ampliação da cidadania (OTRANTO, 2010, p. 15).

A expansão da Rede a partir de novos padrões tecnológicos e científicos, os investimentos que foram direcionados a ela (sobretudo nos anos iniciais de sua criação), a oficialização da estrutura similar a das Universidades, as pressões para o desenvolvimento de ciência, tecnologia e inovação aliadas a uma estrutura do Estado brasileiro que caminhou para uma cultura de avaliação, responsabilização e metas contribuiu para o que se pode dizer “um empresariamento da Rede”. Freitas (2018) diagnostica uma reforma empresarial da educação brasileira que toca a educação como um todo, da qual os IFs não são excluídos. No caso específico dos impactos desse ideário contrarreformista para a Rede Federal, Oliveira (2023a) mostra como o modelo empresarial e neoliberal se impõe aos Institutos, sinalizando para os impactos disso. Neste mesmo sentido, é forçoso reconhecer que

a nova institucionalidade de algum modo alterou profundamente a cultura escolar, o perfil dos docentes, a dinâmica do trabalho, viabilizou a incorporação da gestão empresarial, avançou nas políticas das pró-reitorias o produtivismo de resultados. Além destes elementos, soma-se o fato de que a criação dos Institutos Federais representou a perda de organização com poder de autarquia, implicando na autonomia e identidade das escolas Agrotécnicas, representando tensões políticas com o Ministério da Educação e junto aos CEFETs (HORA; SOUSA, 2023, p. 303).

Dentro deste embate entre escolas agrotécnicas, CEFETs e o projeto de criação dos IFs, é possível avançar um pouco mais na pesquisa. O segundo ponto que merece destaque nesse contexto é o da história das instituições. Quando foram criados em 2008, os Institutos Federais reuniram em uma única Rede uma série de instituições que já existiam e funcionavam com a oferta de formação técnica e profissional há muito tempo. Algumas dessas instituições eram centenárias e migraram para esse movimento de ifetização2 que foi proposto pelo governo. Pensando que a identidade de qualquer instituição emerge de sua história, não é possível dizer que a política de criação dos IFs tenha iniciado do zero em 2008. Muito pelo contrário: apesar de se projetar para o futuro, os Institutos Federais já nascem, no ano de sua criação, com um excesso de passado, marcado pela história dessas instituições que se uniram para compor a nova política. Moraes (2016) pontua que a identidade institucional da Rede é construída sobre uma base material definida, que é condicionada pela estrutura social preexistente das escolas que se fundem para a implementação dos IFs. A mesma conclusão é registrada em outros trabalhos:

Constituídos a partir de 2008, os Institutos Federais emergem das centenárias escolas de aprendizes e artífices, que originalmente criadas em 1909 eram instituições da velha ordem, destinadas ao recorte educacional de “pobres e excluídos” trabalhadores, destinados a uma formação meramente operacional e prática. Ao longo da histórica educacional brasileira estas instituições foram construindo uma identidade e marca social, mas que também neste percurso era reconstruída e negada (LIMA FILHO, 2023, p. 40).

Também decorrente dos embates entre o modelo clássico das universidades e a novidade representada pela lei de criação dos Institutos Federais, o terceiro ponto que exerce influência na construção da identidade aqui problematizada diz respeito ao posicionamento assumido pelo corpo docente da Rede. Neste sentido, além dos condicionantes da legislação aprovada e das pressões históricas e externas do mercado, Moraes (2016) entende que a construção da identidade de uma instituição passa diretamente pelas pessoas que a compõem, uma vez que há um sentimento de pertença a partir do qual a construção coletiva da identidade acontece.

A identidade institucional está associada a uma construção coletiva, à percepção da identificação das condições (trabalhistas, sociais, econômicas, educacionais) entre as pessoas que compõem uma comunidade escolar. A identidade não pode ser impessoal, pois traduz um certo “sentimento de pertença”, uma convicção que associa as pessoas às escolas que ajudam a construir (MORAES, 2016, p. 77).

Neste ínterim, a perspectiva que os professores têm dos Institutos Federais será decisiva nas disputas acerca da construção da identidade da Rede. Moraes (2016) apresenta essa tensão como uma identidade de escola técnica versus vontade de universidade. Segundo ele, tal embate se dá mediante dois grupos que compõem o corpo docente da Rede, quais sejam: os nativos e os novatos. O primeiro grupo é composto por professores egressos das escolas técnicas e estão na Rede há muito tempo. Eles veem os IFs a partir de uma identidade escolar mais ligada ao ensino técnico e buscam orientar sua atuação visando à inserção dos seus alunos no mercado de trabalho mediante o ensino de uma profissão específica.

O segundo grupo, dos novatos, é composto por professores que ingressaram na Rede após a ifetização. São, em sua maioria, profissionais recentemente egressos das Universidades, de programas de mestrado e doutorado e foram aprovados no concurso para um determinado campus de IF. Trabalham na perspectiva de uma Universidade, valorizando a expansão da oferta do ensino superior e o desenvolvimento de pesquisa científica. O resultado disso é uma equipe que segue “atuando dentro deste campo de forças”, “determinado por estes dois polos encontra-se a maior parte dos docentes que, ainda sem aderir a um dos lados, oscilam entre o orgulho institucional dos nativos e a reprodução da estrutura escolar que lhes é mais familiar, a estrutura universitária” (MORAES, 2016, p. 6).

Ainda pensando no fato de que as pessoas que compõem a instituição exercem influência na construção da identidade da Rede, não se pode deixar de mencionar a expectativa dos estudantes. Neste caso, o que se observa, sobretudo no âmbito dos cursos de ensino médio integrado, é que grande parte dos estudantes procuram os Institutos Federais na expectativa de terem acesso a um ensino médio acadêmico, clássico e de qualidade, de modo a conseguirem ingressar num curso superior que, na maioria das vezes, não corresponde à formação técnica cursada. O resultado disso é uma expectativa que direciona os IFs para funcionar aos moldes de um colégio regular de elevada qualidade. Dessa forma, recorre-se à uma tríplice disputa pela identidade institucional, que oscila entre uma escola de formação profissional e técnica, uma universidade e um colégio que oferece ensino médio de qualidade (OLIVEIRA, 2023b). A expectativa dos estudantes é ainda mais forte em cidades de pequeno e médio porte, no interior do país. Assim, o caráter interiorizado da organização da Rede contribui para que estudantes que historicamente foram impedidos de cursar um ensino médio de alto nível possam, com a abertura dos campi dos IFs, entrar na disputa da identidade institucional.

Além dos três fatores supracitados, é possível questionar se as múltiplas atribuições, funções e formações exercidas e ofertadas pelos Institutos Federais comprometem, dispersam, diluem ou enriquecem sua identidade. Enquanto instituições que se ocupam com a oferta de ensino médio integrado, cursos profissionais de nível médio concomitantes e subsequentes, cursos de formação inicial e continuada, PROEJA, cursos superiores de tecnologia, bacharelados e licenciaturas além de pós-graduação stricto e lato sensu, os IFs apresentam um catálogo de cursos muito amplo. Além disso, não se pode esquecer que a Rede busca oferecer ensino de modo indissociável da pesquisa e extensão, assume o compromisso de desenvolver ciência, tecnologia e inovação, além de perseguir uma organização interiorizada, verticalizada e com vistas à integração. Pensando a partir desse dado, Moraes (2016) desenvolve uma analogia do IF como um filho multitalentoso, sobre o qual são depositadas extensas expectativas.

Este é certamente o filho que todo pai gostaria de ter. Um filho que sabe fazer tudo – e fazer bem feito! Não importa o quanto pareça difícil atuar em todos os níveis e em todas as modalidades da educação nacional. Aos pais, com seus olhos ingênuos, pode parecer que este filho esteja demorando um pouco para aprender “tudo” o que lhe foi objetivado. Permanecem na certeza de que todas as tarefas serão realizadas. Estranham, contudo, quando os filhos – quando começarem a falar – lhes digam que, com tantas coisas a fazer, não sabem bem por onde começar. Estranham mais ainda quando, um pouco mais maduros, lhes dizem que não querem fazer tudo o que os pais mandaram, que preferem fazer só o que gostam (MORAES, 2016, p. 8).

Todos esses embates realçam não só as fragilidades que a Rede possui, mas também podem indicar um potencial para atuar, de forma dialética, entre a diversidade que marca os Institutos Federais. A situação também explica, até certo ponto, as dificuldades que essa política ainda traz após 15 anos de atuação, tempo que para alguns já seria necessário para a construção de uma identidade mais robusta e, para outros, ainda é muito recente para tal empreitada. A partir de agora, será fundamental pontuar os impactos do passado e as expectativas e perspectivas de futuro a fim de identificar uma agenda com a qual os IFs precisam se comprometer no presente. Isso se faz importante na perspectiva de garantir a oferta de uma educação emancipadora que consiga superar toda a dualidade e a exclusão que marcam a educação nacional, cumprindo parte daquilo para o qual essas instituições foram criadas.

4 Entre o passado e o futuro: os desafios do presente para os Institutos Federais

Todos os embates históricos que relegaram à educação profissional o lugar de ser uma formação rápida e superficial oferecida para os pobres e miseráveis volta à tona com o aprofundamento e a expansão do ideário neoliberal na história recente do Brasil. Isso permite observar a marca da subserviência dos projetos de formação para o trabalho em relação ao avanço do capital. Essa tese é desenvolvida por Porto Júnior e San Segundo (2023) ao indicarem que a política de criação dos IFs vive na tensão entre os limites do neodesenvolvimentismo em relação à ortodoxia neoliberal. Esse cenário, segundo os autores, foi agravado pelo Golpe de 2016. O impacto disso recai, diretamente, sobre o financiamento da Rede. Sardinha e Souza (2023) entendem que o orçamento federal foi achatado e drenado em prol do capital num contexto marcado por inúmeros cortes, ajuste fiscal, financeirização do capital e, sobretudo, do entendimento da educação como uma oportunidade de negócio. Apesar dos inúmeros cortes e contingenciamentos, a política dos IFs resistiu por conta de alguns fatores, como: a infraestrutura física preexistente, as condições de trabalho, carreira e salário e, especialmente, por conta da oferta do Ensino Médio Integrado.

Neste percurso, estas instituições, quase como uma exceção ao quadro geral de desmonte e precarização que se abateu sobre as redes de educação básica do país, mantiveram e expandiram uma rede qualificada, por dispor de infraestruturas físicas adequadas e de quadro de professores e técnicos educacionais com condições de trabalho, carreira e salários dignos, o que lhes permite ser palco de possível realização de uma proposta educacional, como a experiência do ensino médio integrado (LIMA FILHO, 2023, p. 40).

Além das disputas em torno do orçamento, a Rede também foi afetada por uma série de disputas em torno do currículo. Tarlau e Moeller (2020) descreveram a atuação de fundações empresariais (particularmente, o coletivo Todos pela Educação e a Fundação Lemann) nos debates acerca da Base Nacional Comum Curricular (BNCC). A partir da ideia de um consenso por filantropia3, as autoras indicaram mecanismos, estratégias e interesses empresariais nesse movimento. Além da BNCC, a atuação de instituições empresariais também foi decisiva na defesa de interesses privados nos debates acerca da Contrarreforma do Ensino Médio e das Diretrizes Curriculares Nacionais. Oliveira (2021) analisa esse cenário no contexto da formação profissional oferecida pelos Institutos Federais ao afirmar que:

A concepção de formação profissional trazida pelas Diretrizes sinaliza para uma formação técnica estreita, dentro da qual a educação vira treinamento. Assim como na contrarreforma do Ensino Médio, perde a noção de uma formação básica, geral e ampla, que seja direito de todos. A partir do argumento da escolha, o estudante perde uma parcela do que se convencionou como básico para a formação de qualquer indivíduo. Isso gera uma fragmentação, não só da formação, mas também do próprio sujeito formado, reforçando e reproduzindo desigualdade, uma vez que a classe dominante priva o acesso da classe trabalhadora a saberes e conhecimentos importantes (OLIVEIRA, 2021, p. 212-213).

Neste sentido, a oferta de ensino médio integrado – coração da política dos Institutos Federais – acaba sendo não proibida, mas ameaçada diante deste avanço empresarial. Oliveira e Frigotto (2023) destacam o contexto quando pontuam a centralidade do EMI no enfrentamento da dualidade, da desigualdade e da formação precária e parcial que historicamente marcaram a sociedade brasileira, destacando também que o atual contexto de reforma empresarial da educação avança no sentido de precarizar, mercantilizar e esvaziar o modelo do ensino médio integrado.

O ensino profissional – ancorado na dimensão ontológica do trabalho, desenvolvido na perspectiva epistemológica do trabalho como princípio educativo, assumindo a dimensão práxica das lutas e tensões da sociedade – é um ensino comprometido com a vida. Não a vida abstrata e genérica. Mas a vida real, concreta, fundada nas relações materiais de produção que contempla não só as necessidades básicas – comer, beber, ter um teto – mas também as condições para disputar as necessidades sociais, culturais e subjetivas (OLIVEIRA; FRIGOTTO, 2023, p. 383).

Além disso, o estudo também registra que esse avanço do capital sobre o trabalho e, consequentemente sobre os processos de formação para o trabalho, ainda está em curso e em crescente expansão. Pesquisa de Oliveira (2023b) condensa dados que mostram um dilema central para a Rede Federal no presente. É importante ressaltar que esses dados dialogam com o passado e trazem implicações diretas para o futuro. Dados da Plataforma Nilo Peçanha (PNP) de 2017 a 2021 indicam um movimento de queda na oferta de cursos integrados com o expressivo aumento de cursos FIC (Formação Inicial e Continuada) e também de cursos na modalidade EAD. Esse cenário está retratado no Gráfico 1.

Evolução de matrículas (%) da Rede Federal por tipo de curso (2017 – 2021)
Gráfico 1.
Evolução de matrículas (%) da Rede Federal por tipo de curso (2017 – 2021)
Fonte: OLIVEIRA, 2023b, p. 326

A análise dos dados do gráfico que indicam o encolhimento da oferta de ensino médio integrado e a expansão de cursos FIC na modalidade de ensino a distância4 permitem perceber que esta é uma tendência para a Rede. Mas o que isso representa? Num primeiro momento, a situação pode indicar que os IFs têm optado pelo caminho mais simples: ofertar cursos rápidos, em EAD, que não demandam grandes investimentos (docentes, infraestrutura física, material de laboratório) e que garantem uma relação aluno-professor elevada5. Observa-se que cursos dessa natureza têm custo próximo a zero e uma possibilidade de crescimento infinito no número de matrículas. A escolha pela oferta de cursos dessa natureza pode indicar uma preocupação dos gestores com a entrega de indicadores positivos, tendo em vista, sobretudo, o financiamento de suas instituições.

O contexto traz algumas consequências que devem ser apresentadas. A primeira é que esse movimento indica um cenário dentro do qual os IFs concorrem entre si por maiores recursos de financiamento a partir dos resultados apresentados. O que se vê aqui é que as políticas de avaliação, gestão, financiamento e responsabilização retomam e reforçam o velho binômio da quantidade versus qualidade, sobre o qual vale recorrer à reflexão de Antonio Gramsci: “Sustentar a ‘qualidade’ contra a quantidade significa, precisamente, apenas isto: manter intactas determinadas condições de vida social, nas quais alguns são pura quantidade, outros pura qualidade” (GRAMSCI, 1978, p. 50).

Outro ponto a ser levantado diz respeito ao uso de recursos tecnológicos para a oferta de cursos a distância. Faz-se mister registrar que, neste caso específico, a EAD não é implementada na perspectiva de ampliar o atendimento, garantindo acesso para um público que não consegue acessar presencialmente determinado curso ou programa de formação. A matrícula aberta para qualquer candidato confirma que a escolha não foi movida por essa preocupação. Além disso, não se pode deixar de resgatar uma análise de Freitas (2018), para quem o uso de plataformas on-line pode ser visto como estratégia para expropriar o trabalho vivo transpondo-o para o trabalho morto, como uma tática para ampliar as taxas de acumulação de capital.

O que se vê, neste caso, é que uma estratégia para ampliar os recursos de financiamento da Rede por conta do aumento dos indicadores avaliados pode se tornar uma armadilha para a própria Rede. Em outras palavras: o crescimento do número de matrículas em cursos rápidos que não demandam grandes recursos de infraestrutura, custeio ou que até mesmo não necessitam de professores por serem cursos autoinstrucionais podem, em algum momento, servir como argumento para diminuir ainda mais os recursos. Se a Rede amplia o número de estudantes atendidos sem grandes volumes de investimento, ela pode continuar assim, sem receber recursos para funcionar. Por mais absurdo que isso pareça, não se deve destacar que esse argumento é plenamente compatível num contexto que sempre debate teto de gastos públicos na direção de impor um regime de austeridade.

A crítica a esse fenômeno não deve ser entendida como uma crítica à EAD de forma geral. O que se critica aqui é o fato de essa estratégia e esse movimento identificado a partir dos indicadores analisados apontar um afastamento da Rede da sua missão de formar para o trabalho complexo, inviabilizando o desenvolvimento de ciência, tecnologia e inovação. Isso desmonta toda tentativa dos Institutos de contribuírem e incrementarem a organização dos arranjos produtivos locais, auxiliando no seu desenvolvimento. O impacto disso é um retorno dos Institutos para o antigo cenário de serem escolas de formação técnica destinada a formar sujeitos rasos, adestrados para um trabalho específico. Novamente, se confirma a armadilha para a Rede, fazendo-a desviar de sua lei de criação para atender às expectativas particulares do mercado.

Pensando no caso específico da Rede Federal, observa-se que o crescimento nas matrículas em cursos de formação rápida – que são ofertados na modalidade à distância pelos Institutos Federais (que podem se dar no formato de cursos MOOC) – indica uma ameaça tanto no curto quanto no longo prazo para a Rede. Já no curto prazo, estes cursos sinalizam para um esvaziamento da política de criação dos IFs, pois representam o distanciamento da estrutura de integração e verticalização, inviabilizando a busca da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Vale destacar que, dentro deste ideário neoliberal, prioriza-se o ensino, visto como mercadoria, em detrimento da pesquisa e da extensão (OLIVEIRA, 2023b, p. 347-348).

O esvaziamento da formação dos estudantes em cursos desta natureza – sobretudo comparando com a formação oferecida pelo ensino médio integrado – representa mais um ataque do capital sobre o trabalho. O que se observa, neste caso, é uma ação estratégica, ampla e sistematizada de formar indivíduos precários, descartáveis e desempregáveis, aptos para disputarem empregos de baixa qualificação e remuneração ou mesmo engrossarem as fileiras de trabalhadores desempregados e desalentados. Isso reforça, ainda mais, a dualidade educacional que deu origem aos debates acerca da criação dos Institutos Federais. Aqui se observa que esses cursos reforçam o discurso de formar indivíduos que, diante do desemprego, da precarização e da informalidade, acabam vendo no empreendedorismo a única saída. Sobre isso, é importante entender que o atual cenário propiciou

um deslocamento do espírito empreendedor, tanto da classe dominante para a classe dominada quanto do mundo empresarial e dos cursos de administração para a educação básica. Tal deslocamento se dá a partir da precarização e da informalidade, buscando meios de conformar novas subjetividades a este novo cenário social. Neste sentido, não é exagero dizer que o empreendedorismo potencializa a alienação, aprofundando a fetichização da exploração ao ocultar do trabalhador a figura do patrão. Em outras palavras: é um mecanismo que mascara a exploração, estimula o trabalho intenso, oculta as causas sociais da desigualdade e ainda compromete a formação de uma organização social capaz de resistir aos ataques e ameaças do capital sobre o trabalho e os trabalhadores (OLIVEIRA, 2023c, p. 21)

5 Considerações finais

Como foi possível perceber por esta breve pesquisa, a longa história da Rede Federal foi construída e permanece, ainda hoje, marcada por embates, disputas, desafios, avanços e retrocessos ao longo do tempo. Como outras políticas, a iniciativa de propor reformas e alterações no modelo de formação profissional sempre partiu do Poder Executivo, diante do qual a grande parcela dos envolvidos ficava, na maioria das vezes, apenas assistindo ou recebendo a política já pronta. Independente disso, é forçoso reconhecer o avanço que a criação dos Institutos Federais, em 2008, representou para a proposta de formação profissional no Brasil. Ainda que sejam possíveis inúmeros questionamentos e discussões, a passagem de uma formação técnica e apressada para os desvalidos da sorte e da fortuna em poucas escolas para a criação de inúmeros campi comprometidos com a formação científica, tecnológica e profissional espalhadas, de forma interiorizada, em todo o país foi um avanço.

Entretanto, apesar da grandeza e da importância da criação dos IFs, essa política não está isenta de tensões. Também não é possível falar que, 15 anos depois do seu início, a Rede já tenha consolidado sua identidade. Conforme já exposto, há, atualmente, pelo menos três tensões a partir das quais a Rede se movimenta no intuito de construir sua identidade: retornar para o projeto anterior de uma simples escola técnica, caminhar para se tornar uma universidade nos moldes clássicos ou se transformar apenas em uma escola regular de qualidade para estudantes que historicamente foram privados dessa oportunidade. Tais disputas têm como participantes não só a equipe de professores e técnicos que trabalham nas instituições, mas também estudantes, atores das comunidades, agentes políticos e, sobretudo, fundações privadas e empresariais.

Nos últimos anos, com o aprofundamento do ideário neoliberal no Brasil, as relações entre trabalho e educação foram ainda mais afetadas, construindo o terreno fértil para a implementação não só de contrarreformas, mas também de uma racionalidade privatista e empresarial que permeou toda a Rede. O conceito de estatal não público (OLIVEIRA, 2023b) é uma evidência que corrobora essa afirmação6. Neste contexto, é fácil identificar mecanismos de avaliação, gestão empresarial, financiamento, responsabilização de equipes e imposição de metas que passam a fazer parte do cotidiano da gestão dos IFs. Muito além disso, o que se observa é uma mudança por dentro, um movimento interno em que as instituições vão se transformando no sentido de que suas ações passam a ser pautadas por valores privados e empresariais em detrimento da dimensão pública que deve marcar a Rede.

Neste ínterim, é importante que a Rede não paute sua atuação a partir das perspectivas privadas, mas entenda que sua proposta precisa ultrapassar os limites estreitos do mercado. Para além da autonomia de cada Instituto Federal que precisa ser respeitada, a Rede deve agir como tal, de modo colaborativo e funcionando como uma Rede, buscando construir uma identidade cada vez mais forte. Não se deve, aqui, ceder aos apelos de concorrência entre cada IF. A concorrência e a competitividade que marcam o ideário privatista e neoliberal devem dar lugar a uma ação integrada, colaborativa, planejada e estratégica do colegiado de gestores. Destaca-se, dessa forma, a necessidade de que o CONIF (Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica) atue como um agregador da unidade entre os IFs, sem, contudo, prejudicar a autonomia e as especificidades de cada instituição em particular.

Aqui, vale retomar a discussão acerca da tensão entre qualidade e quantidade já destacada. Num contexto marcado pelo protagonismo de indicadores e de sistemas de avaliação, é importante reconhecer que o foco na restrita quantidade que atende aos critérios mercantis é imposto de forma a ocultar a ideia de uma educação que faculte aos jovens uma formação capaz de desenvolver os fundamentos científicos, tecnológicos, éticos, estéticos e culturais das ciências. Neste caso, a análise histórica aqui empreendida converge com o diagnóstico desenvolvido por Florestan Fernandes, para quem a educação é a chave para decifrar os dilemas e desafios que historicamente foram construídos na sociedade brasileira.

A pedagogia volta a ser a chave para a decifração do nosso enigma histórico. O que a Constituição negou, o povo realizará. Mas ele não poderá fazê-lo sem uma consciência crítica e negadora do passado, combinada a uma consciência crítica e afirmadora do futuro. E essa consciência, nascida do trabalho produtivo e da luta política dos trabalhadores e dos excluídos, não depende da educação que obedeça apenas à fórmula abstrata da “educação para um mundo em mudança”, mas sim da educação como meio de emancipação coletiva dos oprimidos e de conquista do poder pelos trabalhadores (FERNANDES, 2020, p. 29).

É neste sentido que a clareza acerca das heranças e impactos do passado somada à consciência dos desafios e expectativas do futuro conseguem iluminar o debate de modo a revelar as contradições e tarefas do presente. Nesse caso, reforça-se a necessidade de a Rede se esforçar para cumprir o desafio de ser uma instituição com múltiplas funções sem, contudo, deixar que sua identidade seja diluída e prejudicada por conta disso. Diante dos dilemas históricos do país, fica cada vez mais urgente a construção de instituições públicas, interiorizadas, que se ocupem com a oferta de cursos de formação profissional que não sejam apenas um treinamento profissional ou uma capacitação superficial, mas que consigam produzir, além de mão de obra qualificada para o mercado, cidadãos aptos para a atuação política, sujeitos inteiros que consigam responder às demandas da sua vida. Além disso, dada a organização interiorizada dos Institutos, a oferta de cursos de graduação, licenciaturas e pós-graduações também é vista como um diferencial positivo, sobretudo quando tudo isso é ofertado de modo verticalizado, integrado e buscando a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão.

É por conta disso que o debate acerca da construção da identidade dos Institutos Federais neste momento específico se faz pertinente e urgente. Qual será o posicionamento da Rede? Irá retomar ao que foi proposto e desenhado em sua lei de criação – ainda que a amplitude da política traga inúmeros desafios – ou irá se capitular e encolher para se dedicar apenas a uma das três tensões diagnosticadas? Os IFs serão apenas um bom colégio de ensino regular? Sucumbirão às armadilhas da contrarreforma do ensino médio? Retornarão para um colégio técnico e profissional, aos moldes do Sistema S? Cederão à tentação de se transformar em universidades? Este trabalho indica que, no caso específico do Brasil – um país periférico, marcado pelo subdesenvolvimento, pela dependência e pelo atraso, com desigualdades e dualidades cravadas profundamente no sistema educacional –, a saída não é simples. A grandeza do projeto de criação dos Institutos vem acompanhada de inúmeras dificuldades, desafios, contradições e disputas que atravessam sua implementação.

Numa perspectiva dialética, mais do que assumir um único caminho entre as oportunidades colocadas, o que se espera é que a Rede seja capaz de sintetizar todas essas expectativas e influências, abrindo um novo percurso, contornando o óbvio e o simples. Para isso, faz-se necessário realizar a unidade do diverso, acolher as pressões divergentes e sintetizar, em sua atuação, a realização de uma instituição que supere a dicotomia teoria e prática, que entenda as ciências de forma ampliada, que conceba ciência, tecnologia e inovação de uma forma não subordinada aos interesses do mercado, mas que dialogue de forma direta com as demandas do arranjo produtivo local. Só assim, a proposta inicial da Rede irá se realizar de modo a responder às necessidades de um país marcado por dilemas históricos insuperáveis, no sentido de oferecer um projeto educacional que seja capaz de gerar autonomia, emancipação e desenvolvimento inclusivo e sustentável. Ainda que fazer o novo seja uma ação de alto risco e cheia de desafios, se esconder no atalho de reproduzir o velho pode representar uma armadilha que não corresponde às necessidades que o futuro impõe.

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Notas

1 De acordo com as pesquisas de Cunha (2005a; 2005b; 2005c) a educação profissional no Brasil parte de escolas de formação profissionais destinadas a formar índios, escravizados e demais indivíduos desprovidos de cidadania para o exercício compulsório de trabalho manual que era necessário e pouco valorizado. Essa instrução foi se aperfeiçoando com a chegada de mão de obra qualificada de Portugal, que passou a atuar na formação da classe trabalhadora nacional. No início, essa formação se dedicava ao aprendizado de ofícios agrários e comerciais. Só em 1909, com a atuação de Nilo Peçanha, que o ensino industrial começa a ganhar forma no Brasil. Em 1937, as Escolas de Aprendizes Artífices se transformam em Liceus Profissionais. Com a expansão do ideário industrial, em 1959, os Liceus são transformados em Escolas Técnicas Federais, ganhando o status de autarquias. Em 1978, três Escolas Técnicas Federais são transformadas em Centros Federais de Educação Tecnológica (CEFETs): Paraná, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Este movimento de cefetização se expande para as demais escolas da Rede em 1994. Com a criação do Programa de Expansão da Educação Tecnológica em 1997, o movimento de cefetização se conclui em 1999. De lá pra cá, várias unidades foram abertas até que em 2008 é criada a Rede de Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia. Ao lado disso, um intenso debate sobre o lugar da formação profissional e tecnológica foi sendo travado a partir de inúmeras disputas e propostas. Como se verá posteriormente, a educação profissional passa de um ensino compulsório, se torna uma formação apartada da educação básica até se tornar uma modalidade de educação que pode ser oferecida de modo integrado à educação básica.
2 O neologismo “ifetização” é utilizado neste estudo como sinônimo do movimento que transformou as antigas escolas técnicas, agrotécnicas, CEFETs e outras instituições em Institutos Federais.
3 Vale comparar a proximidade que o conceito de consenso por filantropia desenvolvido por Tarlau e Moeller (2020) tem com a ideia de filantrocapitalismo que foi desenhado por Ravitch (2011).
4 A Rede identifica estes cursos rápidos e na modalidade a distância como cursos MOOC, sigla em inglês que significa: Massive On-line Open Courses. Em livre tradução, são cursos massivos (destinados a um grande número de estudantes), on-line e abertos (sem grandes exigências para acesso).
5 Merece destaque o fato de a Plataforma Nilo Peçanha (instrumento que compara indicadores de atendimento e rendimento de todas as unidades da Rede Federal) utilizar a relação aluno-professor (RAP) como um dos índices que sinalizam para a eficácia e o rendimento das instituições.
6 A pesquisa doutoral de Oliveira identifica um novo tipo/movimento de privatização/empresariamento da educação a partir do conceito de estatal não público, entendido por ele como resultado da “inversão do conceito de público não estatal proposto por Bresser-Pereira. Tal conceito sinaliza para o fato de que, mediante a incorporação de práticas de gestão e avaliação na educação pública, as instituições permanecem estatais, mas deixam de atender a finalidades públicas, alinhando- se diretamente ao mercado e à iniciativa privada” (OLIVEIRA, 2023b, p. 21)

Notas de autor

1 Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH/UERJ). Professor de Filosofia e Sociologia no IF Sudeste MG Campus Santos Dumont/MG – Brasil. E-mail: tiago.favero@yahoo.com.br.

Información adicional

COMO CITAR (ABNT): OLIVEIRA, T. F. Institutos Federais: entre o excesso de passado e a incerteza do futuro. Vértices (Campos dos Goitacazes), v. 25, n. 3, e25320710, 2023. DOI: https://doi.org/10.19180/1809-2667.v25n32023.20710. Disponível em: https://essentiaeditora.iff.edu.br/index.php/vertices/article/view/20710.

COMO CITAR (APA): Oliveira, T. F. (2023). Institutos Federais: entre o excesso de passado e a incerteza do futuro. Vértices (Campos dos Goitacazes), 25(3), e25320710. https://doi.org/10.19180/1809-2667.v25n32023.20710.

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