ARTIGOS ORIGINAIS
O Livreiro de Cabul, a cidadania feminina e o Afeganistão: quando chegará o 1789 do Oriente?
The Bookseller of Kabul, women citizenship and Afghanistan: When will 1789 arrive in the Middle East?
O Livreiro de Cabul, a cidadania feminina e o Afeganistão: quando chegará o 1789 do Oriente?
Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 19, núm. 1, 2017
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
Recepción: 07 Enero 2016
Aprobación: 22 Febrero 2017
Resumo: O presente artigo tem como objetivo analisar as relações de gênero em uma sociedade de religião muçulmana como o Afeganistão a partir da obra O Livreiro de Cabul. Para realização deste intento, utiliza-se como referencial teórico o conceito de gênero, o conceito de cidadania proposto por Marshall e a definição de violência simbólica do sociólogo francês Pierre Bourdieu. As conclusões demonstram que em uma cultura fortemente marcada pelo patriarcalismo, as mulheres não possuem os direitos básicos da cidadania - principalmente direitos civis - e são transformadas em bens simbólicos já que podem ser compradas.
Palavras-chave: Cidadania, Relações de Gênero, Violência Simbólica, O Livreiro de Cabul.
Abstract: The article aims at analyzing gender relations in a Muslim society such as Afghanistan in view of the book The Bookseller of Cabul. The theoretical framework is based on the concept of gender, the concept of citizenship proposed by Marshall, and the definition of symbolic violence given by the French sociologist Pierre Bourdieu. Finding show that in strongly patriarchal cultures, women lack basic citizenship rights - civil rights in particular, becoming symbolic goods available for purchase.
Keywords: Citizenship, Gender Relations, Symbolic Violence, The Bookseller of Kabul.
Introdução
Na obra O Livreiro de Cabul, a jornalista norueguesa Asne Seierstad relata o cotidiano de uma família afegã considerada de classe média que vive em Cabul, a capital do Afeganistão. A autora residiu três meses na casa de Sultan Khan1 — o personagem principal do livro e o patriarca da família — na primavera de 2002, logo após a queda do regime talibã2.
Sultan Khan foi uma das primeiras pessoas que Seierstad conheceu ao chegar a Cabul em novembro de 2001. A autora frequentava sua livraria e conversavam sobre literatura e história. Khan era dono de uma livraria com prateleiras abarrotadas de obras literárias em muitos idiomas.
Em uma dessas idas à livraria, Sultan Khan convidou a jornalista para jantar em sua casa, convite que fora imediatamente aceito. Ao chegar à residência do livreiro, a autora encontrou uma família toda sentada em volta de uma farta refeição servida no chão. Estavam presentes uma das mulheres de Sultan Khan, os filhos, as irmãs, o irmão, a mãe e alguns primos. Uma das coisas que mais chamaram a atenção de Seierstad foi o fato de as mulheres falarem pouco. A jovem esposa de Sultan Khan ficava sentada quieta perto da porta sem dizer nada, e as demais mulheres não tomavam a palavra para iniciar uma conversa.
Ao sair do jantar, a jornalista norueguesa pensou ser interessante escrever um livro sobre a família que acabara de conhecer. Dando prosseguimento à empreitada, no dia seguinte apresentou sua ideia a Sultan Khan que concordou e ao mesmo tempo permitiu que uma mulher ocidental fosse morar em sua casa.
A autora deixa claro o que mais a incomodava na sociedade afegã e o que a motivou a escrever a obra: a crença na superioridade masculina e as consequências dessa crença para as mulheres. Nas suas palavras:
O que me revoltava era sempre a mesma coisa: a maneira como os homens tratavam as mulheres. A crença na superioridade masculina era tão impregnada que raramente era objeto de questionamento. Em discussões ficava claro que, para a maioria deles, as mulheres são de fato mais burras que os homens, que o cérebro delas é menor e que não podem pensar de maneira tão clara quanto os homens (SEIRSTAD, 2007, p.13).
É interessante observar como os homens no Afeganistão acreditam na inferioridade da mulher como fruto de fatores biológicos, ou seja, para eles o feminino possui por natureza um deficit de inteligência em relação ao masculino. Fica claro para nós a presença na sociedade afegã de ideias como a de Aristóteles de que as mulheres eram frias e úmidas e sua falta de calor vital para cozinhar o sangue e purificar a alma. De acordo com Schiebinger (2010), para o filósofo grego essa falta de calor explicava a faculdade racional mais fraca da mulher. Permanece também no Afeganistão em pleno século XXI a ideologia de craniologistas do século XIX que buscaram provar que o cérebro feminino era muito pequeno para o raciocínio científico.
A partir da constatação na crença da inferioridade feminina, a autora escreve um livro em forma literária, com base em histórias reais das quais participou ou que foram contadas pelas pessoas que as viveram. Seierstad não era obrigada a seguir os severos códigos de vestimentas das mulheres afegãs e tinha liberdade de ir aonde quisesse. Mesmo assim, quase sempre vestia a burca, simplesmente para ser deixada em paz. A autora sob a burca estava
[...] livre para olhar à vontade sem que ninguém me olhasse. Eu podia observar as outras pessoas da família fora de casa sem atrair a atenção para mim. O anonimato tornou-se uma libertação, era o único lugar onde podia me refugiar, porque em Cabul praticamente não há um lugar tranquilo para se estar sozinho. (SEIRSTAD, 2007, p.14)
A jornalista utiliza a burca como uma forma de captar o que realmente sente uma mulher afegã submetida a sua indumentária. A autora realiza uma observação participante no sentido do antropólogo polonês Bronislaw Malinowski e participa “pessoalmente do que está acontecendo” (MALINOWSKI, 1976, p.35). A burca serviu para Seierstad compreender o que é espremer-se em um dos três bancos traseiros de um ônibus quando há muitos bancos livres na frente. Como é dobrar-se no porta-malas de um táxi porque há um homem no banco de trás. Como é ser olhada com uma burca alta e atraente e, ao passar pela rua, receber o primeiro elogio “burca” de um homem.
Realizada essa breve introdução sobre o livro, é chegada a hora de expor o objetivo principal deste artigo. A partir da obra O Livreiro de Cabul, discutiremos um tema que, ainda no século XXI, é uma barreira à igualdade entre homens e mulheres, qual seja, a questão da cidadania. Analisar a cidadania feminina no Afeganistão à luz da obra acima mencionada é nosso alvo principal nas linhas que se seguem.
Para discutir a opressão da mulher e a cidadania feminina no Afeganistão utilizaremos como referencial teórico o conceito de gênero. Gênero é entendido neste trabalho como o “saber a respeito das diferenças sexuais. Tal saber não é absoluto ou verdadeiro, mas sempre relativo” (SCOTT, 1994, p.12). Gênero é, portanto, o discurso que é estabelecido a partir das diferenças sexuais entre homens e mulheres.
Segundo Bruschini (1992), gênero como categoria de análise é um modo de se referir à organização social das relações entre os sexos. Em uma rejeição total ao determinismo biológico, que busca as explicações para a sujeição da mulher em sua capacidade procriativa ou na força física masculina, o gênero enfatiza as qualidades sociais das distinções baseadas no sexo. É uma categoria relacional, que define homens e mulheres uns em relação aos outros.
É importante ressaltar que ao utilizarmos o conceito de gênero não estamos simplesmente fazendo uma escolha conceitual ou metodológica, mas enfatizando que as relações entre masculino e feminino são marcadas por relações de poder. Segundo Schienbinger:
Gênero, hoje, é com frequência usado impropriamente como uma palavra de código para “sexo”, “mulher”, ou “feminista”. Ele é mais propriamente usado para referir um sistema de signos e símbolos denotando relações de poder e hierarquia entre os sexos. Ele pode também referir-se a relações de poder e modos de expressão no interior de relações do mesmo sexo (SCHIENBINGER, 2010, p.45).
Para finalizar a parte introdutória deste trabalho, gostaria de demonstrar nossa negativa em trabalhar com as chamadas teorias desconstrutivistas ou pós-estruturalistas que têm como principal representante a filósofa norte-americana Judith Butler. Heilborn (2006) afirma que Butler promove um ataque à formulação mais usual de gênero, isto é, a distinção entre sexo como natural e gênero como construído. Além disso, o binarismo de gênero homem/mulher e masculino/feminino não seria capaz, segundo Butler, de dar conta da variabilidade em um mundo em que as identidades são multifacetadas e mudam com muita velocidade.
O feminismo de Butler é a defesa de uma desmontagem de todo o tipo de identidade de gênero que, segundo ela, oprimiria as singularidades humanas que não se encaixariam ou não seriam adequadas no cenário da bipolaridade.
Butler (2010) também questiona se existe a necessidade de uma unidade da categoria mulheres e se a unidade seria necessária para a ação política efetiva. A filósofa responde a sua indagação afirmando que certas formas de fragmentação podem facilitar a ação, e isso exatamente porque a “unidade” da categoria mulher não é nem pressuposta nem desejada.
Em oposição à filósofa norte-americana, trabalhamos neste estudo com identidades de gênero construídas socialmente a partir do binarismo macho/fêmea. Nesse sentido, a categoria mulher é fundamental para que, em um processo de ação política, essas identidades possam ser problematizadas e transformadas.
O conceito de cidadania, a cidadania feminina e o afeganistão
Antes de discutirmos a cidadania feminina em Cabul, é necessário tecer algumas considerações a respeito do conceito de cidadania utilizado neste artigo.
Em sua obra Cidadania, Classe Social e Status, Marshall afirma que há uma espécie de igualdade humana básica associada com o conceito de participação integral na comunidade — ou, como o autor diria, de cidadania — que não é inconsistente com a desigualdade entre as classes sociais. Para Marshall, a desigualdade social pode ser aceita desde que a igualdade de cidadania seja reconhecida.
Ao analisar a cidadania na Inglaterra, o autor a divide em três elementos: civil, político e social. Ao definir cada uma dessas partes, Marshall observa que:
O elemento civil é composto dos direitos necessários à liberdade individual — liberdade de ir e vir, liberdade de imprensa, pensamento e fé, o direito à propriedade de concluir contratos válidos e o direito à justiça [...] Por elemento político se deve entender o direito de participar no exercício do poder político, como um membro de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal organismo [...] O elemento social se refere a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar uma vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade. As instituições mais intimamente ligadas com ele são o sistema educacional e os serviços sociais. (MARSHALL, 1967, p.63)
Ainda se referindo à Inglaterra, o autor atribui a formação de cada um dos direitos da cidadania a um século diferente. Os direitos civis se desenvolveram no século XVIII, os políticos no século XIX, e os sociais no século XX.
Seguindo as premissas de Marshall, o historiador José Murilo de Carvalho argumenta que o cidadão pleno seria aquele que fosse titular dos três direitos básicos: civis, políticos e sociais. De acordo com Carvalho (2005), os direitos civis são os direitos fundamentais à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei; os políticos se referem à participação do cidadão no governo da sociedade e, por fim, os direitos sociais correspondem ao direito à educação, saúde, ao trabalho e à aposentadoria.
Além dos elementos civil, político e social, quando nos referimos à cidadania feminina, gostaríamos de acrescentar que o conceito também será entendido neste trabalho como o “direito de ter direitos, ou seja, como igualdade e como eliminação de formas hierárquicas relacionadas ao natural”. (PINSKY; PEDRO, 2008, p.294)
Um dos primeiros aspectos que nos chamou a atenção na obra O Livreiro de Cabul está relacionado ao fato de as mulheres no Afeganistão não possuírem direitos civis. Como exemplo podemos mencionar Leila, irmã de Sultan Khan, que não possui liberdade de ir e vir. Seierstad narra que Leila nunca anda totalmente sozinha, pois uma mulher jovem não pode andar desacompanhada devendo, pelo menos, levar um menino vizinho. Leila nunca esteve sozinha. Nunca ficou sozinha no apartamento, nunca foi sozinha para lugar algum, nunca foi deixada sozinha em lugar algum, nunca dormiu sozinha. Todas as noites dorme no tapete ao lado da mãe.
É necessário ressaltar que a mulher em Cabul não pode dispor do seu próprio corpo como bem lhe aprouver, ou seja, a mulher não tem a liberdade e a propriedade sobre o seu próprio corpo. As mulheres, principalmente as jovens, são objetos de compra e venda. No Afeganistão, mulher apaixonada é tabu. Um casamento é um contrato entre famílias ou dentro da mesma família. A vantagem que o casamento pode ter para o clã é o que determina tudo; sentimentos raramente são levados em consideração.
Para corroborar o que afirmamos acima, tomemos como exemplo o caso de Sonya, a segunda esposa de Sultan Khan. Sabe-se que a religião muçulmana é poligínica, isto é, o homem pode contrair mais de um casamento, o que não ocorre com a mulher. Quando Sharifa, a primeira esposa de Sultan Khan, envelheceu, o livreiro passou a procurar outra esposa. Quando Sultan Khan resolveu se casar com a bela e jovem Sonya, o pai da menina viu a oportunidade de receber um belo dote pela filha.
Quando o pai decidiu que ela se casaria com o Sultan Khan, Sonya simplesmente baixou os olhos e nada disse. Qualquer resposta seria uma transgressão de todas as regras, já que uma moça não deve achar nada a respeito de um pretendente; o pai decide e pronto. Sonya não queria aquele homem, mas sabia que era obrigada a aceitar o desejo dos pais. Dessa forma, a menina foi entregue a Sultan Khan em troca de um anel, um colar, brincos e um bracelete, todas as peças em ouro. Além disso, o pai recebeu 300 quilos de arroz, 150 quilos de óleo de cozinha, uma vaca, alguns carneiros e 15 milhões de afeganis, aproximadamente 300 libras.
É interessante como o sistema de compra e venda de esposas acaba se reproduzindo na sociedade. O dote valioso obtido por Sonya além de solucionar muitos problemas financeiros da família, ajudaria os irmãos a comprar boas esposas.
Gostaríamos de argumentar que o casamento como é realizado na sociedade afegã transforma as mulheres em bens simbólicos. Segundo Pierre Bourdieu, o mercado matrimonial transforma as mulheres em objetos ou símbolos cuja função é contribuir para a perpetuação ou o aumento do capital simbólico em poder dos homens. Nas palavras do sociólogo francês:
É na lógica da economia de trocas simbólicas — e, mais precisamente, na construção social das relações de parentesco e do casamento, em que se determina às mulheres seu estatuto social de objetos de troca, definidos segundo os interesses masculinos, e destinados assim a contribuir para a reprodução do capital simbólico dos homens —, que reside a explicação do primado concedido à masculinidade nas taxionomias culturais. (BOURDIEU, 1999, p.56).
Como ficou demonstrado, no Afeganistão, o casamento transforma as mulheres em uma mercadoria que pode ser comprada e vendida gerando capital simbólico e também econômico. No caso do casamento de Sonya, a menina aumentou o capital simbólico de Sultan Khan — que obteve uma bela e jovem esposa — e, ao mesmo tempo, serviu como fonte de capital econômico para a família de seu pai, que recebeu uma determinada quantia em dinheiro — assim como outros bens — para autorizar a união.
Além de o casamento ser um negócio, no Afeganistão é praticamente impossível as mulheres terem a liberdade de pedir divórcio. Sharifa, a primeira esposa de Sultan Khan, teve que suportar calada o segundo casamento de seu marido, pois, para ela, as consequências de uma contestação seriam drásticas. A esse respeito Seierstad comenta que:
O divórcio nunca foi uma alternativa para Sharifa. Quando uma mulher pede o divórcio, ela perde todos os seus direitos. Os filhos seguem o marido e ele pode até impedi-la de vê-los. A mulher se torna uma vergonha para a família, é muitas vezes expulsa, e todos os seus bens cabem ao marido. Sharifa teria que se mudar para a casa de um dos irmãos. (SEIERSTAD, 2007, p.42)
É importante ressaltar que a ausência de liberdade individual da mulher, que a impede de exercer seu direito civil, pode se refletir na ausência de outros direitos, como por exemplo, o direito social à educação. Foi o que aconteceu a Feroza, a irmã mais velha de Sultan Khan. Ela nunca pôde ir à escola porque a família era pobre e porque foi prometida em casamento para um homem de negócios bem-sucedido. Como geralmente os maridos também proíbem as esposas de frequentarem a escola, a ausência do direito à liberdade de ir e vir fez com que Feroza não fosse portadora do direito à educação.
Em uma sociedade marcada pelo patriarcalismo — depois de Alá e dos profetas, é o pai quem possui o posto mais alto — e também patrilinear — já que a herança étnica3 vem do pai — as mulheres são constantemente submetidas ao que Pierre Bourdieu denomina violência simbólica. O autor chama de violência simbólica:
a violência suave, insensível, invisível a suas próprias vítimas, que se exerce essencialmente pelas vias puramente simbólicas da comunicação e do conhecimento, ou, mais precisamente, do desconhecimento, do reconhecimento ou, em última instância, do sentimento. (BOURDIEU, 1999, p.42).
A obrigatoriedade de as mulheres utilizarem a burca nos revela a ação da violência simbólica sobre seus corpos e mentes. Seierstad observa que foi durante o regime do rei Habibullah, entre 1901 e 1919, que a burca foi introduzida. Ele impôs às duzentas mulheres do seu harém seu uso, para que não tentassem outros homens com seus belos rostos quando estavam fora dos portões do castelo. Com o passar do tempo, a burca transformou-se em um traje para proteger as mulheres da classe alta dos olhares do povo e, nos anos 50 do século passado, o uso da burca já estava difundido no país inteiro.
Ao tomar o poder em 1996, o Talibã decretou a proibição de as mulheres andarem descobertas, isto é, sem as burcas. Os taxistas foram proibidos de aceitar mulheres que não estivessem usando burcas. Os maridos que permitissem que suas mulheres andassem sem as burcas seriam punidos.
A burca é um instrumento de violência simbólica que submete as mulheres ao controle dos homens. De uma forma sutil, esse traje permite aos homens saberem para onde suas mulheres estão olhando. Ao comentar as principais consequências para as mulheres da utilização da burca, a autora afirma que:
Mulheres de burca são como cavalos com antolhos, só podem ver numa direção. Nas laterais, a rede do véu se fecha, impedindo olhares de soslaio. É preciso virar a cabeça inteira. Outro truque dos inventores da burca: um homem deve saber quem ou o quê sua mulher persegue com os olhos. (SEIRSTAD, 2007, p.112).
Quando a mulher supostamente possui algum poder no Afeganistão, este geralmente é usado para a própria reprodução da dominação masculina. O comportamento de Bibi Gul — a mãe de Sultan Khan — pode confirmar o que estamos dizendo. De acordo com Seierstad, Bibi Gul não faz mais nada. A sua vida de trabalho acabou. Quando uma mulher tem filhas adultas, ela se torna uma espécie de líder da casa, dando conselhos, arranjando casamentos e cuidando da moral da família, principalmente de suas filhas. Ela cuida para que não saiam sozinhas, para que se cubram como devem, para que não se encontrem com homens fora da família, para que sejam obedientes e educadas. Depois de Sultan, ela é a mais poderosa da família.
Podemos interpretar o comportamento de Bibi Gul à luz do pensamento de Pierre Bourdieu. O pensador francês observa que o poder simbólico é, com efeito, “esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem” (BOURDIEU, 2009, p.07).
A matriarca da família Khan, ao submeter suas filhas a uma rígida disciplina moral, contribui, sem perceber, para a perpetuação e reprodução de uma forma de dominação em que ela mesma é uma das vítimas, qual seja, a dominação masculina. A atitude de Bibi Gul demonstra como os dominados aplicam àquilo que os domina esquemas que são produtos da dominação. Portanto, pelo fato de a violência simbólica ser imperceptível e invisível, as próprias mulheres aderem à dominação que sofrem e, ao mesmo tempo, reproduzem essa dominação. Sobre essa questão Bourdieu enfatiza que:
As próprias mulheres aplicam a toda a realidade e, particularmente, às relações de poder em que se veem envolvidas esquemas de pensamento que são produto da incorporação dessas relações de poder e que se expressam nas oposições fundantes da ordem simbólica. Por conseguinte, seus atos de conhecimento são, exatamente por isso, atos de reconhecimento prático, de adesão dóxica, crença que não tem que se pensar e se afirmar como tal e que “faz”, de certo modo, a violência simbólica que ela sofre (BOURDIEU, 1999, p.45).
Dessa forma, podemos compreender a dificuldade de ocorrer uma mudança na condição da cidadania feminina no Afeganistão. Quando os dominados — no caso as mulheres — aplicam categorias construídas do ponto de vista dos dominantes — os homens —, as relações de dominação passam a ser vistas como naturais. Essa naturalização da hierarquia entre os gêneros impede o desenvolvimento da cidadania da mulher, pois não permite que as mulheres se vejam como iguais aos homens e consigam romper com as hierarquias relacionadas ao natural.
Conclusões
Ao se referir à questão da cidadania, Groppi (1995) observa que é na Revolução Francesa que se prepara a construção de um modelo de cidadania que atravessou o Ocidente europeu nos últimos duzentos anos e do qual as mulheres permaneceram por muito tempo excluídas. Apesar de a igualdade ter sido anunciada como um princípio geral, a cidadania foi negada para os muito pobres ou para aqueles que eram muito dependentes para exercerem o pensamento autônomo que é, sem dúvida, uma característica importante do cidadão. Dessa forma, foram excluídos da cidadania os escravos, pois eram propriedade de outros, e as mulheres, porque se acreditava que seus deveres domésticos e o cuidado com as crianças eram um impedimento à participação política.
A exclusão das mulheres da categoria de cidadãs repousava na ideologia de que a função do feminino restringia-se à esfera doméstica, principalmente à educação dos filhos. Ao serem excluídas do jogo político, não possuíam cidadania na verdadeira acepção do termo, e essa exclusão era justificada por argumentos que invocavam uma suposta “natureza” feminina.
Em Cabul a mulher não é considerada um indivíduo portador de direitos. As mulheres são responsáveis pela educação e união da família, pela provisão de alimentos e vestuário. O valor de uma noiva está no hímen, e o de uma esposa está em quantos filhos homens ela põe no mundo. Portanto, a mulher vive para suprir as necessidades da casa ou para fornecer novos homens para a sociedade.
Nesse sentido, a indagação final deste trabalho pode ser expressa da seguinte forma: se nos países ocidentais que sofreram a influência da ideia de igualdade da Revolução Francesa de 1789 as mulheres na prática foram excluídas do público e relegadas ao privado, situação que até hoje não foi equacionada, o que dizer de um país como o Afeganistão que nem mesmo passou por uma ruptura histórica que pelo menos colocasse a ideia de igualdade na mente dos indivíduos? Não queremos tratar aqui a história como um movimento evolutivo em direção ao progresso. Contudo, pensamos que atualmente o caminho das mulheres afegãs em busca da cidadania é mais longo que o da maioria das mulheres dos países ocidentais.
A estrada que leva à cidadania não necessariamente deve seguir a rota explicitada por Marshall. Primeiro viriam os direitos civis, depois os políticos e, por fim, os sociais. No entanto, pensamos que, sem o desenvolvimento dos direitos civis, sem um mínimo de liberdade de locomoção, de pensamento e de capacidade de dispor do próprio corpo, dificilmente as mulheres de Cabul alcançarão os direitos políticos e sociais. A ausência de direitos civis para as mulheres tornam o solo do Afeganistão infértil para o desenvolvimento dos demais direitos.
Sultan Khan é um ser controverso. Era favorável a um Afeganistão moderno e falava com entusiasmo da libertação da mulher. No entanto, dentro de casa continuava sendo um patriarca autoritário, conduzindo com mão de ferro a vida das mulheres; mulheres que, no século XXI, ainda aguardam o advento do 1789 do Oriente, que, certamente, não virá pelas mãos dos homens.
Referências
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Notas
Notas de autor