ARTIGOS ORIGINAIS

O grotesco e a poesia de Vinicius de Moraes

The grotesque and the poetry of Vinicius de Moraes

Daniel Gil 1
UFRJ, Brasil

O grotesco e a poesia de Vinicius de Moraes

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 19, núm. 1, 2017

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

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Recepción: 29 Agosto 2016

Aprobación: 24 Abril 2017

Resumo: Embora Vinicius de Moraes seja conclamado por sua poesia amorosa, sua obra possui, no entanto, outro lado, uma face bizarra e prolífica ainda pouco explorada pelos estudiosos. A tendência que muito de seus versos dispõe para o espectro do anômalo, do feio, do asqueroso, do putrefato é evidente e o torna, com a devida atenção, o maior herdeiro no século XX da poesia grotesca levada a efeito por Cruz e Sousa e Augusto dos Anjos. Essa tendência esbarra igualmente, outras vezes, no riso espontâneo do nonsense, da glutonaria, do escatológico e da incorreção.

Palavras-chave: Grotesco, Poesia, Vinicius de Moraes.

Abstract: Even though Vinicius de Moraes may be a poet celebrated for his amorous verse, there is another side to his work, a strange and prolific facet still largely unexplored by researchers. It is evident how much of his verse leans towards the anomalous, the ugly, the foul, and the putrid. In this sense de Moraes is, in the 20th century, the greatest heir of the grotesque poetry we find in authors such as Cruz e Sousa and Augusto dos Anjos. At other times, this vein runs into the spontaneous laughter of nonsense, as well as gluttony, eschathology, and incorrectness.

Keywords: Grotesque, Poetry, Vinicius de Moraes.

As grutas e a desordem

O hibridismo descoberto nas últimas décadas do século XV, no decurso das escavações empreendidas primeiramente em Roma e depois em outras regiões da Itália, consistia em inusitadas dissonâncias, a partir de seres mitológicos como sereias e centauros ou de meio-corpos com pouca beleza que emergiam confusos do reino vegetal. Compunha uma série de motivos ornamentais que tomavam especialmente as ruínas do Domus Aurea — o palácio de festas que Nero construiu após o grande incêndio de 64 d.C. Como aponta Wolfgang Kayser, grotesco e os vocábulos que lhe correspondem em outras línguas são empréstimos tomados da língua italiana: derivações de grotta (gruta) que remetem, em maior ou menor grau, a composições semelhantes àquelas (KAYSER, 2009, p. 102-3).



Fui ficando nodoso e áspero e
[começou a escorrer resina do meu suor.
E as folhas se enrolavam no meu corpo para me embalsamar.
Gritei, ergui os braços, mas eu já era
[outra vida que não a minha/ […]
Aqui eu estou parado, preso à
[terra, escravo dos grandes príncipes loucos.
Aqui vejo coisas que a mente humana jamais viu /[…]
Meu ser vê, meus olhos sentem, minha alma escuta
A conversa do meu destino nos
[gestos lentos dos gigantes inconscientes
Cuja ira desfolha campos de rosas num sopro trêmulo...1

Eram ornamentos que diferiam dos ideais estéticos predominantes, o que não impediu que um novo estilo neles inspirado se difundisse. Tornou-se mesmo popular, além, é claro, de merecer destaque entre as obras mais famosas e curiosas do Renascimento, como as cabeças grotescas de Leonardo da Vinci ou os grotescos de Rafael Sanzio. Os artistas da maniera, na transição entre a arte renascentista e a barroca, entusiasmavam-se também pelo estilo, pelos sogni dei pittori, como ensina Anatol Rosenfeld. É o caso de Tesauro, que sugeria ao artista e ao poeta que estabelecessem ligações entre os fenômenos mais desencontrados, como ocorre no sonho e na loucura: “um caranguejo, por exemplo, agarrando uma borboleta ou um escorpião abraçando a lua” (ROSENFELD, 1985, p. 64-5).

O fenômeno, todavia, é mais antigo que o seu nome. Ele já ocorrera na arte chinesa, etrusca, asteca, germânica antiga, ou mesmo em manifestações poéticas gregas. Constatou-se logo, inclusive, que o grotesco não era autóctone de Roma, e que lá chegara relativamente tarde, por volta da época da transição para o império. A possibilidade mágica de uma arte que pudesse unir conceitos e imagens antagônicas servira sobretudo de eixo à cosmologia de muitas religiões primitivas, ao imaginário medieval e ainda de épocas proximamente posteriores. Em grande medida, os obstáculos frente aos que procuram um conceito homogêneo, que compreenda todas as suas manifestações, devem-se à polissemia do vocábulo. Variando de acordo com os valores estéticos de cada período histórico, de cada artista ou mesmo da recepção estética subjetiva dos espectadores, ele se mostra como uma categoria mutável; seu conceito é um terreno movediço para os que buscam, na definição, uma sentença universal.

A poesia de Vinicius de Moraes muitas vezes manifesta o “id fantasmal” que Kayser nos apresenta com o intuito de decodificar o grotesco (KAYSER, 2009, p. 15960). O crítico alemão se utiliza do conceito moritziano de id para falar sobre um mundo alheio à ordem natural. É preciso que estejamos, no entanto, de posse do conhecido e do familiar para que sobrevenha a surpresa do estranhamento, do alheado. O mundo do grotesco “é o nosso mundo — e não é” (p.40). A combinação entre o risível e o horrível se fundamentaria na experiência de uma ordem confiável e firme, que se alheia devido à irrupção de poderes abismais e se desarticula, nas juntas e nas formas. O encontro com a demência e a loucura, nesse sentido, seria uma das percepções primigênias do grotesco.



Me pedes para te levar a comer uma salada
Mas de súbito me vem uma consciência estranha
Vejo-te como uma cabra pastando sobre mim
E odeio-te de ruminares assim a minha carne.



E então fico possesso, dou-te um murro na cara
Destruo-te a carótida a violentas dentadas
Ordenho-te até o sangue escorrer entre meus dedos
E te possuo assim, morta e desfigurada.



Depois arrependido choro sobre o teu corpo
E te enterro numa vala, minha pobre namorada…
Fujo mas me descobrem por um fio de cabelo
E seis meses depois morro na câmara de gás.2

Kayser elabora em sua obra O grotesco: configuração na pintura e na literatura (1957) um panorama extenso em torno das ocorrências do grotesco, tanto na arte como na crítica. Suas reflexões partem da etimologia do termo e sua ligação com os ornamentos dos séculos XV e XVI, chegando até a literatura e as artes plásticas contemporâneas, passando por considerações sobre a pintura de Bosch, Brueghel, as caricaturas de Callot, a Commedia dell’Arte, o teatro do Sturm und Drang, a ficção romântica e muitos trabalhos do século XIX e início do século XX. Sua obra tem importância central para a discussão do conceito. As manifestações reconhecidas pelo teórico apontam para o aspecto, em algum grau, lúgubre e sinistro. Conquanto sejam cômicas, elas não seriam observadas com leveza devido à natureza incomum e contraditória; encontra-se nelas um elemento assustador diante da instabilidade, da falta de fundamento seguro que é sentida de súbito. O id fantasmal seria uma força manipuladora do homem e do mundo, uma espécie de titereiro invisível que submete o universo a uma ordem desconfortável.

Ariadna onírica

O primeiro volume de poemas publicado por Vinicius, O caminho para a distância (1933), deixa ver um jovem poeta de abundante criatividade mas ainda imaturo quanto às possibilidades do verso. Forma e exegese (1935), com poemas antológicos como “Ausência” e “Ilha do Governador”, cruza-se até então com composições e imagens de gosto duvidoso, e a força criativa do poeta resulta às vezes em presunção e palavrório. Esse primeiro momento difere em muitos aspectos do Vinicius que gravou o seu nome na literatura brasileira, o virtuose de uma obra popular e formalmente rigorosa — que soube sobretudo explorar com maestria modalidades múltiplas de versificação. O desenvolvimento dado pelo que o exercício, o estudo e a maturidade lhe trouxeram opôs também, muito flagrantemente, uma poesia religiosa e misteriosa a uma poesia quase sempre diáfana e mundana.

O poema-livro Ariana, a mulher (1936) pode suscitar então um interesse específico. Sem dúvida tratamos de uma peça daquele primeiro momento do poeta, mas aqui as imagens cristãs se configuram com notável melodia; o despudor criativo de Vinicius se apresenta mais sofisticado e elementos grotescos protagonizam impressões bastante inusitadas.

A aventura onírica de um eu-lírico solitário, “na sala deserta daquela casa cheia da montanha em torno”,3 faz lembrar que o fato de os ornamentos compostos sob a influência grotesca evocarem formas livres como nos sonhos legou-lhes o título de sogni dei pittori (sonhos de pintores). A licença para ir além dos limites estabelecidos pelos postulados clássicos, ultrapassando, portanto, por meio da fantasia artística e da desordenação do mundo, a mimese do verdadeiro, estabeleceu o vínculo substancial entre o grotesco e o onírico, a subversão das leis naturais e a criação de monstros.



Senti que a Natureza tinha entrado invisivelmente através das
[paredes e se plantara aos meus olhos em toda a sua
[fixidez noturna/ [...]
Eu aspirava a sua respiração ácida e pressentia a sua
[deglutição monstruosa mas para mim era como se
[ela estivesse morta
Paralisada e fria, imensamente erguida em sua
[sombra imóvel para o céu alto e sem lua

Sua busca por Ariana — referência ao mito do desaparecimento de Ariadna — levou-o a compreender que “só onde cabia Deus cabia Ariana”. Mas logo uma ordem estranha o fez representar o próprio ente antagônico.



Dentro em pouco todos corriam a mim, homens varões e
[mulheres desposadas
Umas diziam: Meu senhor, meu filho morre! e outras eram
[cegas e paralíticas
E os homens me apontavam as plantações estorricadas e
[as vacas magras.
E eu dizia: Eu sou o enviado do Mal! e imediatamente as
[crianças morriam
E os cegos se tornavam paralíticos e os paralíticos cegos
E as plantações se tornavam pó que o vento carregava e
[sufocava as vacas magras.

Enquanto Deus é a representação do sublime, o Diabo se torna a do grotesco, expresso na bestialidade, nos apetites e na materialidade. Segundo a tradição antropomórfica, ele é dotado de traços humanos e animalescos. A bestialização opera a fusão entre opostos, homem versus animal, e revela o arquétipo do Mal e da “descoberta do êxtase em todo o fenômeno, não importa quão naturalmente repugnante” (CROWLEY, 2000, p.104). É bom lembrar que, no carnaval, o Diabo é festivo, representa a glutonaria, o riso e a licenciosidade expressos em sua configuração híbrida e em sua presença constante em farsas como figuras burlescas. Para Charles Baudelaire, o riso seria nesse sentido uma “ideia satânica” porque viria “da ideia de sua própria superioridade”; e ainda nos conclama a observar, com base nos manicômios, que “o riso é uma das expressões mais frequentes e mais numerosas da loucura” (BAUDELAIRE, 1998, p.14).

O carnaval de Bakhtin

De acordo com o estudo de Mikhail Bakhtin sobre as influências populares nos romances de Rabelais, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1977), as múltiplas manifestações e a força dos diversos temas grotescos podem ser compreendidas nas festas públicas profanas como as Asinárias, as Soities e os carnavais.

O riso e a visão carnavalesca do mundo estariam “na base do grotesco” porquanto destroem a seriedade unilateral, as “pretensões de significado incondicional e intemporal” e liberam “a consciência e a imaginação humana” (BAKHTIN, 2013, p.43). Porque, estranhas à ordem em seus motivos e práticas, as festas públicas eram a segunda vida do povo. A inversão e o rebaixamento existentes nessas ocasiões específicas, reservadas na vida do povo, dariam margem à ridicularização das instituições austeras e dos poderosos; o elevado tornava-se comum e o riso substituía o medo. O grotesco identificado nos festivais de rua da Idade Média e do Renascimento seria marcadamente alegre, uma forma de dessacralizar os aspectos graves e opressivos por meio do riso espontâneo. A abordagem kayseriana do grotesco, lúgubre e sinistro, estaria conjugada, segundo Bakhtin, a um estágio mais recente da história: “no grotesco romântico o riso se atenua, e toma a forma do humor, ironia ou sarcasmo. Deixa de ser jocoso e alegre. O aspecto regenerador positivo do riso se reduz ao mínimo”. O grotesco romântico seria, pois, um “grotesco de câmara, uma espécie de carnaval que o indivíduo representa na solidão” ((BAKHTIN, 2013, p.33).

No grotesco bakhtiniano, o movimento típico seria descendente. Seu imaginário, o baixo: a terra, o subterrâneo, o útero. O elevado submerge no baixo e se renova. O corpo teria dois polos simbólicos como representação da realidade: o elevado, constituído pelo rosto, pela cabeça, onde se localizam as abstrações e a espiritualidade; o outro, constituído pelo ventre e pelos órgãos inferiores, em que residem os apetites e a animalidade. O baixo corporal atuaria como força que arrasta o elevado ao húmus e transmuda-o pelo riso espontâneo e pela alegria. Órgãos como boca, genitálias e os orifícios que incorporam o exterior através do coito e da deglutição, e que expelem o interior pelo parto ou pela excreção, seriam figuras típicas do grotesco: neles o corpo deixa de ser único e isolado. Bakhtin considera que “excrescências e orifícios caracterizamse pelo fato de que são o lugar onde se ultrapassam as fronteiras entre dois corpos e entre o corpo e o mundo” e seria na baixeza que se efetuam “as trocas e as orientações recíprocas” ((BAKHTIN, 2013, p.277). O movimento de rebaixamento se relacionaria com o próprio caráter cíclico da natureza, expressada de maneira metonímica nas manifestações do cotidiano.



Fico ali respirando o cheiro bom do estrume
Entre as vacas e os bois que me olham sem ciúme
E quando por acaso uma mijada ferve

O fenômeno grotesco ocorreria das funções e partes mais íntimas e jocosas do corpo, das que remetem ao licencioso ou ao escatológico; ocorreria sobretudo daquelas que representam um ponto de conexão com os outros corpos, já que se expressa num corpo em expansão, que busca se coletivizar. Ao ser concebido em uma poesia que usufrui de certos recursos que lhe emprestam um acento popular, como redondilhas, o refrão e um sinistro ambiente folclórico, o resultado se faz interessante como o de “Tanguinho macabro”.



— Maricota, o teu nariz
São duas fossas de verdade!
Maricota, o teu nariz
São duas fossas de verdade!
— Não é nariz não, mocinho
É uma grande cavidade
Para sentir o cheirinho
Dessa tua mocidade.5

A comilança do omnívoro

A maioria dos nomes próprios, em Rabelais, adquire o caráter de apelido. Forjados ou legados pela tradição, esses nomes-alcunhas não são “neutros”, como nos ensina Bakhtin (2013, p.405). O sentido de cada um sempre inclui uma apreciação positiva, negativa ou mesmo ambivalente. Seu personagem Gargântua nasceu com um choro bastante particular: “Beber! Beber! Beber!”. Ao que seu pai reagiu: “Que Garganta a tua!”. E, por essas palavras, seu nome lhe foi dado (RABELAIS, 1957, p.57). A partir de composições narrativas como essa, em torno dos gigantes Gargântua e Pantagruel — personagens glutões e galhofeiros que seriam uma alegoria hiperbólica da vida do povo —, o crítico russo extrai o que chama de “realismo grotesco”.



Não nasci ruminante como os bois
Nem como os coelhos, roedor; nasci
Omnívoro: deem-me feijão com arroz



E um bife, e um queijo forte, e parati
E eu morrerei feliz, do coração
De ter vivido sem comer em vão.6

Órgãos como a boca, os dentes, a língua, a garganta, correlacionados com as funções inferiores do corpo humano como a deglutição e a produção de fluidos, são elementos importantes do realismo grotesco, especialmente quando chegam sob as formas do exagero. Esses elementos são também profícuos do ponto de vista mítico e telúrico por representarem um ambiente interior, desconhecido, associado ao baixo e ao subterrâneo. O grotesco, propenso às cavidades, à analogia entre as aberturas do corpo humano e as grutas que levam às profundezas, utiliza-se do universo corporal como representação do universo total. Temas sérios e elevados como a morte podem ser então rebaixados para que venham depois à tona, estranhos e risíveis. O que é o caso quando morrer “feliz” e morrer “do coração” aparecem conjugados, ainda mais se conduzidos pela hipótese da abundância: feliz do coração.

Em “Soneto ao caju”, Vinicius de Moraes dá início ao poema colocando o amor nas “coisas que têm sumo/ E oferecem matéria onde pegar”. Em contradição arguta com o previsível, o poeta em seguida menciona a noite, a música e o mar; mas logo emenda: “Amo a mulher, amo o álcool e amo o fumo”. E em sua apologia poética ao caju, de “materialismo elementar”, enxerga-o “a copular com o galho/ A castanha brutal como que tesa:”, finalizando:



O único fruto — e não fruta — brasileiro
Que possui consistência de caralho
E carrega um culhão na natureza.7

A deglutição e o coito, assim como a excreção e o parto, expressam processos de transformação do corpo individual em partícula passível de fusão com o exterior, dados por orifícios e genitálias. Georges Bataille chama a atenção para esses “canais secretos que nos dão o sentimento da obscenidade”, afirmando que a obscenidade seria a “desordem que perturba um estado de corpos que estão conformes à posse de si, à posse da individualidade durável e firmada” (BATAILLE, 1987, p.17).

Romantismo e feiura

Do arcabouço estético recomendado em Conversa sobre poesia (1800), de Friedrich Schlegel, constam as obras compostas ao sabor da imaginação livre, engendradas como forças indômitas da natureza. Elas nasceriam do lúdico, dos contrastes e do desarmônico, ainda que perturbadores; aspirariam à expressão da totalidade e do absoluto. O poeta alemão já havia afirmado que o belo está distante de ser o princípio dominante da moderna lírica e que “muitas das mais esplêndidas obras modernas são representações evidentes do feio” (SCHLEGEL apud ECO, 2014, p.275). Conversa sobre poesia, por sua vez, constitui um dos mais importantes manifestos da história do romantismo.

O “arabesco” seria a fórmula com a qual os artistas conseguiriam alcançar os elementos românticos, a potencialidade que definiria a poesia romântica. Seu significado seria íntimo do conceito de fantasia. Seu produto seria composições inventivas, “espirituosos jogos pictóricos”, que empregariam “uma forma ou maneira de exteriorização inteiramente determinada e essencial da poesia” (SCHLEGEL, 1994, p. 62-3). Não seria a nada subordinado, exceto à vontade subjetiva. Para tanto, poderia se apartar inclusive das convenções de beleza e dos gêneros fechados, e se manifestar no inverossímil e na extravagância. Schlegel assinalou em um de seus fragmentos que o gênero da poesia romântica está em evolução e que essa “é sua verdadeira essência, estar sempre em eterno desenvolvimento, nunca acabado”. Nenhuma teoria o esgota e apenas uma “crítica divinatória” estaria autorizada a “ousar uma característica de seu ideal”. Só ele seria infinito, livre, e teria como sua lei primeira que “o arbítrio do poeta não estará sujeito a nenhuma lei” (SCHLEGEL, 1994, p.101).



Arranca do mais fundo a tua pureza e lança-a sobre o
[corpo felpudo das aranhas
Ri dos touros selvagens carregando nos chifres
[virgens nuas para o estupro nas montanhas/[…]
E com todo esse pus, faz um poema puro8

Outro registro que ficaria marcado também como um dos principais manifestos do romantismo é o prefácio que Victor Hugo escreve para Cromwell (1827), justificando as opções estéticas de seu novo trabalho. O prefácio tornar-se-ia mais famoso que a própria peça e seria fundamental para entender o impacto que o grotesco exerceu sobre a arte e as teorias românticas. Se Schlegel via nos arabescos um veículo de junção dos heterogêneos para que a poesia pudesse compreender o absoluto, Hugo percebia no grotesco um elemento capaz de elucidar e complementar o belo, de ampliar seu conceito, para que, enfim, o absoluto se revelasse. Desse modo, a “musa moderna”, com olhar mais elevado e amplo, sentiria “que o feio existe ao lado do belo, o disforme perto do gracioso, o grotesco no reverso do sublime, o mal com o bem, a sombra com a luz” (HUGO, 2010, p.26).

Victor Hugo expõe ali a teoria das três idades: o gênero humano teria crescido e se desenvolvido; e alcançou a maturidade, como qualquer um de nós. “Foi criança, foi homem; assistimos-lhe agora a imponente velhice”. Na primeira etapa da humanidade, “fabulosa” ou “primitiva”, a ode é a manifestação poética: “Eis o primeiro homem, eis o primeiro poeta. É jovem, é lírico. A prece é toda a sua religião: a ode é toda sua poesia”. Na Antiguidade, “a família se torna tribo, a tribo se faz nação”. Há choque de impérios, guerra: “A poesia reflete esses grandes acontecimentos; das ideias ela passa às coisas. Torna-se épica, gera Homero” (HUGO, 2010, p. 16-8). Somente a partir do cristianismo, de acordo com o escritor, a partir do drama, a verdade almejada como ideal estético teria sido possível. Os temas e as formas da tragédia e da comédia comportariam a completude do homem, o elevado e o baixo, o sagrado e o profano, o divino e o terreno.

O romantismo ofereceu um novo significado à estética da feiura. Quando percorremos as páginas de qualquer volume dedicado à história das artes, é muito perceptível que ali ela reemerge desassombrada. Umberto Eco deu a esse momento histórico o título de “O resgate romântico do feio”; e parte de uma reflexão de G. E. Lessing sobre o grupo estatuário Laocoonte para discorrer sobre o assunto (ECO, 2014, p. 270-309). Hugo, personagem visionário desse período, acabou aproximando os conceitos de grotesco e de feiura em sua teoria, dependendo do funcionamento que eles prestassem à obra artística como constituição de um polo oposto ao sublime.

Baudelaire no Miramar

O legado baudelairiano na poesia ocidental, desde as últimas décadas do século XIX até hoje, reincide com tal constância e de tantas formas, que não seria exagero afirmar que um norte estético, moderno, por vezes inconsciente, foi dado sob a influência decisiva de Baudelaire. O poeta francês superou um conjunto de recursos já desgastados do romantismo sem abdicar de grande atenção, no entanto, para com o sublime e o absoluto, alcançados por meio da interação ativa e desinquieta com o obsceno, a maldade, o abjeto, o grotesco. Foi precursor do simbolismo, influenciou realistas, colaborou definitivamente com os contornos da modernidade.

No Brasil, a partir da década de 1870, poetas como Teófilo Dias e Carvalho Júnior pleiteavam a poesia de Baudelaire e utilizavam-na como uma suposta evidência favorável à estética realista e à negação do romantismo. Carvalho Júnior escreve à época o soneto “Profissão de fé”, em que se apropria de imagens de “L’Idéal” para compor um tributo ao realismo: “Odeio as virgens pálidas, cloróticas/ Belezas de missal que o romantismo/ Hidrófobo apregoa” que sugere à memória “Je laisse à Garvani, pöete des chloroses,/ Son troupeau gazouillant de beautés d’hôpital”. Elementos da poesia baudelairiana como o erotismo carnal e a agressividade levariam então uma parte considerável da crítica a esse entendimento que aproximava o francês da estética realista (SILVA SANTOS, 2009, p. 420-30). Não era o caso de Machado de Assis. Em “A nova geração”, texto publicado em 1879 na Revista Brasileira, ele afirma que “os termos Baudelaire e realismo não correspondem tão inteiramente” e lembra que o próprio poeta havia repugnado a classificação de realista — “cette grossière épithète” (ASSIS apud CAROLLO, 1980, p. 142-3). As reservas de Baudelaire evidenciadas em poemas como “L’Idéal” não apontavam na verdade para esta ou aquela tendência específica, mas à mediocridade de muitos artistas de seu tempo que não carregavam na poesia as dimensões da eternidade, encontradas nas grandes obras do passado. Como podemos perceber em sua teoria sobre a modernidade (BAUDELAIRE, 1997), elementos que remetem ao eterno e que se insinuam nas impressões cotidianas legitimariam a beleza moderna.

A composição de imagens por meio do erotismo grotesco, encarnado na animalização de aspectos humanos e no apelo à violência e ao asqueroso, é herança desentranhada e subvertida da teoria romântica, e antecipa alguns dos componentes comuns no simbolismo brasileiro, sobretudo em Cruz e Sousa. Entre outros recursos, a abertura da poesia ao léxico de toda a estirpe, à explicitação da feiura, às minúcias materiais e brutais possibilitaria também o surgimento de uma obra extraordinária como a de Augusto dos Anjos. E os mecanismos diversos da lírica baudelairiana continuariam a abrir portas para os maiores nomes da poesia brasileira ao longo do século XX.



Mantém-se extática em face
Da aurora em elaboração
Embora formigas pretas
Que lhe entram pelos ouvidos
Se escapem por umas gretas
Do lado do coração.
Em volta é segredo: e móveis
Imóveis na solidão…
Mas apesar da necrose
Que lhe corrói o nariz
A moça está tão sem pose
Numa ilusão tão serena
Que, certo, morreu feliz.9

No poema “Une charogne”, Baudelaire apresenta um espetáculo natural que vai além de um simples fascínio pelo horror. A carcaça em putrefação é de uma beleza ambígua, incômoda e com aberturas para o eterno, substâncias comuns à fruição do sublime. Os quartetos dedicados a uma carniça parecem elaborar algo inovador dentro das representações do grotesco na literatura, mais precisamente no reconhecimento das conotações telúricas latentes ao processo de decomposição: a transcendência do abjeto à esfera do cósmico; o elevado, na figura do sol, interatuando com o baixo, na figura da carniça; o ciclo implacável. Formas estereotipadas do discurso amoroso contrastam no poema com as inúmeras imagens hediondas e macabras, que levam a ironia a um extremo de pouca ou nenhuma precedência.

A “Balada da moça do Miramar”, publicada em 1954 na Antologia poética de Vinicius de Moraes, descreve o cadáver de uma mulher, “nua, morta, deslumbrada”, de frente a uma janela do Edifício Miramar. Seu corpo apodrece já há alguns dias, mas ela deixou a porta trancada e ninguém sabe de sua morte. A imagem do deslumbre, que fora do contexto poderia remeter a uma grande expressividade, carregada de vida, torna-se uma fotografia precisa e tétrica no poema, resultado do contraste. O sentido de se deslumbrar que é ter a visão abalada pelo excesso de luz, aqui é tê-la abalada pelo seu inverso; ou então que se entenda a morte como iluminação. A moça está sem “pose”. A extensão de sentido da palavra também é provocadora e antagônica: assumir atitudes afetadas ou imitativas é uma hipótese nula para um cadáver, embora esteja ele perfeitamente parado como quem está sujeito a uma foto ou pintura — ou à poesia. Necrofilia lunar, estupro solar. Os signos mais elevados podem se transformar na matéria mais bruta quando consideramos a recepção subjetiva do interlocutor. Vida e morte vêm e vão como substâncias imiscíveis ou como mistura homogênea enquanto os ossos atravessam a pele da moça. “Balada da moça do Miramar” é uma das mais belas baladas vinicianas e dialoga com uma tradição em que o grotesco sai das margens e se torna protagonista.

De Gregório a Vinicius

Quanto mais a sátira se acentua na poesia de Gregório de Matos, mais podemos encontrar os elementos que por ora nos interessam. Em épocas anteriores àquela estética romântica que estimularia a desordem em um ambiente misterioso e amedrontador, era mais fácil que o riso alegre fosse o principal produto do grotesco. O poeta barroco inverteu a lógica do respeito e das hierarquias para ridicularizar o poder e os postos mais prestigiosos da sociedade. Valeu-se da cultura cômica popular e compôs uma obra povoada de personagens como governadores, clerezia, fidalgos, letrados, administradores etc., bem como pessoas mais simples do povo. Todos carnavalizados em algum grau, de modo que se misturassem entre palavrões, profanações e caricaturas, como a que pintou do governador Antônio Luís da Câmara Coutinho.



Nariz de embono
com tal sacada,
que entra na escada
duas horas primeiro
que seu dono.10

Os entes religiosos, sobretudo frades, eram matéria-prima entre as mais usuais para o rebaixamento.



Verá na realidade
aquilo, que já se entende
de uma puta que se rende
às porcarias de um Frade:
mas se não vê de verdade
tão lascivo exercício,
é, porque cego no vício
não lhe entre no oculorum
o secula seculorum
de uma puta de ab initio.11

A chamada poesia pantagruélica precisa constar também em qualquer rápida retrospectiva que se faça dos principais nomes do grotesco em nossa lírica. Situada entre as décadas de 1840 e 1860, pertence a um romantismo paulistano “marcado pelo satanismo, o humor e a obscenidade”, como afirma Antonio Candido. O que restou dela é pouco, pois seus próprios praticantes não lhe davam importância. E, ao entrarem em suas vidas práticas e respeitáveis, os poetas pantagruélicos punham de lado “as provas de loucura da mocidade e com certeza as destruíam” (CANDIDO, 1993, p. 230-1). O mal que deitava suas sombras sobre Álvares de Azevedo, Aureliano Lessa e, mais especialmente, Bernardo Guimarães, ainda não era inspirado por Baudelaire, mas por Byron, Shelley, Musset e Heine, como ensina Silva Santos (2009, p.28). Bernardo Guimarães explorou praticamente todos os gêneros desviantes ou baixos e modalidades do grotesco romântico em “A saia balão”, “Lembranças do nosso amor”, “O elixir do pajé”, “O nariz perante os poetas”, “Origem do mênstruo” ou “Parecer da Comissão de Estatística a respeito da freguesia de Madre-deus-do-angu”.

Na última década do século XIX, Cruz e Sousa publicou seus primeiros poemas e prosas poéticas. Sua literatura se filiava ao simbolismo, estilo estranho à literatura nacional e que nem mesmo na França, país de origem do movimento, alcançara inteira aceitação. O poeta, oriundo da província do Desterro, assume um caráter cosmogônico, faz de sua poesia um ambiente análogo a um cosmo encerrado em si mesmo que o arrasta para o inferno das experiências sensíveis, ao paraíso de suas aspirações transcendentais, às grutas da angústia íntima e ao infinito das instâncias inteligíveis. Sua substância grotesca flerta com o sublime; o mal aparece como única e desesperada saída para a concretização das abstrações — sua busca primordial — que somente se daria com o amálgama entre os opostos. Seus versos são sonoros, performáticos; contam com elementos românticos, nevroses decadentistas, mundos invisíveis, abismos e pesadelos.



Vala comum de corpos que apodrecem,
Esverdeada gangrena
Cobrindo vastidões que fosforescem
Sobre a esfera terrena.



Bocejo torvo de desejos turvos,
Languescente bocejo
De velhos diabos de chavelhos curvos
Rugindo de desejo.12

O simbolismo de Cruz e Sousa preconizou uma importante linhagem do modernismo brasileiro. Antonio Carlos Secchin explica, a respeito, que a hegemonia da versão paulistana do movimento modernista acabou minimizando ou excluindo suas várias vertentes. Afirmar que a geração de 22 foi iconoclasta e que a geração de 30 representou a maturidade e a reconstrução poética significa, segundo ele, “traçar uma empobrecedora linha reta”. Entre outras, havia a vertente que dialogava com o simbolismo, como a que resultou nas obras de Cecília Meireles e Augusto Frederico Schmidt. Esses poetas “tampouco são ‘antimodernistas’, a menos que o modernismo seja termo de uso privativo do grupo de 22; são, antes, outros modernistas”. Secchin observa que é “a essa tendência que se filia o primeiro Vinicius, em 1933, com O caminho para a distância” (SECCHIN, 2008, p. 75-80).

Enquanto Augusto dos Anjos elaborava os mecanismos de sua poesia, o parnasianismo e o simbolismo já se haviam fixado como duas tendências atuantes. O poeta paraibano não abdicou do que as duas escolas poderiam contribuir para a sua expressão, embora tenha ido além. É em sua obra que podemos encontrar as primeiras inflexões que reorientam significativamente a poesia brasileira, quando a experiência concreta da vida e a desmistificação da realidade se impõem e se consolidam. Quanto à linguagem, Augusto cria um universo verbal influenciado pelas doutrinas que derivam do materialismo e do evolucionismo, fomentado ainda pelo rastro realista e pelas possibilidades poéticas descingidas por Baudelaire, Mallarmé e Rimbaud. Esse léxico muito particular normaliza composições com “antepassados vermiformes”, “elefantíases”, “encéfalo absconso”, “estados prodrômicos”, “húmus dos monturus”, “morfogênese”, “noumenalidade”, “órbita elipsoidal”, “óvulo infecundo”, “protozoários”, “psicogenética” etc. O poeta realiza dentro desse universo exótico uma obra de grande manuseio formal voltada muitas vezes para as matérias minúsculas ou microscópicas, para os seres ou objetos repugnantes ou mesmo para as enfermidades. Retira-se daí a representação impressionante e concertada dos temas mais elevados como a existência e a morte. Augusto dos Anjos é o nome mais importante do grotesco na lírica brasileira.



O cupim negro broca o âmago fino
Do teto. E traça trombas de elefantes
Com as circunvoluções extravagantes
Do seu complicadíssimo intestino



O lodo obscuro trepa-se nas portas.
Amontoadas em grossos feixes rijos,
As lagartixas, dos esconderijos,
Estão olhando aquelas coisas mortas!13

Sua expressão literária não busca escapar à experiência real, como analisa Ferreira Gullar; “ao contrário, procura concretizá-la, dar-lhe o peso e a contundência da vida”. No entanto, as ruínas “são também a imagem do abandono e da morte”. Augusto dos Anjos não exprime o passar do tempo, a decrepitude e a solidão “através de conceitos ou imagens histórico-literárias”; e sim “com os próprios elementos dessa ruína anônima e vulgar”. E então as lagartixas nos muros velhos do Nordeste são transformadas “em testemunhas da história, do trabalho destruidor do tempo” (GULLAR, 1976, p.23).

A vasta incidência do grotesco na poesia de Vinicius de Moraes jamais encontrou proporções semelhantes entre os demais grandes poetas brasileiros de sua fase, a qual se convencionou chamar de modernismo. Inicialmente, o grotesco viniciano surge em configuração onírica, simbólica, fantástica ou infernal. São cobras saindo do corpo de uma mulher, pés que penetram “a massa sequiosa das lesmas”, um “deus amarelo da imunda pomada”, um “mosquito gigante” que espalha o terror, borboletas que comem fezes verdes, faunos, anjos de toda a sorte etc. Em um segundo momento, já entre os versos maduros e prestigiados, o grotesco permanece, se não nos horrores hiperrealistas, exortado no folclore, na glutonaria ou na comicidade. Surgem cadáveres, mortos-vivos, fantasmas variados, um enterrado-vivo, a própria Morte personificada, quase todos os tipos de cânceres etc. A escatologia, os fisiologismos diversos e o baixo palavreado parecem cortar inteiramente todos os momentos de sua poesia. O grotesco pode assomar também no sarcasmo perante as convenções sociais mais graves.



Penteiem direito
Os cabelos do morto
E ajeitem-lhe o olho
Que está meio torto
Estiquem-lhe a pele
Com fita colante
Para que ele fique
Mais moço que antes.



— Que morto mais tosco!
— Que morto aberrante!14

Atento aos mecanismos que engendram o fazer poético, Vinicius faz de “Balada do mangue” uma mostra da utilização de proparoxítonas como recurso de realce à estranheza. Aliados a um vocabulário ao mesmo tempo baixo e biológico, podemos ouvir ecos de Augusto dos Anjos na balada viniciana: “Pobres flores gonocócicas/ Que à noite despetalais/ As vossas pétalas tóxicas!”.15 Lembremo-nos que a palavra esdrúxulo, adjetivo que utilizamos no mais das vezes com o sentido figurado, nominando o estranho ou o ridículo, é um termo gramatical sinônimo de proparoxítona. Candido, em um pequeno artigo sobre o poema — o qual afirma ser um “dos mais belos da literatura brasileira” —, chama a atenção para a maestria com que Vinicius dominou o verso e as suas técnicas, e que assim pôde “atualizar a tradição”. O crítico aponta a “Balada do mangue” como um exemplo dessa “modernização” que lhe permite “tratar com um toque de intemporalidade os temas aparentemente menos poéticos” (CANDIDO, 2008, p. 159-162). É o caso também de “Sob o trópico do câncer”, em que o poeta aproveita fonemas, ritmos e tonalidades para colaborar na construção de um ambiente repugnante.



Monstruosa tarântula, hediondo
Caranguejo incolor, fétida anêmona
Sai, Câncer!
Furbo anão de unhas sujas e roídas
Monstrengo sub-reptício, glabro homúnculo
Que empesteias as brancas madrugadas
Com teu suave mau cheiro de necrose16

Vinicius de Moraes é, do ponto de vista cronológico, o último entre os cinco nomes mais importantes do grotesco na lírica brasileira, incluindo Gregório de Matos, Bernardo Guimarães, Cruz e Sousa e Augusto dos Anjos. Esses poetas que enquadram o pentagrama do grotesco da poesia nacional podem viabilizar uma leitura histórica baseada em outra perspectiva; leitura que perpasse movimentos e concepções estéticas e revele, por meio da desordem e do anômalo, invenções e reinvenções de um conjunto plausível e profuso.

É feia a bomba atômica?

Reflexões sobre o tempo e a morte inspiradas em relógios e ampulhetas já não eram, desde muito, novidade na história da arte. Mas é no século XX que se inicia uma era definitiva quanto à estética industrial. As máquinas já não precisavam representar um padrão de beleza alheio a seus mecanismos como aquela de James Watt, que escondia sua funcionalidade com arremates de linha clássica. A partir de então, foram possíveis, além de produtos com uma estética atraente por si mesma, outros que traziam a ideia de uma estética essencial em que “a forma segue a função”, cuja beleza seria tanto maior quanto mais eles fossem capazes de “exibir a própria eficiência” (ECO, 2013, p.394). É interessante lembrar que, a respeito do lançamento de um novo citroën, Roland Barthes ofereceu aos automóveis o status de mito contemporâneo, comparando-os de início às grandes catedrais góticas: “uma grande criação de época, concebida apaixonadamente por artistas desconhecidos, consumida por sua imagem”. O novo carro seria o melhor mensageiro do sobrenatural porque nele haveria “perfeição e ausência de origem” e a “transformação da vida em matéria”. Barthes observou que outros modelos atinham-se mais “ao bestiário da potência” enquanto o Citroën D.S.17 foi “da alquimia da velocidade para a gula do ato de conduzir” (BARTHES, 2009, p. 152-4).

Filippo Tommaso Marinetti, em seu manifesto de 1910, L’uomo moltiplicato e il regno della macchina, sensualizou a relação de um maquinista com a sua locomotiva ao considerar os modos como efetua a limpeza de seu “gran corpo possente”. Seriam “le tenerezze minuziose e sapienti di un amanteche accarezzi la sua donna adorata”. O futurista italiano parte dessas imagens para explicar por que lhe pareceu absolutamente natural o fato de os organizadores da grande greve dos ferroviários não conseguirem induzir um único maquinista a sabotar sua máquina, “che tante volte aveva brillato di voluttà sotto la sua carezza lubrificante” (MARINETTI, 1968, p. 255-6). É muito característico na poesia de Vinicius de Moraes esse recurso que transforma ideias, coisas e lugares em figuras femininas, tornando-os antropomórficos e prestes a uma interação encarnada, apaixonada. No caso d’“A bomba atômica”, o poeta utiliza o que Marinetti chamava de inútil velharia poética, ou seja, símbolos tradicionais como “estrela vespertina”, para se reportar no entanto a um objeto desenvolvido no intuito do extermínio em massa.



Bomba atômica, eu te amo! és pequenina
E branca como a estrela verspertina18

Contrastes tão inconcebíveis talvez encontrem paralelo em algumas descrições de “Na colônia penal”, de Franz Kafka. Enquanto o objeto no poema de Vinicius é um veículo de genocídio, o do escritor tcheco, no conto, é um instrumento de tortura. As engrenagens do “rastelo” são por vezes descritas pelo oficial com um capricho muito particular. Sua admiração pelo aparelho é uma criatura grotesca: “Ele se posiciona automaticamente de tal forma que toca o corpo apenas com as pontas; quando o contato se realiza, este cabo de força fica imediatamente rígido”. E continua: “O não iniciado não nota por fora nenhuma diferença nas punições. O rastelo parece trabalhar de maneira uniforme”.19 Por outro lado, o eu-lírico viniciano quer conquistar com romantismo o objeto de destruição — para que ele não mais se opere: “Que emoção não me dá ver-te suspensa/ Sobre a massa que vive e se condensa/ Sob a luz! Anjo meu, fora preciso/ Matar, com tua graça e teu sorriso/ Para vencer?”. Nos dois casos o estranhamento se perfaz, não pelo rebaixamento de um objeto, mas pela elevação do horrendo em beleza possível.

Ao longo das três partes de “A bomba atômica”, a aparente desordem na disposição dos significados é extensa, ainda que, ao mesmo tempo, o conjunto seja eloquente e bem delimitado. Seu arcabouço técnico e imagético passa pelo emprego de aliterações, assonâncias, rimas, manuseio melódico e rítmico, polissemias, ambiguidades e referências externas. Eucanaã Ferraz, em artigo publicado na Revista Língua Portuguesa, afirma que “o poema desfaz limites de toda ordem” e discursos de diferentes tons estariam combinados; o vocabulário, por sua vez, seria heteróclito: “palavras oriundas de campos científicos vários (física, química, geometria, matemática, biologia), termos diretamente ligados às artes, e imagens e artifícios retóricos caros às poesias parnasiana e simbolista.” Observa ali “operações sutis” que levariam a uma atualização do potencial da língua, “como se vê nas alterações de pares mínimos que transformam a ‘bomba atômica’ em ‘pomba atônita’” (FERRAZ, 2008). O acordo inseparável entre forma e conteúdo n’“A bomba atômica” trabalha na expressão de uma heterogeneidade ostensiva. Além de constituir por meio dessas isomorfias e de recursos multifacetados uma bela representação do feio, o poema leva à pergunta sobre a beleza em si mesma do objeto representado; se ela poderia se dissociar inteiramente do corpo monstruoso por ele concebido.

Conclusão

Embora Vinicius de Moraes seja conclamado por sua poesia amorosa, sua obra possui, no entanto, outro lado, uma face bizarra e prolífica ainda pouco explorada pelos estudiosos. A tendência que muito de seus versos dispõe para o espectro do anômalo, do feio, do asqueroso, do putrefato é evidente e o torna, com a devida atenção, o maior herdeiro no século XX da poesia grotesca levada a efeito por Cruz e Sousa e Augusto dos Anjos. Essa tendência esbarra igualmente, outras vezes, no riso espontâneo do nonsense, da glutonaria, do escatológico e da incorreção.

A ideia de que Vinicius é um poeta do grotesco se fundamenta a partir de exames interessados nas numerosas e persistentes ocorrências da substância grotesca verificáveis ao longo de toda sua obra poética. Junto à leitura analítica de alguns dos poemas em que ela ocorre, é possível consultar um rol de teóricos que, direta ou indiretamente, contribuem de maneira decisiva para com os conceitos que a circundam. Reflexões estéticas que aproximam e contrastam textos de Bakhtin, Baudelaire, Burwick, Friedrich, Hugo, Kayser, Schiller, Schlegel e outros podem oferecer a linha condutora para uma análise que, porém, não prescinde da atenção majoritária sobre os poemas e os seus mecanismos particulares. Figuram entre tais alguns dos mais expressivos do poeta, como “História passional, Hollywood, Califórnia”, “Soneto de intimidade”, “Balada da moça do Miramar” e “Sob o trópico do câncer”.

Referências

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Notas

1 MORAES, Vinicius de. O escravo. Forma e exegese. Rio de Janeiro: Pongetti, 1935, pp. 102-103.
2 MORAES, Vinicius de. História passional, Hollywood, Califórnia. In: MORAES, Vinicius de. Antologia Poética. Rio de Janeiro: A Noite, 1954. p. 246-249.
3 MORAES, Vinicius de. Ariana, a mulher. Rio de Janeiro: Pongetti, 1936.
4 MORAES, Vinicius de. Soneto de intimidade. Novos poemas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. p.15.
5 MORAES, Vinicius de. Tanguinho macabro. In: MORAES, Vinicius de. Roteiro lírico e sentimental da cidade do Rio de Janeiro, e outros lugares por onde passou e se encantou o poeta. Apresentação e textos adic. por José Castello. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. p. 65-7.
6 MORAES, Vinicius de. Não comerei da alface a verde pétala... In: MORAES, Vinicius de. Para viver um grande amor. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1962. p.92.
7 MORAES, Vinicius de Soneto ao caju. Esparsos. In: MORAES, Vinicius de. Livro de Sonetos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. p.89.
8 MORAES, Vinicius de. Balada Feroz. In MORAES, Vinicius de Novos poemas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1938. p. 25-8.
9 MORAES, Vinicius de. Balada da moça do Miramar. In: MORAES, Vinicius de. Antologia poética. Rio de Janeiro: A Noite, 1954. p.2002001.
10 MATOS, Gregório de. Obra poética. Ed. de James Amado, prep. e notas de Emanuel de Araújo. Rio de Janeiro: Record, 1992. p.183.
11 Op. cit., p. 264-5.
12 CRUZ E SOUSA, João da. Tédio. Obra completa. Rio de Janeiro: Aguilar, 1961. p.114.
13 ANJOS, Augusto dos. Gemidos de arte. Toda a poesia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. p.113.
14 MORAES, Vinicius de. O pranteado. In: MORAES, Vinicius de. Poemas esparsos. Sel. e org. Eucanaã Ferraz. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 60-3.
15 MORAES, Vinicius de. Balada do Mangue. In: MORAES, Vinicius de. Poemas, sonetos e baladas: com 22 desenhos de Carlos Leão. São Paulo: Gaveta, 1946. p. 87-89.
16 MORAES, Vinicius de. Sob o trópico do câncer. In: MORAES, Vinicius de. Poemas esparsos. Sel. e org. Eucanaã Ferraz. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. p. 29-38.
17 Com a pronúncia de “D.S.”, no francês , faz-se Déesse (Deusa).
18 MORAES, Vinicius de. A bomba atômica. In: MORAES, Vinicius de. Antologia poética. Rio de Janeiro: A noite, 1954. p. 208-212.
19 KAFKA, F. Essencial Franz Kafka. Sel., intr. e trad. de Modesto Carone. São Paulo: Penguin Classics; Companhia das Letras, 2011. p.74.

Notas de autor

1 Doutorando em Literatura Brasileira pela UFRJ. Secretário Executivo da Superintendência Geral de Políticas Estudantis/Gabinete do Reitor (SuperEst/UFRJ) – Rio de Janeiro – Brasil. E-mail: danielgil@danielgil.com.br.
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