ARTIGOS ORIGINAIS

Dom Casmurro, da simbolização referencial à significação

Dom Casmurro, from referential symbolization to meaning

Giselda Maria Dutra Bandoli 1
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense, Brasil
Sérgio Arruda de Moura 2
Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), Brasil
José Ignacio Ribeiro Marinho 3
Prefeitura de Varre-Sai, Brasil

Dom Casmurro, da simbolização referencial à significação

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 19, núm. 2, 2017

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

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Recepción: 28 Julio 2016

Aprobación: 19 Julio 2017

Resumo: Este artigo objetiva abordar pontos da teoria semiolinguística de Patrick Charaudeau no que concerne à produção e interpretação dos atos de linguagem, considerando a situação de comunicação instalada entre narrador e leitor em Dom Casmurro, de Machado de Assis. Inicialmente serão lembrados tópicos básicos da supracitada teoria. Assim, a atuação dos sujeitos envolvidos em um ato de enunciação e as circunstâncias do discurso, envolvendo as condições de produção/interpretação dos atos de linguagem, constituirão o foco de nossa atenção. Enfim, procederemos à análise de aspectos pertinentes à construção da narrativa nessa obra, ilustrando, a partir dela, a teoria de Charaudeau.

Palavras-chave: Análise do Discurso, Teoria Semiolinguística, Dom Casmurro.

Abstract: This article aims at approaching some aspects of Patrick Charaudeau’s Semiolinguistic theory regarding the production and interpretation of language acts, by considering the situation of communication installed between the narrator and the reader in “Dom Casmurro”, by Machado de Assis. Basic topics of the theory are reviewed in the paper. The study focus on the activity of subjects engaged in an act of enunciation and the circumstances of the speech, involving the conditions of production/interpretation of language acts. We also review relevant aspects of the construction of the narrative in Machado's work to illustrate Charaudeau’s theory.

Keywords: Discourse Analysis, Semiolinguistic Theory, Dom Casmurro.

1 Introdução

Um conceito caro para a Análise do Discurso diz respeito à noção de enunciação, ou seja, as condições em que um discurso é produzido. Benveniste (1989), a partir de sua teoria sobre a subjetividade, constrói um conceito de enunciação que se opõe à lógica estruturalista na medida em que valoriza o ato individual, a fala em ação. O próprio autor conceitua enunciação como “este colocar em funcionamento a língua por um ato individual de utilização” (BENVENISTE, 1989, p. 89). Sendo assim, o linguista destaca a relevância das condições em que um discurso é produzido: “é o ato mesmo de produzir um enunciado, e não o texto do enunciado, que é nosso objeto” (id., p. 82).

Dessa forma, os elementos que determinam as condições de produção de qualquer discurso podem constituir um conjunto: o contexto sócio-histórico-cultural, os interlocutores, a imagem que estes fazem de si e do outro, o propósito comunicativo, o lugar de onde falam, dentre outros. Todos esses aspectos relacionados não devem ser negligenciados quando tentamos entender o sentido e o propósito de um discurso. Nesse sentido, o discurso é compreendido como “um objeto sócio-histórico em que o linguístico intervém como pressuposto” (ORLANDI, 2009, p. 16).

A proposta metodológica da Teoria Semiolinguística do Discurso, postulada por Patrick Charaudeau, prevê que um ato de linguagem – ou o discurso – se estrutura a partir de uma mise-en-scène da significação, da qual os protagonistas da interação comunicativa participam. Nessa encenação proposital, o sujeito semiolinguístico, cuja voz é comandada por formações discursivas, atua de forma a influenciar de algum modo seu parceiro, seu interlocutor. Dessa forma, os sujeitos envolvidos nesse processo de enunciação/ interpretação dos atos de fala, dado seu caráter interenunciativo, desdobram-se em quatro: sujeito comunicante, sujeito interpretante, sujeito enunciador e sujeito destinatário.

Os efeitos de sentido de qualquer enunciado estão, pois, intimamente relacionados com a situação em que este é produzido. Este sujeito semiolinguístico se vale de algumas estratégias – “representações linguageiras”, para Charaudeau (2008) – e contratos do discurso para que seja bem-sucedido em seu propósito comunicativo.

Amparados nesse repertório teórico, metodologicamente propomos a leitura de uma obra representativa da Literatura Brasileira: Dom Casmurro, de Machado de Assis, à luz de conceitos postulados pela Análise do Discurso. É, pois, um trabalho que busca referencial teórico na Teoria Semiolinguística do Discurso, postulada por Patrick Charaudeau (2008).

2 Teoria Semiolinguística: considerações iniciais

Um dos mais renomados teóricos da chamada Análise do Discurso francesa, no mundo, Patrick Charaudeau entende que a significação de um ato de fala1 se constrói a partir de uma espécie de jogo em que as interações entre explícito e implícito se operam. Por extensão, aplicaremos essa teoria a todo discurso produzido. Assim, marcado por um duplo movimento – uma intencionalidade velada e enunciados revelados –, o discurso ganha forma e se significa através da interação entre os sujeitos envolvidos nesse processo. Nessa concepção, as circunstâncias de produção de qualquer discurso não devem ser negligenciadas dado que são elas as reveladoras da intencionalidade do sujeito falante já que ele escolhe/formula os enunciados que melhor se ajustam aos seus propósitos comunicativos.

Assim sendo, entende-se que as informações literais enunciadas por um sujeito, definitivamente, não são suficientes para revelar o que ele realmente quer comunicar. O não dito (ou não escrito) ganha tamanha importância nesse processo que chega a ser a garantia da compreensão dos discursos produzidos. É, como diz o senso comum, ler nas entrelinhas, ler o que não está escrito (ou o que não é dito).

Dessa forma, o signo linguístico através do qual um discurso se materializa apresenta-se sob duas faces: o sentido da língua, situado no plano referencial, denotativo, revelando sua dimensão explícita, e o sentido de discurso, situado no plano das possibilidades de significação, revelando sua dimensão implícita. No sentido da língua, o signo é portador de um significado estável, que emana de sua própria estrutura linguística. É a palavra em estado de dicionário. Já no sentido do discurso, esse signo possui uma relação estreita com o contexto em que é produzido, provocando efeitos de sentido diverso. A esse respeito, Charaudeau (2008, p. 26) afirma: “Isso nos leva a pensar que não se pode determinar de forma apriorística o paradigma de um signo, já que é o ato de linguagem, em sua totalidade discursiva, que o constitui a cada momento de forma específica.”

O signo, concebido dessa forma, ganha existência no discurso, diferente da perspectiva estruturalista que o concebe como uma forma autônoma de sentido, desconsiderando o seu caráter de produzir “efeitos significativos” (CHARAUDEAU, 2008, p. 29), empreendidos pelo contexto e não pelo dicionário.

Os efeitos de sentido de um enunciado estão, dessa maneira, intimamente relacionados com a situação em que este é produzido. Nesse sentido, o ato de linguagem não é entendido tradicional e simplesmente como a forma de que o emissor dispõe para enviar uma mensagem que deverá ser decodificada pelo destinatário. Essa concepção não abarca toda a problemática discutida pela teoria da enunciação. Benveniste (1989) já postulava a ideia de que não existe o destinatário, mas sim o coemissor, ou seja, um “tu” interagindo com o “eu”.

Essa interação entre os protagonistas do discurso é retomada e ao mesmo tempo ampliada por Charaudeau, que prevê, em sua teoria semiolinguística, a presença de quatro sujeitos envolvidos no processo de enunciação/interpretação dos atos de fala/discurso, a saber: sujeito enunciador (EU), sujeito destinatário (TU), sujeito comunicante (EU’) e sujeito interpretante (TU’), que se valem de uma “zona de intercompreensão suposta”, como lugar onde coincidem os imaginários e as intenções de cada um dos envolvidos na situação de comunicação.

O primeiro esquema teórico que nos é dado é o que se segue, como apresentado e desenvolvido por Charaudeau (id., p. 45):

Representação do ato interenunciativo entre os sujeitos do discurso
Figura 1:
Representação do ato interenunciativo entre os sujeitos do discurso

O ato de linguagem é um “lugar de encontro imaginário de dois universos de discurso que não são idênticos” (id., ibid.). Nossa hipótese, que subsidiou nossa análise de Dom Casmurro, como veremos adiante, é que a ficção é o lugar por excelência de execução desse tipo de encontro de imaginários, principalmente no que concerne ao caráter ambíguo da narrativa romanesca e ao caráter interenunciativo entre os sujeitos envolvidos no ato da leitura.

O desdobramento do sujeito em quatro – e não mais em dois – refere-se ao caráter interenunciativo de todo ato de linguagem. Tentemos entender melhor: quando se levam em consideração as circunstâncias de produção do discurso, a significação se processa a partir de dois polos: no primeiro, o lugar de produção do discurso – espaço interno do dizer –, o sujeito enunciador (EUe) dirige-se ao seu interlocutor denominado aqui de sujeito destinatário (TUd), um ser de fala fabricado pelo sujeito comunicante (EUc), já que este sempre espera o interlocutor ideal. Já no segundo polo, o lugar de interpretação – compreendendo o espaço externo do ato enunciativo –, encontram-se o sujeito comunicante (EUc) – mascarado pelo EUe – e o sujeito interpretante (TUi) – ser real, que constrói significados do discurso a partir de suas experiências pessoais e da imagem que possui do EUc. Quanto mais a interpretação do TUi coincidir com a do TUd (interpretação objetivada pelo EUc), maior será o sucesso no ato de comunicação.

Como já dissemos, o destinatário não é meramente um receptor de enunciados e, sendo também um ser de fala, pode não corresponder às expectativas do EU produtor do discurso. O TUi tem, portanto, autonomia no ato de interpretação dos discursos produzidos pelo EUc e enunciados pelo EUe. “Assim, uma mesma fala poderá ser interpretada como ‘provocadora’, ‘demagógica’, ‘denunciadora’ e/ou ‘irônica’ conforme o TUi” (id. ibidem, p. 51), dependendo das circunstâncias em que for produzida.

Dessa forma, sobre a atuação desses sujeitos no ato de processar discursos, concluímos usando as palavras do próprio Charaudeau:

Entre EUe e EUc há uma relação de englobado e englobante do primeiro para o segundo, e diremos que a mesma representação ocorre do ponto de vista do ato de interpretação: EUe é apenas uma máscara de discurso usada por EUc. É por isso que EUc, consciente desse estado de fato, pode jogar, com finalidades estratégicas, tanto o jogo da transparência entre EUe e EUc quanto o da ocultação de EUc por EUe (id. ibidem, p.49) [...] O TUd é o interlocutor fabricado pelo EU como destinatário ideal, adequado ao seu ato de enunciação. [...] O TUi interpretante [...] é, ao contrário, um ser que age fora do ato de linguagem (id. ibidem, p.46).

Como se vê, a Análise do Discurso, numa perspectiva semiolinguística, prevê que o ato de linguagem – também o discurso – se estrutura a partir de uma encenação proposital que o EUc opera, através de algumas estratégias e contratos, a fim de conseguir os efeitos desejados no TUd.

O quadro a seguir (CHARAUDEAU, id., p. 77) exibe sinopticamente os termos envolvidos numa Situação de Comunicação em que atuam os quatro sujeitos, conforme tratados até aqui:

Representação do dispositivo da encenação da linguagem
Figura 2:
Representação do dispositivo da encenação da linguagem

A um espaço interno, onde atuam seres de fala, corresponde semiolinguisticamente um espaço externo, onde atuam seres sociais. Ou seja, um EUc se deixa representar por um EUe; e um TUi, por sua vez, se deixa representar por um TUd. A título de ilustração, é com esse quadro semiolinguístico, que caracterizamos certas estratégias discursivas como 1. Mentira; 2. Segredo; 3. Provocação; 4. Demagogia (CHARAUDEAU, id, p. 53).

No romance em questão, que passaremos a analisar em seguida, pelo menos uma dessas composições é decisiva na estruturação romanesca, marcada pela desconfiança, pela dúvida e pela ambiguidade: o segredo. Para o EUe Bentinho-narrador, Capitu mente, ao guardar o segredo do suposto adultério. Sua suspeita é igualmente um segredo, compartilhado apenas com TUd, o leitor. O TUi correspondente atua como sujeito interpretante e ser social que aceita o jogo ficcional da ambiguidade. A mentira (jogo estratégico com a credibilidade da informação), o segredo (não revelação de algo), a provocação (construção de imagem desfavorável como estratégia de ataque e defesa) e a demagogia (construção de imagem favorável buscando cumplicidade) são estratégias discursivas vastamente desenvolvidas na fábula, na ficção e nas narrativas de uma maneira geral. Considerando esse aspecto, a provocação e a demagogia se fazem também presentes discursivamente na obra em análise, uma vez que o embate entre Sujeito narrador e Sujeito leitor, ou interlocutor, aparece organizado pelo metadiscurso, isto é, nas constantes interpelações do narrador com respeito ao que está narrando, buscando cumplicidade com o leitor.

Nosso propósito, a seguir, é tentar uma ilustração dos aspectos teóricos aqui comentados a partir da análise deste que é um dos ícones da literatura brasileira: Dom Casmurro, de Machado de Assis. Relembremos, contudo, alguns fatos do enredo que servirão de base para nossa posterior análise.

3 Dom Casmurro: uma narrativa marcada pelo ressentimento

Narrada em primeira pessoa, a obra Dom Casmurro ocupa lugar de destaque na literatura realista do Brasil talvez por ser permeada por ironias sagazes e por apresentar uma das personagens femininas mais discutidas e envolventes de todos os tempos: Capitu, a jovem de olhos de cigana oblíqua e dissimulada.

Bento Santiago, o próprio casmurro, – empenhado em recompor o passado – narra sua própria história, querendo resgatar na memória a infância feliz com sua família, sua amizade com Capitu e com Escobar e a compreensão do casamento infeliz causado por ciúmes e desconfianças. Suas palavras evidenciam esse propósito: “O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a adolescência” (ASSIS, 1984, p. 12)2.

Em relação à sua infância, o narrador procura detalhar fatos que mostram uma convivência muito próxima e agradável entre ele e Capitu, como as brincadeiras infantis (“Em casa, brincava de missa, [...] Arranjávamos um altar, Capitu e eu. Ela servia de sacristão, e alterávamos o ritual, no sentido de dividirmos a hóstia entre nós; a hóstia era sempre um doce”) (DC, p. 22) e a proximidade entre suas famílias (“Havia ali uma porta de comunhão [entre as duas casas] mandada rasgar por minha mãe, quando Capitu e eu éramos pequenos”) (DC, p.24). À medida que o tempo passa, o jovem casal descobre não só o amor, mas também um obstáculo à realização desse sentimento: uma promessa de D. Glória, mãe de Bentinho, em fazê-lo padre.

Vale lembrar que, durante o relato dos fatos de sua infância e adolescência, Bentinho mostra-se inteiramente inseguro diante de situações que exigem dele uma iniciativa ou tomada de posição. Era comum a recorrência a promessas aos “céus”, de modo que não enfrentasse situações desafiadoras. “Prometo rezar mil padres-nossos e mil ave-marias, se José Dias arranjar que eu não vá para o seminário” (DC, p. 34), Bentinho já prometia em momentos de apuro.

Embora Capitu e Bentinho articulassem contra a promessa de D. Glória, não houve alternativa: ele é enviado ao seminário. Lá encontra Ezequiel Escobar e os dois tornam-se confidentes e amigos. Com o passar do tempo, ambos saem do seminário já que não têm vocação eclesiástica. Livre da promessa de sua mãe, já que esta é autorizada a desobrigar seu filho da vida religiosa custeando os estudos de outro jovem seminarista, Bentinho vai estudar Direito e Escobar, dedicar-se ao comércio, sua grande e verdadeira vocação.

Livres do empecilho, Bentinho e Capitu casam-se e, posteriormente, ocorre também o casamento de Escobar e Sancha, a melhor amiga de Capitu.

A amizade entre os casais, após o casamento, se estreita cada vez mais. Nasce Capitolina, filha de Escobar e Sancha; e, anos depois, o filho de Bentinho e Capitu: Ezequiel – assim chamado para retribuir a amizade do casal de amigos, que também dera o nome da amiga de Sancha à própria filha.

Um ciúme obsessivo vai tomando conta do comportamento do narrador e então nasce a desconfiança de uma possível traição de Capitu, que se torna evidente para Bento Santiago quando Escobar morre. Durante o velório, Bentinho flagra um olhar comprometedor de sua esposa para o defunto: “A confusão era geral. No meio dela, Capitu olhou alguns instantes o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não me admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...” (DC, p. 134). Entretanto, a prova irrefutável do adultério será a semelhança física de Ezequiel com Escobar.

Depois de arquitetar um suicídio e, em seguida, o assassinato do filho – atos que não chegam a ser concretizados –, o casmurro confessa sua frustração e o casamento então caminhará inevitavelmente para a separação. Para manter as aparências, Capitu vai morar na Suíça com o filho e anos mais tarde lá falece. Algum tempo depois, Ezequiel volta ao Brasil para rever o pai; este vê no aspecto físico do filho as feições do velho amigo:

Não me mexi; era nem mais nem menos o meu antigo e jovem companheiro do seminário de S. José, um pouco mais baixo, menos cheio de corpo [...] Trajava à moderna, naturalmente, e as maneiras eram diferentes, mas o aspecto geral reproduzia a pessoa morta. Era o próprio, o exato, o verdadeiro Escobar (DC, p. 150).

Ezequiel mais tarde morrerá na Ásia, para onde vai a fim de estudar Arqueologia. Bentinho, então, totalmente solitário, resolve narrar sua história.

4 Dom Casmurro, da simbolização referencial à significação

Consideraremos a obra Dom Casmurro não um ato de linguagem restrito na perspectiva de Maingueneau (1997, p. 12), mas um ato de comunicação já que em sua narrativa há explicitamente um eu/sujeito – Bento Santiago, narrador em primeira pessoa – que fala dirigindo-se ao seu interlocutor, também explícito: o leitor. Aliás, o diálogo do narrador com o leitor é uma característica peculiar na obra de Machado de Assis, não é exclusividade em Dom Casmurro. Atente-se para os seguintes exemplos em que os vocativos e as desinências verbais atestam a presença do interlocutor, o TUd: “Abane a cabeça, leitor; faça todos os gestos de incredulidade. Chegue a deitar fora este livro, se o tédio já não o obrigou a isso antes; tudo é possível” (DC, p. 62) ou “Tudo acaba, leitor; é um velho truísmo, a que se pode acrescentar que nem tudo o que dura dura muito tempo” (DC, p. 30).

É também em Charaudeau que entendemos o ato de comunicação como uma representação, ou “como um dispositivo cujo centro é ocupado pelo sujeito falante (grifo do autor) (o locutor, ao falar ou escrever), em relação com outro parceiro (o interlocutor)” (CHARAUDEAU, 2009, p. 67). Nada mais apropriado para caracterizar um romance como um ato de comunicação: um sujeito narrador (Eu) toma a palavra e narra uma história a um interlocutor (o leitor). No caso de Machado de Assis como narrador, especialmente no seu Dom Casmurro, o interlocutor está mais que presente, precisamente porque a ele se dirige constantemente.

Em inúmeras situações, Bentinho particulariza esse leitor em acordo com o teor de sua “conversa”. Por exemplo, dirige-se às mulheres leitoras, quando relata um sonho que tivera com Capitu:

Tudo isto é obscuro, dona leitora, mas a culpa é de vosso sexo, que perturbava assim a adolescência de um pobre seminarista. Não fosse ele, e este livro seria talvez uma prática paroquial, se eu fosse padre, ou uma pastoral, se bispo, ou encíclica, se papa, como me recomendara Tio Cosme (DC, p. 79).

Faz parte da estratégia ficcional machadiana encenar esse jogo com o leitor, o que aproxima o discurso ficcional do discurso confessional, ou mesmo do discurso face a face. Fazendo eco a essas características, o narrador também duvida de suas capacidades de narrar, tem escrúpulos na sua relação com o leitor, obriga-se à clareza. Com isso, ele engendra o metadiscurso no qual organiza o texto de forma a fazê-lo participar na condição de um TU coenunciador.

Também dialoga com os padres leitores, quando se envergonha da promessa de dois mil padres-nossos para pedir a Deus que salvasse sua mãe: “Padre que me lês, perdoa este recurso; foi a última vez que o empreguei” (DC, p. 84). Sem receio algum, dirige-se até Sancha, a esposa também traída (na perspectiva de Bentinho), quando inicia suas conclusões a respeito do suposto envolvimento entre Capitu e Escobar:

Sancha, peço-lhe que não leia este livro; ou, se o houve lido até aqui, abandone o resto. Basta fechá-lo; melhor será queimálo, para não lhe dar a tentação e abri-lo outra vez. Se apesar do aviso, quiser ir até o fim, a culpa é sua; não respondo pelo mal que receber (id.ibidem, p. 138).

Para Charaudeau, “o ato de linguagem não esgota sua significação em sua forma explícita. Esse explícito significa outra coisa além de seu próprio significado” (CHARAUDEAU, 2008, p. 17). Amparados nessa teoria, observamos que Bentinho compõe supostamente uma narrativa de caráter memorialista e, por isso, seleciona intencionalmente fatos que sirvam para condenar Capitu como adúltera. Na verdade, a restauração da adolescência na velhice é o pretexto de que o narrador (EUc) se vale para julgar sua esposa e ainda convencer seus leitores (TUd) de que houve realmente um adultério. Assim se inicia o jogo explícito/implícito em Dom Casmurro. Esse Bentinho inocente, ingênuo – inserido no processo de produção do discurso – constitui a imagem do EUe construída pelo EUc, que é o Bentinho ardiloso, já velho e narrador, astuto, que não quer deixar suspeitas de suas convicções.

Para compor esse jogo, Bento Santiago vai construindo, ao longo da narrativa, uma imagem que reforça os traços negativos de Capitu. O olhar, que revela sua dissimulação, merece destaque especial nessa construção: “Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, ‘olhos de cigana oblíqua e dissimulada’. Eu não sabia o que era oblíqua, mas dissimulada sabia e queria ver se se podiam chamar assim” (DC, p. 46).

À medida que a narrativa avança, Capitu ganha não só ares de dissimulada, mas também poder de manipulação, superioridade às outras criaturas – inclusive ao próprio Bento – e até motivos para agir com interesses. Um ser humano assim caracterizado sempre levanta suspeitas caso venha a ter um comportamento considerado negativo aos olhos da moral. Pois essa é a imagem que Bentinho – enquanto EUc – quer construir a partir da fala de um outro Bentinho – o EUe, o titular da fala –, na expectativa de trazer seus leitores (TUd) para o seu lado3.

Essa é a leitura que fazemos das acusações de Bento Santiago, já que os fatos rememorados serão resgatados pela perspectiva condenatória que maculará suas memórias. O próprio Bento confessa, já no primeiro capítulo, esse ponto de vista quando explica o título do livro: “Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo” (DC, p. 11). Vê-se que um sujeito profundamente perdido e solitário conduzirá toda a narrativa: “Um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. [...] Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia enganar os estranhos, como os documentos falsos; mas não a mim” (DC, p. 12).

É uma visão unilateral e as condições de produção de seu discurso são totalmente marcadas pelo ressentimento e pela melancolia; daí sua insistência em comprovar a culpa de sua esposa.

Muitas são as cenas que provariam essa traição. No capítulo “Embargos de terceiros” (DC, p. 125), Bento Santiago simula uma prova de amor por Capitu:

Naquele tempo, por mais mulheres bonitas que achasse, nenhuma receberia a mínima parte do amor que tinha a Capitu. À minha própria mãe não queria mais que a metade. Capitu era tudo e mais que tudo; não vivia nem trabalhava que não fosse pensando nela. Ao teatro íamos juntos; só me lembra que fosse duas vezes sem ela, um benefício de ator, e uma estreia de ópera, a que ela não foi por ter adoecido, mas quis por força que eu fosse.

Mas essa declaração explícita de seu mais puro sentimento mostra-nos uma encenação, e ele não para por aí, ao contrário, prossegue em seu jogo:

Voltei no fim do primeiro ato. Encontrei Escobar à porta do corredor.

- Vinha falar-te, disse-me ele.

Expliquei-lhe que tinha saído para o teatro, donde voltara receoso de Capitu, que ficara doente.

- Doente de quê? perguntou Escobar. (DC, p. 125).

O registro dessa cena pode parecer inocente, no entanto Bentinho faz questão de selecioná-la para que o próprio leitor pense que Capitu forjara a doença para se encontrar com Escobar, na ausência do marido. Para o leitor, TUd, essa seria uma prova contundente do adultério. Aliás, essa intenção já está assinalada pela ambiguidade no título do capítulo, já que, além de ser uma expressão jurídica que no contexto designa o motivo da ida de Escobar à casa dos amigos (“Então, vou-me embora. Vinha para aquele negócio dos embargos...”), refere-se também ao suposto amante como um terceiro, formando o triângulo amoroso entre o casal.

E quanto às várias observações feitas em relação ao hábito de Ezequiel em imitar as pessoas, em especial Escobar?

– Sim, não sairá maricas, repliquei. Eu só lhe descubro um defeitozinho, gosta de imitar os outros.

– Imitar como?

– Imitar os gestos, os modos, as atitudes; imita prima Justina, imita José Dias; já lhe achei até um jeito dos pés de Escobar e dos olhos... (DC, p. 124)

É claro que, por trás desse comentário, Bentinho quer reforçar sua ideia fixa, convocando sempre os leitores para jurados do “crime” cometido por Capitu e Escobar provocação ou demagogia?). Sua expectativa é que o TUd faça inferências a partir do que foi dito, e, de certa forma, provado pelo narrador. Bentinho não diz explicitamente nesses exemplos que houve traição, mas é essa a ideia que deixa subentendida.

Além dos fatos rememorados, Bento Santiago fará também uma cuidadosa seleção vocabular ao narrar esses fatos. É, na perspectiva de Orlandi (2009), o material linguístico intervindo como pressuposto na construção dos discursos, é o signo linguístico em sentido de discurso. Observemos, por exemplo, o emprego do advérbio “já”, da sequência de adjetivos atribuídos às ideias de Capitu e das expressões adverbiais ligadas à forma como ela alcançava seus objetivos:

Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já ideias atrevidas, muito menos que outras que lhe viessem depois; mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos saltinhos (DC, p. 32).

Nesse ponto da narrativa, os leitores de Bento ainda não conhecem Escobar, este ainda não lhes foi apresentado. No entanto, Bentinho-comunicante quer construir para o TUd (nós, leitores, seres de fala) a imagem de uma Capitu capaz de articular planos – digamos – escusos. Assim, quando realmente apresentar sua desconfiança, seus interlocutores já terão essa imagem construída da personagem e, com certeza, também a condenarão.

É o que também acontece quando ele emprega o advérbio “apaixonadamente”, atribuído ao modo como sua esposa olha o defunto Escobar: “Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...” (DC, p. 134).

O que Bentinho faz? O que deseja? Parece querer revelar uma face negativa do comportamento de Capitu através de mecanismos linguísticos responsáveis por confirmar a ideia de que realmente sua esposa é ré sem argumentos de defesa. Não há, portanto, neutralidade ou transparência nas palavras do narrador, já que apenas seu olhar filtra o que será revelado. E já sabemos muito bem o que Bento Santiago quer nos comunicar.

Bentinho, então, escrevendo para o leitor ideal (TUd) – aquele que atenderá às suas expectativas – não alcançará, em muitos casos, êxito em seu propósito já que, fora do ato de enunciação do EUe, o TUi – o destinatário real que apura as intenções do EUc – fará suas intervenções identificando os “possíveis interpretativos” e desvelando a intencionalidade subjacente a cada enunciado produzido. Dessa maneira, a leitura dos implícitos se inicia e a significação do discurso de Bento Santiago vai sendo construída.

O TUi, portanto, entra no “jogo narrativo” proposto por Bentinho-EUc e começa a entender que a traição de Capitu com seu melhor amigo – a questão central da narrativa – está longe de ser comprovada, o que não deseja e espera o próprio acusador. Esse interlocutor (Tu-i) então questiona os fatos narrados e até duvida de que possam ser verdadeiros. Nesse momento, a “zona de intercompreensão suposta” (ver quadro na p. 3) (CHARAUDEAU, 2008, p. 45) se reduz ao mínimo possível, dado que a interpretação do TUd esperada pelo EUc não coincide com a do TUi.

Movido pelo conhecimento dos reais propósitos do EUc, mascarado no EUe, e ciente das circunstâncias em que o discurso de Bento é produzido, o TUi desconfia de cada relato. A condução da história torna-se então passível de suspeitas e o processo de interpretação não fica restrito apenas à simbolização referencial, ou seja, ao plano explícito do que é dito ou selecionado por nosso narrador-personagem, mas sim no jogo explícito/implícito que determina a significação de toda a narrativa.

Por exemplo, por que Bentinho não dá voz a Capitu, autorizando sua defesa? Por que não registrou as discussões entre o casal? Intencionalmente, apenas se limitou a dizer: “O que se passava entre mim e Capitu naqueles dias sombrios, não se notará aqui, por ser tão miúdo e repetido [...] Mas o principal irá. E o principal é que nossos temporais eram agora contínuos e terríveis” (DC, p. 140). “Temporais” é a metáfora para designar as desavenças e desentendimentos entre os dois. Mas Bentinho não registra os diálogos; talvez, se o fizesse, Capitu tivesse a chance de se defender. O casmurro não deseja essa possibilidade, por isso propositalmente planeja essa ocultação. Seria esse segredo a chave da ambiguidade romanesca?

A partir da imagem que construiu do EUc, o TUi transgride a ordem dada por Bentinho-enunciador no primeiro capítulo e então recorre ao dicionário. Lá encontra a definição que Bento deseja tentar esconder: “casmurro: que, ou aquele que é teimoso, implicante, cabeçudo” (FERREIRA, 1989, p. 364). Essa acepção se enquadra melhor no comportamento obsessivo que tem Santiago ao longo da narrativa. Só mesmo um casmurro, nessa acepção, pode exaustivamente trabalhar para persuadir seus interlocutores.

O leitor-TUi se dá conta de que precisa completar as informações fornecidas pelos enunciados construídos ao longo de todos os relatos e assim começa a construir a significação do texto a partir da encenação do jogo implícito/explícito de Bentinho. Patrick Charaudeau (2008) destaca que essa encenação já é esperada quando um EUc quer fabricar uma certa imagem de si quando produz seus atos de fala, ou seus discursos. Essa seria uma espécie de jogo entre o ser e o parecer revelado através da linguagem ou, nas palavras de Charaudeau, através das “representações linguageiras” dos indivíduos envolvidos em um processo de comunicação. Usemos as palavras do próprio autor para concluir esse raciocínio:

Em outras palavras, longe de conceber que o sentido se constituiria primeiro de forma explícita em uma atividade estrutural e, em seguida, seria portador de um implícito suplementar no momento de seu emprego, dizemos que é o sentido implícito que comanda o sentido explícito para constituir a significação de uma totalidade discursiva (CHARAUDEAU, 2008, p. 26).

Dom Casmurro é, por excelência, uma obra construída a partir do jogo explícito/ implícito e assim sua leitura não deve restringir-se às declarações, reflexões ou fatos registrados pelo EU que detém a voz em toda a narrativa, sob pena de o leitor ser conduzido à condenação – que pode ser injusta – de Capitu.

5 Palavras finais

Pretendemos com todas essas ponderações reforçar que, em uma perspectiva semiolinguística, os atos de enunciação, quaisquer que sejam suas formas (palavra, frase, texto), não esgotam em si mesmos sua significação.

Charaudeau (2008, p.17) é quem nos diz:

Um dado ato de linguagem pressupõe que nos interroguemos a seu respeito sobre as diferentes leituras que ele é suscetível de sugerir. O que nos leva a considerá-lo como um objeto duplo, constituído de um Explícito (o que é manifestado) e de um Implícito (lugar de sentidos múltiplos que dependem das circunstâncias de comunicação).

Sabe-se que os mecanismos internos da língua (escolhas de campos lexicais, ambiguidade, polissemia, figuras de linguagem, sinonímia e tantos outros) contribuem para o jogo de encenação – perspectiva de Charaudeau – do dito e não dito no qual é produzido um discurso. Este, então, nasce a partir da combinação das condições extradiscursivas com as realizações intradiscursivas que os agentes do discurso operam entre si no intuito de persuadir seus interlocutores, que é o propósito de todo enunciador ao construir seus discursos. É como diz Citelli (1991, p. 6): “É possível afirmar que o elemento persuasivo está colado ao discurso como a pele ao corpo. É muito difícil rastrearmos organizações discursivas que escapem à persuasão”.

Enquadramos também nessa teoria o jogo enunciativo de um texto literário, e Dom Casmurro foi eleita para ilustrar essa teoria. Portanto, a obra não deve ser lida de uma maneira ingênua e superficial, levando-se em conta apenas o ponto de vista do narrador-personagem Bento Santiago. A leitura, se realizada dessa forma, contemplaria somente o plano Explícito, contrariando, assim os pressupostos da teoria da enunciação.

Referências

ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Ática, 1984.

BENVENISTE, Émile. O aparelho formal da enunciação. In: BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral II. Trad. E. Guimarães et al. Campinas, SP: Pontes, 1989.

CHARAUDEAU, Patrick. Linguagem e discurso: modos de organização. São Paulo: Contexto, 2008.

CITELLI, Adilson. Linguagem e persuasão. São Paulo: Ática, 2002.

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1989.

MAINGUENEAU, Dominique. Os termos-chave da Análise do Discurso. Lisboa: Gradiva, 1997.

ORLANDI, Eni. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, SP: Pontes, 2009.

Notas

1 Ato de fala, também denominado ato de linguagem, segundo Maingueneau (1997, p. 12): “Trata-se da menor unidade que, pela linguagem, representa uma acção (ordem, pedido, afirmação, promessa...) destinada a modificar a situação dos interlocutores. O coenunciador não pode interpretá-la a não ser que conheça o caráter INTENCIONAL do acto do enunciador”.
2 Daqui por diante citaremos trechos de Dom Casmurro pelas iniciais DC, seguidas da página correspondente.
3 É aqui que são elaboradas as estratégias discursivas de provocação e demagogia de que já falamos.

Notas de autor

1 Mestra em Cognição e Linguagem pela Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF). Professora de Língua Portuguesa no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense campus Cambuci /RJ – Brasil. E-mail: giseldadutrabandoli@uol.com.br.
2 Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF) - Campos dos Goytacazes/RJ – Brasil. E-mail: arruda.sergio@gmail.com.
3 Especialista em Literatura Contemporânea pelo Centro Universitário Barão de Mauá e em Letras pelo Centro Universitário São José de Itaperuna. Professor de Língua Portuguesa na Prefeitura de Varre-Sai/RJ – Brasil. E-mail: josebrenatti@hotmail.com.
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