ARTIGOS ORIGINAIS
Uma análise comparativa entre Foucault e Elias: a questão da emergência da prisão e a permanência do fervor punitivo passional
A comparative analysis between Foucault and Elias: emergence of prisons and the permanence of the passionate punitive fervor
Uma análise comparativa entre Foucault e Elias: a questão da emergência da prisão e a permanência do fervor punitivo passional
Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 19, núm. 2, 2017
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
Recepción: 06 Mayo 2016
Aprobación: 30 Agosto 2017
Resumo: A hegemonia da prisão como medida punitiva universal em contraposição à anterior publicização da pena é um fato histórico que marcou a passagem para a modernidade. A partir desse quadro paradoxal que permaneceu na sociedade moderna após o surgimento da prisão, busca-se, neste artigo, expor explicações, de fundo sociológico, acerca da passagem de uma forma pública de punição para uma encapsulada e distante da sociedade, a partir de dois autores que parecem se contrapor, tanto teoricamente, quanto metodologicamente: o sociólogo alemão Norbert Elias e o filósofo francês Michel Foucault. Ambos chegam por vias distintas a explicações sobre esse quadro paradoxal, embora ainda guardem alguns pontos de contato. Por fim, sinalizamos como esse diagnóstico já estava, de alguma forma, anos antes, presente nos escritos durkheiminianos. Essa pluralidade de explicações, advindas de tradições teóricas distintas, acerca de um mesmo fenômeno, traz a evidência de que a permanência da prisão e seu desajuste com a sociedade contemporânea é um fenômeno social objetivo, independentemente de tal ou qual abordagem sociológica.
Palavras-chave: Norbert Elias, Michel Foucault, Prisão, Processo civilizador, Punição.
Abstract: The hegemony of prisons as universal punitive measure, in contrast to previous public sentencing, is a historic fact that marked the transition to modernity. Considering this paradoxical scenario that remained in modern society after the emergence of prisons, this article aims to provide sociological explanations of the transition from public forms of punishment to those encapsulated and distant from society. The study is based on two authors who seem to be opposite in both theory and method: the German sociologist Norbert Elias and the French philosopher Michel Foucault. By different routes, both provide explanations on this paradoxical situation, although keeping points of contact. We also point out how that this diagnosis was somehow, years earlier, present in the Durkheim's writings. This plurality of explanations, derived from distinct theoretical traditions of the same phenomenon, demonstrates that the permanence of prisons and its mismatch with contemporary society is an objective social phenomenon, regardless of the sociological approach.
Keywords: Norbert Elias, Michel Foucault, Prison, Civilizing process, Punishment.
1 Introdução
Um objeto de investigações sociológicas pertinentes é bem identificado quando diferentes pensadores em diferentes correntes teóricas tentam explicá-lo, ou parecem poder explicá-lo. O fato histórico da hegemonia da prisão como medida punitiva universal em contraposição à anterior publicização da pena é um desses objetos. Por isto, este trabalho tem por objetivo expor duas explicações sociológicas acerca da passagem de uma forma pública de punição para uma forma punitiva privada e encapsulada, a saber, as explicações de Norbert Elias e de Michel Foucault. Ambos pertencem a filiações teóricas e metodológicas muito distintas, mas mostraremos como trazem explicações convergentes sobre o tema da punição, apontando para um processo de racionalização da punição.
Nas apresentações das interpretações teóricas, buscar-se-á dar ênfase ao quadro contraditório que permaneceu após o surgimento da prisão: embora a punição tenha aparentemente se adocicado e acabado com as cenas bárbaras de violência (na medida em que foi centralizada por um poder estatal representado pela figura do sistema penal), ainda encontramos, no interior da sociedade contemporânea, um clamor punitivo passional da sociedade. Assim, veremos como se pode dar conta dessa questão inspirados por essas duas interpretações teóricas distintas.
Ao final, julgou-se válido traçar um paralelo com a obra do sociólogo Émile Durkheim, que, embora não tenha se debruçado sobre essa passagem histórica em questão, conseguiu apontar para o quadro contraditório descrito ainda no começo do século XX.
2 Do fim do suplício ao surgimento da prisão: breve retomada histórica
Antes da apresentação das interpretações foucaultiana e elisiana, julgou-se necessária uma breve reconstrução histórica sobre os fatos que remontam essa transformação do sistema punitivo, que implica na passagem do fim da publicização da punição para a emergência da prisão.
Para tal, é preciso retomar a chamada “Era Clássica das Penas”, que datou do período entre XIV e XVII, historicamente conhecido como a Alta Idade Média. Nessa época, o suplício era a forma mais comum de punição para determinados crimes, no mundo ocidental. O suplício se caracterizava como uma pena que implicava na imposição de uma gradação de sofrimentos, de maneira calculada, sobre o corpo da vítima. Essa punição, de caráter corpóreo, tinha caráter teatral e atmosfera ritualística para marcar o poder do monarca que punia. A punição assim permaneceu até o final do século XVII.
O período de transição entre o suplício e o surgimento da prisão remonta ao século XVIII, na época do mercantilismo, do nascimento do capitalismo e da formação dos Estados Modernos. É interessante notar que nesse mesmo período, a criminalidade sofre um deslocamento por conta do crescimento do capitalismo. Os bens no capitalismo são associados, majoritariamente, à sociedade privada, punindo a apropriação indevida da propriedade de outrem. A punição acompanha o surgimento das classes sociais baseadas em bens, sendo o crime contra o patrimônio o principal alvo da punição. Além disso, com a formação dos Estados Modernos, há a emergência de um poder central forte que, a um só tempo, monopoliza o uso da violência e cria um sistema penal racionalizado que dará conta de todas as punições legais ocorridas dentro daquela delimitação de território.
O fim do suplício e o surgimento da prisão eram explicados, pelos juristas da época, como reflexo dos novos princípios trazidos pela Revolução Francesa (fraternidade, liberdade e igualdade) e já não poderiam mais conviver com um sistema penal violento e bárbaro. Assim, havia uma grande concentração de filósofos e teóricos do direito, juristas, magistrados e parlamentares que eram contra a tirania, o excesso, a sede de vingança e o cruel prazer de punir que antes vigoravam.
Dessa maneira, a ostentação dos suplícios públicos foi sucedida por uma suavização das penas e punições, as quais passam a ser cada vez menos físicas e cada vez mais discretas, desaparecendo assim o corpo supliciado, esquartejado e amputado publicamente. A punição vai se tornando, contrariamente ao que acontecia, a parte mais velada do processo penal. O surgimento e, sobretudo, a permanência da prisão deixam um problema de pesquisa importante aos pesquisadores das Ciências Humanas: por que o confinamento, isto é, a prisão, foi a forma favorecida na sociedade ocidental moderna em detrimento do suplício? E ainda desdobrando um pouco mais essa questão: por que o clamor punitivo violento e passional que estava presente nos rituais de suplício, ainda se fazem presentes em sociedades que contam com um sistema penal racionalizado que busca mitigar as penas corporais e vingativas?
A seguir exploraremos como Foucault e Elias respondem a primeira pergunta a partir de bases teóricas e os instrumentos metodológicos distintos e como podemos levantar hipóteses sobre suas respostas acerca da segunda questão. A apresentação dos autores, a seguir, será feita da seguinte maneira: a) breve apresentação de suas bases teóricas; b) demonstração de suas interpretações (ou interpretações diretamente inspiradas neles) acerca da passagem histórica em questão e c) tentativa de formular possíveis respostas de ambas as questões acima postas.
3 A interpretação foucaultiana: a economia política do poder e a noção de acontecimento
Foucault foi um autor que explorou muitos tipos de pensamento. No início de sua carreira foi um grande expoente do estruturalismo, sendo História da Loucura, e As palavras e as coisas, as principais delas. No último, podemos observar algumas semelhanças, mas muitas dessemelhanças com seu futuro trabalho. Vemos a história ser construída em grandes camadas temporais que são seccionadas e incomensuráveis, chamadas de épistêmes, o limite do pensável, da racionalidade. Ela é uma unidade em que há certos elementos que orientam o pensamento de forma geral. Por outro lado, a noção de acontecimento parece permear a demonstração da passagem de uma épistême a outra, isto é, o esgotamento da épistême em vigência por motivos variados levam à formação de uma outra. Já em sua fase posterior ao estruturalismo, como em Vigiar e Punir, Foucault faz uso do método genealógico. A genealogia se opõe à unicidade da narração histórica, que busca a origem dos fatos, uma vez que a genealogia parte da diversidade e aleatoriedade dos começos e da singularidade dos fatos (THIRY-CHERQUES, 2010, p. 233). Ela é bastante distinta do projeto anterior, sendo o método genealógico o que será aplicado para a investigação da emergência da prisão.
Essa noção de acontecimento sustenta a explicação histórica do aparecimento da prisão, sobre o qual Foucault discorre e explica longamente em Vigiar e Punir. Ali, o autor francês discorre sobre o fim do suplício e destaca a hegemonia da forma prisão que emerge no século XVIII. A prisão acaba com o sofrimento corporal e impõe uma medida de privação de liberdade para o ato cometido. Sua ideia central é fazer com que se puna e se repreenda todas e quaisquer ilegalidades. A prisão, contudo, não é apenas uma resposta ao ato cometido, mas mais do que isso, ela se insere “mais profundamente no corpo social, o poder de punir” (FOUCAULT, 2009, p. 79). Por isso, a ideia central de Foucault é demonstrar como o sistema prisional é expressão de uma nova sociedade, cuja arquitetura de poder é a disciplina, que consequentemente implica na descentralização e capilarização do poder1.
É partindo da ideia de que a prisão nada mais é do que uma expressão, entre outras, da emergência da sociedade disciplinar, que Foucault rebate a ideia apresentada pelos juristas da época de que essa nova forma de punição seria uma tentativa mais humanitária na forma de punir. Assim, não teria havido tentativa de rejeitar o suplício, adocicar a punição e poupar os infratores da dor, mas, sim, uma necessidade de se disciplinar os corpos de maneira mais eficaz (FOUCAULT, 2009). A prisão traz uma economia mais regular e eficaz do poder, cumprindo a necessidade política de controle e utilização dos corpos capturados. É por esse motivo que não se imputa imenso sofrimento físico, nem se destrói o corpo como se fazia com os suplícios, nos seus elementos constitutivos da pena, mas, sim, aproveita-se o corpo do condenado e sobre ele tenta remodelar os indivíduos (FOUCAULT, 2009).
Ao longo de Vigiar e Punir, Foucault demonstra como essa nova tecnologia de poder disciplinar não implicava em um sistema de poder único e omnicompreensivo, mas sim em um sistema de micropoderes. Foucault descreve uma microfísica do poder com inúmeros pontos de enfrentamento, sendo possível identificar uma vigilância hierárquica, realizada pelos funcionários, através de um simples olhar, de todos aqueles que estão debaixo de seu controle. Os funcionários e os agentes da polícia começam a julgar a normalidade e a moralidade do prisioneiro, sancionando aqueles que violaram as normas.
Esse poder disciplinar sancionador e julgador não é inerente apenas à prisão, mas se exerce em diversas outras instituições disciplinares que transcendem a rede policial estatal. Todas essas instituições exercem um micropoder sobre os indivíduos. Tal poder se constrói nas relações interindividuais, abarcando tanto aqueles que exercem o poder, quanto aqueles sobre os quais se exerce o poder. A concepção foucaultiana de poder é muito importante para compreendamos a emergência e permanência da prisão em detrimento de outras formas de punição, pois ela contraria concepção marxista de poder, uma vez que Foucault aponta para um poder que não pode ser detido como uma propriedade, uma vez que ele não se dá, não se troca e não se retoma, mas se exerce, isto é, só existe em ação.
Essa contraposição à noção marxista é possível, Foucault traça uma análise histórica que parte das franjas do corpo social, examinando como os mecanismos de controle podem funcionar para além da dominação de classe, em células mais elementares da sociedade, em que esses fenômenos de repressão ou exclusão são dotados de instrumentos e lógica próprios. Esses mecanismos de poder passam a se tornar economicamente vantajosos e politicamente úteis. Essa mudança na economia do poder se conformou em várias áreas da vida social, sendo a punição uma das mais importantes áreas da mesma. E foi na prisão que essa economia encontrou sua forma de exceção mais privilegiada. É ela que proporciona encontrar a melhor forma de distribuição do poder,
[...] é aquela forma que alcança um poder não através de um corpo dilacerado, mas sim através de um regime de disciplina, que trabalha sobre o próprio corpo do agressor [...] assim, os reformadores tiveram a preocupação de inserir o poder de punição mais profundamente no corpo social (VAUGHAN, 2000, p. 73).
Assim, de acordo com Foucault, o que substitui o suplício não é um encarceramento humanitário, mas sim toda uma estrutura disciplinar muito bem articulada, sobretudo politicamente. A noção de acontecimento como fundo explicativo para o surgimento e permanência da prisão parece fazer sentido, quando Foucault demonstra que a história da prisão não segue um fluxo processual:
Pois logo a seguir, a prisão, em sua realidade e seus efeitos visíveis, foi denunciada como o grande fracasso da justiça penal. Estranhamente, a história do encarceramento não segue uma cronologia ao longo da qual se sucedessem logicamente: o estabelecimento de uma penalidade de detenção, depois o registro de seu fracasso; depois a lenta subida dos projetos de reforma, que chegariam à definição mais ou menos coerente de técnica penitenciária; depois a implantação desse projeto; enfim a contestação de seus sucessos ou fracassos. Houve na realidade uma superposição ou em todo caso outra distribuição desses elementos. E do mesmo modo que o projeto de uma técnica corretiva acompanhou o princípio de uma detenção punitiva, a crítica da prisão e de seus métodos aparece muito cedo, nesses mesmos anos de 1820-1845; ela, aliás, se fixa num certo número de formulações que – a não ser pelos números – se repetem hoje sem quase mudança nenhuma. [...] As prisões não diminuem a taxa de criminalidade: pode-se aumentá-las, multiplicá-las ou transformá-las, a quantidade de crimes e de criminosos permanece estável, ou ainda pior, aumenta. (FOUCAULT, 2009, p. 250 e 251).
A noção de acontecimento fica mais clara quando entendemos que a emergência da prisão não era a forma predominante entre os reformistas que, à época, debatiam outras formas de punição. O jurista Jeremy Bentham formulava punições que previam a “expulsão social do criminoso” como solução penal, isto é, o criminoso seria expulso, deportado, banido do espaço legal, onde ele cometeu o crime. Cesare Beccaria, por sua vez, também pensou em uma espécie de exclusão psicológica e moral dentro da própria sociedade, que se efetivaria por meio da humilhação, da aversão e do desprezo perante o criminoso. As proposições Brissot apontavam para o trabalho forçado como forma de reparação ao dano social. Contudo, nenhum dos projetos (e ainda houve outras proposições mais marginais) foi à frente, e a prisão se destacou como a punição por excelência no sistema penal ocidental.
Mesmo assim, sua ineficácia foi detectada quase que simultaneamente ao seu surgimento:
a “reforma” da prisão é mais ou menos contemporânea à própria prisão [...] A prisão se encontrou, desde o início, engajada numa série de mecanismos de acompanhamento, que aparentemente devem corrigi-la, mas que parecem fazer parte do seu próprio funcionamento” (FOUCAULT, 2009, p. 220).
A diminuição da criminalidade, que devia ser o principal objetivo a ser alcançado, também não foi uma realidade que se concretizou. Muito pelo contrário, a prisão passou a criar delinquências, marginalidades e criminalidades que não são consequências diretas da prisão, mas, sim, seu resultado indireto e mais silencioso. A criação de uma classe delinquente, entretanto, não é mero acaso, mas sim uma criação bem definida que não controla apenas o crime, mas também as classes populares (FOUCAULT, 2007). Na prisão, isso acontece por conta do isolamento' dos detentos, impondo-lhes “limitações violentas” e um “funcionamento que se desenrola no sentido de abuso de poder arbitrário da administração” (FOUCAULT, 2007, p. 252).
Como visto, a explicação de Foucault sobre o surgimento da prisão está relacionada à noção de acontecimento. A noção de acontecimento parece também permitir a explicação da segunda pergunta: como é possível a persistência da característica irracional do clamor por vingança no interior de um sistema punitivo racionalizado? Em primeiro lugar, a noção de acontecimento indica que a racionalização do sistema punitivo não foi nem um processo planejado, nem uma tendência interna racionalizante, pacificadora ou civilizatória. Não houve uma cadeia causal de eventos que se sucederam de maneira teleológica resultando no enclausuramento, como produto único de um processo racionalizado. O que houve foi uma série contingencial de soluções distintas e até aleatórias em que uma forma predominou sobre as demais. Mesmo que se tenha formado, em meio à sociedade disciplinar, um sistema penal racionalizado, cheio de regras e que pune útil e meticulosamente, Foucault deixa claro que este não emergiu por uma demanda de suavização das penas, mas sim como resposta a um projeto político claro.
O clamor por sangue, que parece irracional em nossa atribuição causal da história e em nossa consideração racional sobre a sociedade, somente poderia ser pensado assim se a demanda pela suavização das penas tivesse sido a causa direta para a forma de punição suavizada fisicamente. Desta maneira, embora Foucault não discorra muito sobre o assunto, podemos concluir que para ele não é contraditória a coexistência do sistema penal racionalizado e do fervor punitivo violento do público, por eles não fazerem parte de um processo unidirecional em que o segundo seria solapado pelo primeiro. Assim, é possível notar que a interpretação histórica de Foucault, por sua análise genealógica, prioriza os efeitos pragmáticos que os jogos de poder produzem. E seria a prisão um desses produtos que aparecem como forma de resposta ao problema da punição. Qualquer produto histórico compreendido a partir de uma concepção do desenvolvimento de produtos históricos por conta de sua força interna parece ser uma mera ficção. Isso garante concepções muito distintas coexistindo em uma mesma época, em um mesmo momento. Entender uma época como uma visão de mundo dotada de coerência interna por conta de sua unidade de sentido e valorativa é uma construção ficcional do historiador advindo do berço do historicismo romântico embebido de idealismo hegeliano. No entanto, é da tradição das ciências humanas alemãs, de onde vem Norbert Elias.
Vejamos, a seguir, qual é a sua posição, as respostas que concebe às duas questões aqui debatidas e o grau de diferença dela em relação às de Foucault.
4 A interpretação elisiana: a repressão dos instintos e o processo histórico
Elias recebeu influências de linhas de pensamentos diferentes que existiam na Alemanha nas décadas de 1920/1930, quando começou a escrever: a historiografia (que já vinha sendo bastante criticada desde o início da década de 1920), a nascente Sociologia e a mais recente Teoria do Conhecimento resolvida pela fenomenologia de Edmund Husserl2 (que fora professor de Elias). Claramente inspirado pelas análises de longa duração dos neokantianos e de alguns influenciados do neokantismo, como Cassirer e Weber, Elias procura desvelar processos sócio-históricos de longa duração.
Elias se utiliza da História para através dela garantir o acesso a formações sociais distintas das contemporâneas, modeladas por processos históricos de longa duração, de forma a enfrentar questões sociológicas de ordem mais estrutural. Ele tenta integrar dados na recomposição do todo a fim de assegurar aos indivíduos de uma formação social particular (como é o caso da sociedade de corte) o seu caráter específico, diferenciado e único. Elias busca inter-relações e interdependências que lhe permitem trabalhar com um conceito de sociedade que é de fato uma rede de relações, um todo relacional. A um só passo, há a articulação entre o domínio das experiências sociais dos grupos estudados às dimensões econômica, simbólica, política e psicológica que os conformam. Ele vai mostrando, assim, a existência de uma conexão forte entre as alterações na estrutura social e as mudanças no comportamento e nas emoções dos indivíduos – reveladas, por exemplo, pelo avanço dos patamares de vergonha, repugnância, controle e autocontrole.
Embora Elias não trate especificamente sobre o tema da punição, em algumas de suas obras (como O Processo Civilizador I e II e Sociedade de Corte), ele propõe uma interpretação que dá preponderância a uma tendência crescente ao domínio da vida afetiva e do autocontrole, permitindo explicações sobre a punição que estão diretamente ligadas à sua teoria. Ao longo de suas obras, no entanto, Elias demonstra que o processo de autocontenção pelo qual passou a civilização ocidental tornou-a avessa à publicização da violência.
Em O Processo Civilizador Vol. I, Elias demonstra que embora não haja ponto zero na questão do controle social do comportamento individual, na passagem dos séculos XIV e XVI, há um ponto de inflexão fundamental para o processo civilizatório. A partir dessa época teríamos o desenvolvimento de uma maior sensibilidade em relação ao desconforto social vinculado a certas práticas individuais. Adaptando os comportamentos dos diversos estratos sociais representados, nasce aqui uma nova pressão social que os indivíduos exercem entre si.
Outra etapa do processo se apresenta quando, por força da crescente divisão do trabalho e acirramento da competição social, o controle externo é substituído pelo controle interno. Apenas com o último é que se desenrola o desenvolvimento da regulação da vida pulsional, atingindo o caráter evidente que percebemos hoje. Ao longo do processo civilizatório, os setores mais abastados sentem a necessidade de se distinguirem dos menos favorecidos, percebendo-se assim como legitimados na sua superioridade. Há um aumento da competição social como um meio de auferir distinção social por parte do estrato dominante. Assim, à medida que o novo comportamento é assimilado, ele perde seu caráter diferenciador e novos refinamentos têm de ser produzidos.
Partindo de uma interpretação weberiana, Elias soma a contenção interna das maneiras a um controle externo operado pela formação dos Estados modernos3, que exigiu uma delimitação dos territórios e o monopólio estatal da violência. O Estado passa então a assumir os meios da violência, o que acaba tendo um impacto crucial no modo como as pessoas se relacionam:
Há a crença de que o processo denominado civilizador é especialmente marcado por uma redução no uso de uma violência física e no crescimento na intensidade de um controle psicológico. Por que isto ocorre desta maneira? Em uma palavra: interdependência. Como as pessoas se tornam mais e mais interdependentes para o seu próprio bem-estar por conta da especialização do trabalho, há um aumento na disciplina da conduta (VAUGHAN, 2000, p. 74). [tradução livre]
No volume II d’O Processo Civilizador, Elias mostra como o desenvolvimento dessas tendências [de contenção dos instintos] está ligado à expansão das interdependências sociais e são trazidas pelo aumento do cálculo racional e pelo auto (GARLAND, 1990, p. 218). [tradução livre]
Elias demonstra como há uma mudança no comportamento e nos hábitos dos indivíduos, o que incidirá em várias áreas e instituições da vida social. A reconstrução histórica operada pelo sociólogo aponta, a um só tempo, para uma mudança comportamental do indivíduo (que está diretamente relacionado aos mecanismos estruturais da psique) e para uma mudança social pela qual passou a estrutura social ocidental moderna, sendo que ambos os planos - individual e social - vão transcorrer paralelamente, influenciando-se mutuamente: “processos naturais e históricos trabalham indissoluvelmente juntos” (ELIAS, 1990, p. 162). Esses processos estão englobados em um processo que ele denomina “civilizador”: “no curso desse processo, indivíduos vêm a desenvolver novas maneiras de se relacionar e novas maneiras de se relacionar com o ambiente físico e social” (GARLAND, 1990, p. 219 - livre tradução). Essas novas maneiras implicam em um processo de “racionalidade que se constitui a partir de coerções de interdependência social” (ELIAS, 2001, p. 127). Ou seja, há um processo de formação dos Estados nacionais (que implica na pacificação interna dos territórios e no surgimento das cidades) e um processo de nascimento do capitalismo e especialização do trabalho que impõem, desde fora, padrões de conduta mais contidos. Vejamos mais detidamente.
O processo civilizador é marcado historicamente por local e tempo específicos. Com o nascimento dos Estados modernos, nascem também as cidades que são os locais por excelência do desenrolar desse processo: “é no período a partir do décimo terceiro até o século XVI que os processos de civilização parecem uma realidade e é principalmente em comunidades urbanas que eles se constroem” (ROUSSEAUX; DAUVEN; MUSIN, 2009, p. 308) [tradução livre]. As cidades que passam a ser pacificadas internamente, por um corpo armado centralizado e estatal não admitem mais violência pública, tanto no que se refere à violência entre cidadãos, quanto à violência punitiva praticada pelo poder penal (ROUSSEAUX; DAUVEN; MUSIN, 2009). Não é apenas no plano social que essa repressão à violência se dá. Os próprios indivíduos também passam a não tolerar mais cenas de barbárie e violência em microssituações cotidianas, como os hábitos à mesa, tão minuciosamente analisados por Elias em O Processo Civilizador Vol. I. O uso da faca, por exemplo, é envolto em tabus, uma vez que este remetia, aos indivíduos, situações de violência:
Só quando esses tabus são examinados em conjunto surge a suposição de que a atitude social em relação à faca e a regras que lhe pautam o uso à mesa (e acima de tudo os tabus que a cercam). São primariamente de natureza emocional. Medo, repugnância, culpa, associações e emoções dos tipos os mais díspares lhe exageram o perigo real [....] a recordação de uma ameaça belicosa é desagradável. Aqui, também o ritual da faca contém um elemento racional. O indivíduo poderia usar o ato de passar a faca a fim de cravá-la inesperadamente em alguém. Um ritual social é formado em torno desse perigo porque o gesto de desagrado, símbolo, dos gestos, e dos instrumentos de perigo (ELIAS, 1990, p. 129-130).
Não apenas objetos que remetem à violência, como também corpos de animais que remetem à morte violenta e ao suplício são banidos dos hábitos à mesa. O caso da repugnância contra o corpo do animal que é sacrificado para poder ser comido é exemplar para que possamos pensar o caso da punição de humanos. Os pratos de carne, quando servidos à mesa, passaram a ser “disfarçados e alterados pela nossa arte de sua preparação” (ELIAS, 1990, p. 128). Sua preparação também não é mais realizada publicamente na frente de quem está sendo servido, mas sim é privatizada e monopolizada por um especialista apto a realizar este processo:
O ato de trinchar [...] passou a ser julgado crescentemente repugnante. O trincho em si não desaparece, uma vez que o animal, claro tem que ser cortada antes de ser comida. O repugnante, porém é removido para o fundo da vida social. Especialistas cuidam disso no açougue ou na cozinha (ELIAS, 1990, p. 128).
À semelhança do ritual de morte, preparação e apresentação da carne animal servida, o ritual do suplício também foi “disfarçado”, privatizado e monopolizado por um corpo estatal assegurado por um sistema penal que passa a conduzir a punição de maneira “racionalizada”. Da mesma maneira que o trincho não desaparece, não desaparece também a punição e a violência, elas são somente retiradas da vida social, pois “repetidamente iremos ver como é característico de todo o processo que chamamos ‘civilização’ esse movimento de segregação, este ocultamento, para longe da vista daquilo que se tornou repugnante” (ELIAS, 1990, p. 128).
A punição e o trincho são dois exemplos de práticas sociais que foram postas para o fundo da vida social. Contudo, outras práticas relativas ao corpo e ao sexo também passaram a serem vistas com repugnância e sofreram o mesmo processo de isolamento. Assim, em um movimento processual, o comportamento se torna menos espontâneo e mais calculado e racionalizado (VAUGHAN, 2000), sendo que essas práticas passam a ser asseguradas por um grupo de especialistas – que no caso da punição corresponde ao exército, polícia e aparato carcerário – que conduz essas práticas de maneira impessoal e profissional, evitando qualquer envolvimento emocional (GARLAND, 1990).
Elias não diz, portanto, que a punição e a violência desaparecem de uma maneira geral, mas sim que são tomadas por um Estado racionalizado que impõe e expressa condutas “civilizadas”. Spierenburg (2008), que desenvolve um estudo mais especificamente sobre punição, apoiado em uma leitura elisiana, corrobora o que foi demonstrado acima, afirmando que a partir de uma “ênfase temporal” (SPIERENBURG, 2004, p. 624), Elias demonstra como o desaparecimento do suplício está diretamente ligado ao aumento da sensibilidade, que, por sua vez, teria relação com um processo mais macro de fortalecimento do poder estatal capaz de pacificar o território. Isso explica a emergência e permanência da prisão perante outras possíveis formas de punição. Contudo, ainda nos resta tentar responder a segunda questão posta relativa à convivência ambígua do sistema penal racionalizado e o clamor punitivo passional.
De acordo com Elias, o processo interno de contenção individual e o processo externo de divisão do trabalho e de unificação dos Estados modernos ocorreriam paralelamente, o que revela uma forte influência freudiana sobre o sociólogo alemão. É Sigmund Freud que aponta para o paralelismo dos processos ontogenético e filogenético:
A analogia entre o processo civilizatório [filogenético] e o caminho do desenvolvimento individual [ontogenético] é passível de ser ampliada. Pode-se afirmar que a comunidade também pode desenvolver um superego sob cuja influência se produz a evolução cultural. É uma tarefa tentadora, para aqueles que estudam as civilizações humanas, acompanhar com mais cuidado essa analogia (FREUD, 1986, p. 136). [tradução nossa]
E,
A ontogênese pode ser considerada como uma reatualização da filogênese, na medida em que esta última não tenha sido modificada por experiências mais recentes. A disposição filogenética pode ser vista como um trabalho que está por detrás do processo ontogenético. Porém, a disposição é, no limite, a sedimentação de experiências anteriores da espécie, as quais as experiências mais novas do indivíduo vêm a se somar como soma de fatores acidentais (FREUD, 1976, p. 118) [tradução nossa]
Mais do que um paralelismo, há uma reatualização do plano filogenético pelo ontogenético, sendo que a própria repressão (que formaria um recalque no inconsciente) operada pela psique diante de alguns hábitos seria então reproduzida, em um dado momento, no nível social:
Para poupar os outros de um espetáculo desagradável e a si mesmos a vergonha de serem vistos com as mãos sujas, mais tarde isto se torna cada vez mais um automatismo interior, a marca da sociedade no ser interno, o superego que proíbe ao indivíduo comer de qualquer maneira que não com o garfo. O padrão social a que o indivíduo fora inicialmente obrigado a se conformar por restrição externa é finalmente reproduzido, mais suavemente ou menos, no seu íntimo através de um autocontrole que opera mesmo contra seus desejos conscientes (ELIAS, 1990, p. 140).
De acordo com Garland (1990), voltar a Freud seria uma indicação de pesquisa interessante para um melhor desenvolvimento das formulações elisianas, uma vez que nos permitiria hipotetizar acerca da ambivalência da presença de processo de autocontenção e do fervor punitivo – questão essa que não foi desenvolvida nem por Elias e nem por Spierenburg. É possível dizer que essa convivência ambígua poderia ser explicada no sentido de que a sociedade, isto é, o público, no momento em que clama por punições mais violentas e vingativas estaria deixando vir à tona os próprios recalques (repressões postas no inconsciente) individuais, que ao longo do processo histórico, foram cristalizados4 culturalmente. O processo de repressão dos instintos, que acontece filogeneticamente no plano cultural, é uma sedimentação do processo de contenção que todo e qualquer indivíduo passa ao longo da vida:
Estas [as crianças] têm no espaço de alguns anos que atingir o nível avançado de vergonha e nojo que demorou séculos para se desenvolver. A vida instintiva delas tem que ser rapidamente submetida ao controle rigoroso e modelagem específica que dão à nossa sociedade seu caráter e que se formou na lentidão dos séculos. Nisto, os pais são apenas instrumentos, amiúde inadequados, os agentes primários do condicionamento. Através deles e de milhares de outros instrumentos é sempre a sociedade como um todo, levando-a mais perfeitamente ou menos para seus fins (ELIAS, 1990, p. 145).
Assim, cada indivíduo que, desde cedo, reprimiu seus sentimentos de prazer e desagrado, por uma pressão externa de uma sociedade já “civilizada”, libera esses instintos quando clama por punições sangrentas e vingativas. Todos os prazeres, vinganças e fantasias as quais o indivíduo moderno criou repugnância e que foram “jogados ao inconsciente para serem desfrutados privadamente” (GARLAND, 1990, p. 222) [tradução livre] são colocados em movimento em situações de punição.
[...] a punição pode prover uma medida de gratificação e prazer aos indivíduos que se submeteram a essa repressão cultural e também para quem o sistema penal representa uma saída socialmente sancionada pela repressão inconsciente. Freud afirma que o superego, desenvolvido na infância, nada mais é do que uma ameaça constante de punição [plano ontogenético]. E Elias deixa claro que a ameaça de punição, agora representada pelas autoridades estatais [plano filogenético] deixa os níveis altos de ansiedade para manter o autocontrole (GARLAND, 1990, p. 239). [tradução livre]
Em suma, é possível compreender que uma interpretação elisiana responderia ao surgimento da prisão por um processo sócio-histórico causal que articula o plano psicológico e o plano social, na medida em que uma situação de interdependência gerada pela divisão do trabalho e pela contenção da violência pelo Estado moderno “impõem restrições e controle aos impulsos e emoções dos indivíduos” (ELIAS, 1990, p. 155). Essa repressão social total se consolidou na sociedade ao longo do tempo e condiciona um movimento análogo em cada indivíduo que, ao longo da vida, reprime seus instintos para se adequar ao padrão cultural exigido. Assim, a prisão surge como consequência dessa repressão dos instintos, uma vez que tira do espaço público cenas de violência e nojo, poupando os indivíduos de lidarem com a expressão de seus instintos mais primitivos. Os instintos, contudo, são inerentes ao indivíduo – desaparecem, portanto, apenas do plano social, isto é, permanecem em cada um nós ontogeneticamente. Esse quadro ambíguo entre os dois planos permite uma situação externa em que há um sistema penal racionalizado que priva os indivíduos de punições bárbaras e uma situação interna em que os sentimentos primitivos e vingativos não deixam de existir, mas somente são reprimidos podendo vir à tona em situações de clamor punitivo.
5 Considerações Finais
Elias aponta para um processo de civilização. Foucault para uma mudança estrutural social que faz emergir a “sociedade disciplinar”. Em aparência, ambos partem de escolhas teórico-metodológicas distintas e chegam a conclusões igualmente distintas. Foucault, em Vigiar e Punir, é partidário de uma filosofia pós-estruturalista e aponta para uma rápida transição das formas de repressão ocorrida nos séculos XVII, XVIII e XIX. Elias (e também Spierenburg) desenvolve explicações sobre processos alongados que mutam as formas de sensibilidade e impactam nas práticas sociais cotidianas.
Há, entretanto, algumas semelhanças entre ambos: tanto o sociólogo alemão, quanto o filósofo francês partem de documentos históricos que remetem a épocas e locais semelhantes: o nascimento da Idade Moderna na França. Em ambos há um importante papel das elites, as mesmas que colocam esse mecanismo de distinção das maneiras no projeto de controle social. São as camadas dominantes que conseguem impor sua vontade sobre os demais indivíduos (e, por isso, exercem poder), levando a cabo essas mudanças.
Entretanto, Elias (e consequentemente a leitura elisiana de Spierenburg) vai mostrar como novos hábitos e maneiras sociais foram desenvolvidos pela repugnância - fruto de um autocontrole repressivo que é operado em ambos os planos onto e filogenético - trazida pela elite que não admitia mais punições públicas e violentas. Em um desenrolar processual, as punições foram sendo retiradas na cena social e levadas para locais especializados e privados que passaram a lidar com essas práticas de maneira não passional. Essa leitura é bastante distinta da leitura foucaultiana que entende que o surgimento da prisão se deu por conta de uma estratégia política de reorganização do poder e da economia da punição. Enquanto Foucault dá proeminência à mudança das práticas e de como isso foi ativado a partir de um plano mais macro referente às redes de poder, Elias dá proeminência à mudança na sensibilidade e na repressão dos comportamentos dos indivíduos.
Cada um dos autores irá desenvolver uma faceta desse fenômeno da emergência e permanência do sistema prisional como forma de punição por excelência. Mesmo não fechando e estendendo formulações a respeito, é possível também levantar hipóteses, a partir de Foucault e Elias, acerca da convivência de um sistema penal racionalizado e um clamor punitivo passional.
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Ainda em tempo, é válido apontar que os desdobramentos de pesquisas apontados por ambos os autores já haviam sido esboçados pelo sociólogo francês Émile Durkheim (2008) décadas antes. Ele aponta exatamente para esse quadro ambivalente: o sentimento de vingança e irracionalidade que emana do coletivo e que permanece presente até mesmo nas sociedades contemporâneas, nas quais o Estado controla o poder de punir. Durkheim afirma que o clamor punitivo vai contra a maneira como o próprio sistema de justiça criminal representa a punição: como um instrumento calculado de controle de conduta, completamente afastado de qualquer teor vingativo. Assim, de acordo com Durkheim (2008), embora o estado moderno monopolize a violência penal e controle a administração das penalidades, o sentimento coletivo não deixa de estar completamente envolvido e a punição não deixa de ser uma afirmação moral - e não apenas uma tentativa de controle do crime. Elias, quando se refere à mudança nas “sensibilidades”, também se refere à moralidade: “uma mudança rumo ao tipo de controle das ânsias instintivas que o século XIX justificaria, acima de tudo, sob a forma de moralidade” (ELIAS, 1990, p. 171).
Durkheim também pode ser aproximado das conclusões de Foucault ao constatar a ineficácia constante da prisão e a produção de delinquência por ela realizada. De acordo com Durkheim, altos níveis de criminalidade são acompanhados por altos níveis de punições ineficazes, já que a punição é um sintoma de corrosão da base moral de uma dada sociedade e não a cura para ela.
Assim, é claro que a permanência desse clamor passional, sobre o qual discorremos e tentamos explicar a partir de Foucault e Elias, está claramente formulada nos escritos durkheiminianos. Para ele, “a pena consiste em uma reação passional” (DURKHEIM, 2008, p. 57), “basta, aliás, ver nos tribunais como a pena funciona, para reconhecer que seu móvel é totalmente passional, porque é a paixões que se dirigem tanto o magistrado que acusa, como o advogado que defende” (DURKHEIM, 2008, p. 61). Em uma sociedade orgânica (na acepção durkheiminiana é aquela em que há uma forte interdependência entre seus membros gerada pela divisão do trabalho social), o sistema penal racionalizado não permite que os instintos passionais se manifestem em práticas punitivas. Essa paixão irá, então, se manifestar verbalmente fazendo pressão para que este sistema penal expresse esses instintos.
Assim concluímos, após esta breve aproximação, que há explicações semelhantes para o mesmo fenômeno no interior de tradições distintas. De maneira otimista, podemos tomar isso como uma evidência da existência de fenômenos objetivos no mundo social, que são interpretados de maneiras distintas. Conclusivamente, há evidência da pluralidade de explicações, métodos e teorias possíveis para o fenômeno social que não correspondem inteiramente umas com as outras.
Referências
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ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro: Ed. Zahar, 2007. v.1.
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ELIAS, Norbert. Sociedade de corte. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 2001.
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FREUD, Sigmund. Tres ensayos de teoría sexual y otras obras [1905]. In: FREUD, Sigmund. Obras Completas: fragmento de análisis de un caso de histeria (Dora). Trad. José Luiz Etcheverry. Buenos Aires: Ed. Amorrotu, 1976. p. 109-222.
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SPIERENBURG, Pieter. Punishment, Power and History: Foucault and Elias. Social Science History, v.28, n. 4, p. 607- 634, winter 2004.
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Notas
Notas de autor