ARTIGOS ORIGINAIS

A ressignificação de direitos por meio da Rede protetiva de atendimento às mulheres em situação de violência em Viçosa, MG

The re-signification of rights through the Protection Network of care for women in situations of violence in Viçosa, Minas Gerais, Brazil

Paola Garcia Ferreira 1
Brasil
Douglas Mansur da Silva 2
Universidade Federal de Viçosa (UFV), Brasil

A ressignificação de direitos por meio da Rede protetiva de atendimento às mulheres em situação de violência em Viçosa, MG

Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 19, núm. 2, 2017

Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense

Este documento é protegido por Copyright ©2017 pelos Autores.

Recepción: 07 Diciembre 2016

Aprobación: 18 Agosto 2017

Resumo: O presente estudo tem por finalidade entender como se desenvolvem as concepções de identidade e violência para estudantes universitárias que prestam atendimento às mulheres em situação de vulnerabilidade, por meio do Programa Casa das Mulheres1 em Viçosa/MG, o qual é responsável pelo atendimento e encaminhamento por meio da Rede Protetiva de Enfrentamento da Violência contra as Mulheres no município. O trabalho busca também entender como a troca de saberes realizada entre elas (estudantes e mulheres atendidas) pode possibilitar um maior empoderamento de ambas as partes em relação ao conceito de violência.

Palavras-chave: Programa Casa das Mulheres, Mulheres, Violência, Empoderamento.

Abstract: The purpose of this study is to understand how the conceptions of identity and violence are developed for university students which care for women in situations of vulnerability, through the Programa Casa das Mulheres (Women's House Program) in the municipality of Viçosa, Minas Gerais, Brazil. This program is responsible for care and referral through the Protection Network to Combat Violence against Women in the city. This study also aims to verify how the exchange of knowledge between them (students and women served) can enable a greater empowerment of both parties in relation to the concept of violence.

Keywords: Programa Casa das Mulheres, Women, Violence, Empowerment.

1 Introdução

Violência, palavra usada para designar o uso de força física ou intimidação moral contra outro, substantivo feminino, que se traduz em diversas expressões de violência: física, sexual, patrimonial, psicológica, moral, entre outras, vivenciadas todos os dias por milhares de mulheres em todo o mundo. Bandeira & Almeida (2015) apresentam que, com base na Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência Contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), de 1994, a violência contra a mulher “envolve qualquer ação ou conduta baseada em seu gênero, que lhe cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual e psicológico, tanto na esfera privada como pública” (p. 510). Além disso, apresentam que a Convenção de Belém do Pará foi além ao contextualizar e ampliar a definição de violência, atentando-se para as relações de poder baseadas na condição de gênero.

Tal como exposto por Scott (1999), a construção do gênero é elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos. Esta é, portanto, uma ferramenta que fornece um meio de decodificar significados que nos possibilitam compreender as complexidades do mundo social por meio das conexões entre as várias formas de interação humana. O Gênero é também “uma forma primeira de significar as relações de poder” (p. 21). Para a autora, não se deve reduzir o uso da categoria gênero a um sistema de parentesco (quando o olhar se volta somente sobre a família e o universo doméstico como fundamento da organização social).

“Precisamos de uma visão mais ampla que inclua não só o parentesco, mas também (em particular, para as sociedades modernas complexas) o mercado de trabalho (um mercado de trabalho sexualmente segregado faz parte do processo de construção do gênero), a educação (as instituições de educação socialmente masculinas, não mistas ou mistas fazem parte do mesmo processo), o sistema político (o sufrágio masculino universal faz parte do processo de construção do gênero). Não tem muito sentido limitar estas instituições à sua utilidade funcional para os sistemas de parentesco ou sustentar que as relações contemporâneas entre homens e mulheres são produtos de sistemas anteriores de parentesco baseados nas trocas de mulheres. O gênero é construído através do parentesco, mas não exclusivamente; ele é construído igualmente na economia, na organização política e, pelo menos na nossa sociedade, opera atualmente de forma amplamente independente do parentesco (...). O gênero torna-se implicado na concepção e na construção do poder em si.” (SCOTT, 1999, p. 22).

Dentro deste contexto, o debate sobre o enfrentamento da violência contra as mulheres tem tomado espaço nos últimos anos, por meio de ações do movimento feminista e com os estudiosos das questões de gênero, trazendo à tona novas reflexões que fujam aos múltiplos discursos produtores e reprodutores de preconceitos e desigualdades, que acabam por reger as ações dos sujeitos em sociedade e que compõem as várias identidades de gênero. Desta forma, a temática passa a fazer parte de um debate mais amplo, que busca desnaturalizar ações que remetem a uma violência vivida no dia a dia por milhares de mulheres no mundo inteiro. Essa questão está também ligada a construções sociais e históricas e às formas de representação que são construídas sobre as características biológicas.

Percebe-se que, por mais que as mulheres estejam ocupando diversos espaços na sociedade, principalmente no que se refere ao âmbito público, ocupando também cargos que por meio dessa construção social do gênero são vistos como designações masculinas, ainda assim é recorrente o número de casos de violência vivenciados por mulheres todos os dias. E cada vez mais se tem pensado nisso e buscado políticas públicas que deem respaldo a essas mulheres em situação de vulnerabilidade. São diversas as campanhas de enfrentamento da violência contra as mulheres2, e cada vez mais os profissionais e parceiros que compõem a Rede3 formal de atendimento têm buscado ações que possibilitem o encaminhamento correto dessas pessoas por todas as instituições formais e informais que prestam esse tipo de socorro.

Dito isto, este estudo pretende analisar, por meio da perspectiva de estudantes universitárias que prestam atendimento a mulheres em situação de violência no Programa Casa das Mulheres, como as mulheres que são atendidas se percebem enquanto sujeitos políticos, e caso isto ocorra, de que forma se apropriam da luta do enfrentamento da violência contra as mulheres, refletindo sobre as atribuições simbólicas que são relacionadas por elas à temática da violência, tendo-se como objetivo central comparar como essas mulheres atendidas enxergam seus papéis em sociedade antes e depois do acompanhamento realizado pelo Programa Casa das Mulheres.

Para fins deste estudo, utilizou-se uma abordagem qualitativa, tomando como base uma lente sociológica, que visa a uma reflexão sob determinada ação social e seu contexto em sociedade. Neste sentido entende-se que a Sociologia designa-se “como uma ciência que visa compreender, interpretando-a, a ação social e, deste modo, explicá-la causalmente no seu decurso e nos seus efeitos” (WEBER, 2010, p. 7). É um estudo no qual se aplicam os métodos de revisão bibliográfica da análise documental e da coleta de dados, através de roteiros de entrevistas semiestruturados, visando a uma análise das narrativas das entrevistadas. A pesquisa qualitativa não procura enumerar e/ou medir os eventos estudados, parte de questões ou focos de interesses amplos, que vão se definindo à medida que o estudo se desenvolve, por meio da obtenção de dados descritivos sobre pessoas, lugares e processos interativos pelo contato direto do pesquisador com a situação estudada, procurando compreender os fenômenos segundo a perspectiva dos sujeitos, ou seja, dos participantes da situação em estudo (GODOY, 1995).

O campo empírico onde se desenvolveu o trabalho foi o município de Viçosa/ MG, com o público participante sendo composto por jovens estudantes universitárias que prestam atendimento a mulheres em situação de violência, por meio do Programa Casa das Mulheres. O método de coleta de dados constou de perguntas objetivas e também discursivas no intuito de captar o máximo possível de opiniões, ideias e situações cotidianas vividas pelas entrevistadas, deixando aflorar tudo o que o público considera pertinente em relação à temática aqui trabalhada, visto que, no que se refere à pesquisa qualitativa, os pesquisadores estão preocupados com o processo e não apenas com os resultados ou com o produto. O interesse ancora-se em verificar como determinado fenômeno se manifesta nas atividades, procedimentos e interações diárias. Entendendo assim o comportamento humano por meio de uma compreensão do quadro referencial (estrutura) dentro do qual os indivíduos interpretam seus pensamentos, sentimentos e ações (GODOY, 1995).

Sendo assim, após essa primeira etapa, realizou-se uma análise de conteúdo, tomando como palavras-chaves aquelas que apareceram repetidamente nos discursos das entrevistadas, separando-as por meio de critérios que englobem aquelas que contenham intercessões e por meio de ideias principais visualizadas, configurando os elementos que compõem as representações sociais das estudantes universitárias sobre as formas de apropriação e ressignificação de práticas de mulheres em situação de violência.

Partindo dessa premissa, é importante entender qual o papel social de cada um e que tipos de representações apresentam. A análise do discurso realizada na pesquisa busca trabalhar as intenções que estão por trás do conteúdo e criar uma grade de positivo e negativo e palavras que servem como feixe e se encaixam. Busca também investigar a percepção das que se encontram entre o positivo e o negativo, em um meio termo. Entender o contexto em que se situa a pesquisa é crucial, pois, por mais que as pessoas pensem as mesmas coisas, muitas vezes as palavras não possuem o mesmo conceito.

2 O Programa Casa das Mulheres, Viçosa/MG

O Programa Casa das Mulheres é resultante de um conjunto de ações voltadas para o enfrentamento da violência contra as mulheres na microrregião de Viçosa. Construído pelo Conselho Municipal de Direitos da Mulher de Viçosa em 2009 e tendo como referência os Estudos Feministas e o Plano Nacional de Políticas para Mulheres, tais ações envolvem: i) orientação e atendimento de mulheres em situação de violência em Viçosa, em parceria com a Defensoria Pública, a Delegacia de Polícia Civil, Polícia Militar, Centro Viva a Vida, Unidades Básicas de Saúde do PSF, Hospitais, Centro de Referência de Assistência Social - CRAS, Centro de Referência Especializado de Assistência Social - CREAS, ALANON e Secretaria Municipal de Ação Social; ii) construção de banco de dados sobre o mapa da violência em Viçosa em parceria com a Delegacia de Polícia Civil, Serviço de Vigilância Epidemiológica e Comitê Municipal de Prevenção ao Óbito Materno, Fetal e Infantil; iii) articulação regional do Programa em outros 11 municípios da região; iv) atividades de educação sobre violência de gênero e Lei Maria da Penha através de oficinas, reuniões institucionais e seminários regionais anuais; v) atividades pedagógicas e educativas junto a escolas de Viçosa sobre violência de gênero e violência contra a mulher; vi) educação e capacitação sobre a notificação de violência doméstica contra a mulher nas Unidades de Saúde nos municípios vinculados à Gerência Regional de Saúde de Viçosa e Ponte Nova; vii) produção de materiais informativos impressos; viii) produção de programas de rádio e de TV sobre Redes de Enfrentamento da Violência contra a Mulher; ix) atividades de mobilização através de Teatro de Rua e panfletagens militantes; x) discussão e proposição de políticas para mulheres através do Conselho Municipal de Direitos da Mulher de Viçosa e da Câmara Municipal de Viçosa; xi) desenvolvimento de pesquisas sobre Lei Maria da Penha, práticas pedagógicas e educativas sobre gênero e violência, políticas e práticas em educação e saúde, indícios do feminicídio na microrregião de Viçosa; xii) construção de um programa de enfrentamento de violência de gênero na Universidade Federal de Viçosa; xiii) formação de agentes comunitárias de enfrentamento da violência contra a mulher em Viçosa. O Programa Casa das Mulheres tem financiamento do CNPq, FAPEMIG, CAPES, PROEXT/MEC, PET/Vigilância em Saúde/MS, Ministério das Cidades, PIBEX/UFV e Prefeitura Municipal de Viçosa.4

3 Os atendimentos, encaminhamentos e ressignificação das identidades de mulheres em situação de violência

Para a realização desta pesquisa, participaram no total cinco (5) jovens estudantes universitárias do curso de direito da Universidade Federal de Viçosa (UFV) entre o quarto (4º) e o décimo segundo (12º) período, dentre as nove (9) meninas que prestam atendimento por meio do Programa Casa das Mulheres, vigente em Viçosa. As demais não se manifestaram para a participação e composição dos dados. A importância das informações extraídas sobre as estudantes quanto à formação das mesmas consiste justamente por ser esse o meio de acesso ao Programa, que hoje pode ser avaliado pelo curso de graduação em direito como estágio obrigatório, dando oportunidade assim para que se tornem bolsistas/estagiárias da Casa e tenham acesso à temática da violência vivenciada pelas mulheres. A idade das mesmas variou entre dezenove (19) e vinte e sete (27) anos. Todas se situam na zona urbana da cidade e são solteiras. Cabe ressaltar que a classificação de gênero (masculino e feminino) e residência (rural ou urbano), partiu da autodeclaração das próprias estudantes.

Coletar informações sobre o local de moradia (urbano ou rural) do público deste trabalho é importante, por considerar que os modos de vida rural trazem consigo especificidades no que se refere à temática do enfrentamento da violência contra as mulheres. Considerando as condições em que vivem as mulheres rurais, com pouco acesso a serviços e informações e relativo isolamento, é de se esperar que a exposição delas a tais riscos (violências) seja agravada. Além disso, se o enfrentamento da violência contra as mulheres já é difícil nas cidades, onde instituições públicas e privadas podem ser acionadas para cuidados, abrigos e proteções, para as mulheres do campo e da floresta, esses caminhos praticamente não existem. Neste contexto, em 2007 foi criado o Fórum Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres do Campo e da Floresta, justamente com o objetivo de promover o debate entre sociedades civis e representantes governamentais sobre o tema, de modo a ampliar o alcance das políticas públicas e adequá-las às realidades locais (IPEA, 2013).

Neste tópico buscou-se associar, comparar e contrapor a formação tanto das estudantes quanto das mulheres atendidas pelo Programa, após parceria com a Casa das Mulheres, entendendo que o processo de formação dessas estudantes se dá ao mesmo tempo que ocorre o processo de apropriação e empoderamento das mulheres em situação de violência. A ótica aqui apresentada é justamente a das estudantes universitárias – especialmente o olhar delas sobre as mulheres às quais prestam atendimento, pensando que em grande parte a perspectiva dos sujeitos em relação aos outros se mistura muitas vezes às próprias experiências e conhecimentos.

Algumas das questões constitutivas para coleta de dados baseavam-se em saber qual era o contato das estudantes com a temática de gênero e violência antes do trabalho na Casa e, caso ocorresse, por quais meios elas tinham contato com o assunto. Todas disseram ser baixo (3) ou muito baixo (2), e os meios de comunicação pelos quais mais tinham acesso à temática por ordem prioritária dentre as opções disponíveis era: internet (5), amigos (4), TV (2), família (2). O nível de conhecimento das estagiárias sobre o assunto, provavelmente decorrente do pouco contato com o tema, também foi classificado por elas mesmas como muito baixo (2), baixo (1), médio (1) e apenas uma classificou o conhecimento sobre o tema como alto (1). Em contrapartida, disseram ser alto o conhecimento adquirido por meio do trabalho desenvolvido dentro do Programa. Essas questões justificam, além de tudo, a importância de realização do trabalho, entendendo que até então as atividades desenvolvidas na Casa parecem ter contribuído de forma significativa para uma transformação no entendimento do que seja a violência de gênero e mais especificamente violência contra as mulheres, aumentando também a percepção das estudantes para identificar os processos de apropriação por parte das mulheres atendidas, vítimas de violência.

As entrevistadas, por meio do conhecimento adquirido pelo trabalho como bolsistas/estagiárias do Programa, não só conseguiram prestar atendimento a mulheres em situação de violência como também passaram a identificar violências sofridas por elas mesmas. Todas disseram já ter sofrido algum tipo de violência por ser mulher além de terem identificado o tipo de violência sofrida, sendo mais evocadas a violência verbal (5), moral (3), psicológica (2), física (1) e sexual (1). Partindo do número de entrevistadas, é claro perceber que todas já sofreram vários tipos de violência, principalmente a violência verbal, como já foi apresentado.

O reflexo que gera tantas violências diárias pode ser entendido por meio da contribuição de Scott (1999), a qual aponta que “uma afirmação de controle ou de força tomou a forma de uma política sobre as mulheres, sendo as diferenças sexuais concebidas em termos de dominação e de controle das mulheres.” (p. 26). A autora diz ainda que “as estruturas hierárquicas baseiam-se em compreensões generalizadas da relação pretensamente natural entre o masculino e o feminino”. (p. 26)

Resume-se, portanto, que as complexas relações de poder se traduzem em violências sobre os grupos que são hierarquicamente inferiorizados e que o conceito de gênero atua como lente de análise para as relações, sejam elas quais forem que se desenvolvem socialmente, entendendo-se que as relações de gênero são construídas no decorrer de nossa existência, onde (re)criamos muitas diferenças e desigualdades. Desse modo não nascemos com características específicas; estas são produzidas. São construídas a partir das diferenças sexuais, não sendo, portanto, naturais e sim criações da sociedade. Por ser uma construção social, o gênero dependerá dos valores e experiências das pessoas, variando de acordo com a época e os lugares, sofrendo variações de acordo com a religião, as leis, a organização da vida familiar e a vida política de cada sociedade ao longo da história (GOUVEIA; CAMURÇA, 1997, p. 8).

Por meio dos depoimentos aqui apresentados, percebe-se que a experiência de vida de umas (mulheres em situação de vulnerabilidade) se mistura a vivências de outras (estudantes universitárias que prestam atendimento). E em relação às vítimas de violência e por meio das falas abaixo, que vieram como resposta sobre a percepção do próprio conceito de violência para estas mulheres após o início do atendimento pelo Programa, torna-se possível identificar as mudanças de percepções.

Na Casa das Mulheres, procura-se deixar claro, em cada atendimento, os vários tipos de violência que existem, além da violência física. Dessa forma, é comum que muitas mulheres só procurem atendimento após uma agressão física mais violenta do companheiro/a, no entanto, elas percebem, no decorrer do acompanhamento do caso, que o companheiro levantar a voz para elas já é uma violência, é uma intimidação. A ameaça é uma violência, assim como as agressões verbais que ofendem a honra da mulher. (Estudante universitária, 21 anos, urbana, católica e espírita).

Esta “invenção” de novas perspectivas na vida de mulheres que sofrem violência e que recebem atendimento e encaminhamento por meio do Programa Casa das Mulheres traz impactos também no que se refere aos relacionamentos e às interações diárias.

Elas passam a ser mais conscientes das violências e menos suscetíveis a elas. Apesar disso, infelizmente já tivemos casos de mulheres que retornaram à Casa, sofrendo violência com um novo parceiro. (Estudante universitária, 23 anos, urbana, sem religião).

Muitas perdem o medo diante de instituições como a Delegacia e solicitam seus direitos prontamente e se não são atendidas buscam ajuda ou reclamam por atendimento. Algumas se voltam para a criação dos filhos, outras arranjam novos parceiros – mas já falando que não aceitarão de novo aquele tipo de tratamento que recebiam antes –, mas é certo que muitas ficam mais seguras de si e conseguem lidar melhor com situações de enfrentamento. (Estudante universitária, 27 anos, urbana, sem religião).

A reflexão trazida por meio desses depoimentos, que inicialmente demonstram uma alteração no pensamento e comportamento das mulheres após serem atendidas pelo Programa, faz pensar por que só após o encaminhamento na Casa, feito pelas estudantes em relação a essas mulheres vulneráveis, é que muitas se atentam para as violências vividas e também para as formas de enfrentamento. Saffiotti (2001) ajuda a entender essa questão ao apresentar que a importância de se analisar por meio da ótica do gênero a situação de violência vivida por tantas mulheres consiste no fato de que “o poder masculino atravessa todas as relações sociais, transforma-se em algo objetivo, traduzindo-se em estruturas hierarquizadas, em objetos, em senso comum” (SAFFIOTI, 2001, p. 119).

Ainda assim, por mais que essa violência contra as mulheres aconteça de forma naturalizada, confundindo até mesmo as próprias mulheres, elas encontram resistências em maior ou menor grau contra essa hierarquia opressora, ou seja, apesar de serem vítimas dessas violências, possuem estratégias e resistências em seus diversos âmbitos de convívio social. Ao mesmo tempo são vítimas pelo fato de apenas os excessos contra a integridade e dignidade das mesmas serem considerados crimes penais, ou seja, a violência é justificada dentro do padrão de hierarquia opressor masculino em que se encontra nossa sociedade. Admitir que as mulheres possuem estratégias e resistências é importante por possibilitar mudanças nos padrões então impostos, sendo que “na posição vitimista não há espaço para se ressignificarem as relações de poder” (SAFIOTTI, 2001, p. 20).

Ao serem questionadas sobre o grupo social em que a mulher é mais respeitada dentre as opções como família, justiça, trabalho, solicitação de serviços e instituições públicas, elas disseram ser no trabalho (1), na justiça (1) ou em nenhuma das alternativas (3). Em contrapartida, em relação ao lugar onde a mulher é mais desrespeitada, o trabalho foi evocado por duas vezes e todas as alternativas já citadas acima foram marcadas ao menos uma vez. Isso possibilita pensar nos espaços de sociabilidade e onde se desenvolvem as diversas relações de poder. A economia, assim como o trabalho, estão marcados, pela dimensão cultural devido aos valores que são atribuídos às coisas. Existe uma grande relevância simbólica na cultura, e a construção do poder hegemônico que respalda ações patriarcalistas se dá por meio da culturalização da política. A composição de políticas governamentais que possibilitem a inserção de temas como feminismo, necessita justamente pensar um processo contrário a essa culturalização política e pensálo justamente por meio de um viés histórico. Isso é importante para não se demarcarem as diferenças – pois ocorre a inserção, mas não a inclusão da mulher no âmbito público (trabalho) – e sim perceberem-se as dinâmicas culturais, pois, por mais que as características culturais sejam engessadas aos sujeitos, não necessariamente as ações e discursos são sempre hegemônicos e padronizados (SAHLINS, 1997). “Na constituição de mulheres e homens, ainda que nem sempre de forma evidente e consciente, há um investimento continuado e produtivo dos próprios sujeitos na determinação de suas formas de ser ou ‘jeitos de viver’ seu gênero” (LOURO, 2000, p. 16).

Além das discriminações vivenciadas nos espaços públicos, os relatos são pontuais acerca da estigmatização sofrida por essas mulheres nos grupos de convívio social. As estudantes disseram ser muito recorrente e, quando isso não acontece, é devido ao fato de a mulher esconder a violência vivida.

A violência geralmente acontece no ambiente doméstico de forma que os grupos de convívio das vítimas não ficam sabendo da situação pela qual elas passam. (Estudante universitária, 21 anos, urbana, católica e espírita).

Com certeza, a imensa maioria delas sofre preconceito. Algumas por parte da família ou do círculo religioso, quando esses dizem que se ela “apanha” é porque está fazendo algo errado. Outras sofrem pelos vizinhos e conhecidos, quando a chamam de “mulher de malandro” porque “gosta de apanhar”. Até as que sofreram violência sexual por desconhecido são estigmatizadas, porque as pessoas costumam questionar a veracidade da violência, costumam culpar a vítima por algum comportamento que teria induzido ou “autorizado” a violência, como estar bêbada ou usando roupas curtas. (Estudante universitária, 23 anos, urbana, sem religião).

Com certeza, são estigmatizadas inclusive por suas famílias, são consideradas “vagabundas”, que continuam a ser violentadas porque gostam ou porque são “sem-vergonhas”; algumas famílias ainda se negam a acreditar na mulher e há os que deem razão à violência sofrida porque isso faria parte de “ser mulher”. Até mesmo mulheres que sofrem violência julgam outras na mesma situação, é algo bem difícil de lidar, ainda mais quando é a família e esta exerce pressão negativa durante o processo de superação da violência. (Estudante universitária, 27 anos, urbana, sem religião).

A violência, portanto, culmina muitas vezes em uma inversão ideológica, inversão esta que naturaliza a violência e traz à tona, como menciona Chauí (1980), a pior das violências, “aquela que afirma a culpa da vítima (o pobre que é pobre porque não trabalha, ou, se trabalha, porque não poupa; a favelada mãe irresponsável que não dispensou à criança os devidos cuidados de higiene e de alimentação; a menina estuprada vista como provocadora e prostituta em potencial [...]” (CHAUÍ, 1980).

É interessante ressaltar que os espaços de discussão da temática não são vivenciados apenas no local de atendimento e encaminhamento, as estudantes que prestam atendimento se veem dentro de um contexto mais amplo que não se limita aos espaços de socialização do atendimento dentro do Programa Casa das Mulheres e buscam ressignificar seus diversos espaços de vivências:

“Costumo discutir essa temática com pessoas próximas, a maioria ligada à universidade, em ocasiões casuais; com grupos de amigos; com meu namorado; como estagiária da Casa, discuto quase diariamente esse assunto com minhas colegas de trabalho; às vezes em festas, mesmo quando desconheço as pessoas com quem estou falando [...] Acho que depois que se trabalha com isso, fica impossível, quando se nota certos discursos sendo reproduzidos, ou quando se vê a violência contra a mulher em ação se calar diante da situação. Como ponto positivo dessa tentativa de conscientização e abertura de espaço para visibilidade desse tema, considero como muitas amigas começaram a identificar abusos nas relações pessoais e a não mais se calar diante disso, o empoderamento crescente delas é espantoso, tal qual eu fiquei espantada com minha mudança pós-trabalho na Casa[...] Entretanto, os pontos negativos ainda são muitos: ser calada; escutar xingamentos por defender a necessidade de políticas públicas para a mulher; pessoas (em sua maioria, homens) se utilizarem fortemente de argumentos de mulher apanha porque gosta/porque é burra/porque mereceu são incrivelmente altos ainda[...]O feminismo irrita muito aqueles que não sabem exatamente do que se trata, ou não querem saber[...]”. (Estudante universitária, 27 anos, urbana, sem religião).

Dentro deste contexto em que se situa a pesquisa, a cultura faz parte de um processo crucial, pois apresenta a concepção de mundo em disputa, em negociação, ela tem o importante papel de mapear quais são os projetos em disputa em uma determinada sociedade, quais são os debates e as principais questões do nosso tempo. O depoimento citado acima mostra que a opressão por parte de uma hegemonia é muito presente, principalmente porque parte da figura masculina que obtém uma legitimação de poder sobre o feminino devido às atribuições simbólicas dadas sobre o sexo biológico. Além disso, a discussão do tema em outros espaços possibilita que a estudante aja enquanto sujeito mediador neste processo. É uma adesão transformadora que parte de si para os outros. A importância desses outros espaços de socialização consiste, portanto, justamente em se tratar de um campo de construção coletiva. Essas estudantes encontram na família, na roda de amigos, seus espaços de representação articulando interesses pessoais em torno de um coletivo, estabelecendo ao mesmo tempo o Estado e a Sociedade civil como espaço de luta e lugar de representação (GRAMSCI, 1978).

[...] onde mais consigo discutir sobre gênero e violência contra a mulher é com minhas amigas e tento ao máximo fazer na minha casa, com minha mãe, minha irmã, meu irmão, meu namorado e meus primos. Na família é mais difícil, por conta do tradicionalismo, mas sigo tentando porque é na família. (Estudante universitária, 24 anos, urbana, sem religião).

Saffioti (2001), em um trabalho que busca estabelecer distinções viáveis entre diferentes modalidades da violência de gênero, define a mesma como um conceito mais amplo que abrange vítimas mulheres, crianças e adolescentes de ambos os sexos, para ela os homens detêm poder em determinar condutas das categorias sociais nomeadas graças ao seu exercício da função patriarcal que tolera as ações violentas.

“A execução do projeto de dominação-exploração da categoria social homens exige que sua capacidade de mando seja auxiliada pela violência (...). As mulheres como categoria social não tem, contudo, um projeto de dominação-exploração dos homens. E isto faz uma gigantesca diferença”. (SAFFIOTI, 2001, p. 115-116)

Isso ajuda a entender questão já mencionada anteriormente, sobre as barreiras que dificultam um maior empoderamento das mulheres antes de vivenciarem situações extremas de violência que as levam a procurar medidas cabíveis do Programa Casa das Mulheres. As estudantes apresentaram que apesar desse empecilho em se perceber com facilidade as violências vividas, a ressignificação acontece por parte das mulheres vítimas de violência, principalmente no que se refere aos papéis5 sociais de gênero:

A própria Casa das Mulheres tem papel ativo nessa mudança dos papéis sociais, ao oferecer, por exemplo, cursos de capacitação das mulheres em tarefas consideradas como masculinas pela sociedade. Um exemplo é o curso de capacitação em engenharia civil oferecido pela Casa das Mulheres em parceria com o Dpto. De Engenharia Civil da UFV, no segundo semestre do ano passado. (Estudante universitária, 21 anos, urbana, católica, espírita).

Algumas (mulheres) chegam à Casa das Mulheres, declarando serem totalmente dependentes financeiramente dos maridos/companheiros. Ao quebrar o ciclo da violência e afastadas dos agressores, elas precisam garantir sua autonomia e subsistência, e passam a ser também chefes de família. A Casa das Mulheres também tenta impedir a imposição desses papéis sociais de gênero, e nesse intuito, forneceu esse ano um curso de capacitação em construção civil para as assistidas, com o objetivo de auxiliá-las a melhorar a renda e ir ganhando espaço em áreas pouco ocupadas por mulheres. (Estudante universitária, 23 anos, urbana, sem religião).

Neste sentido, percebe-se uma quebra com a dominação masculina até então vigente na vida dessas mulheres. Desnaturalizar ações que validam essa dominação é importante para que as mulheres antes de tudo consigam situar-se como dominadas para entender de que forma se estabelece essa relação e partindo daí possam encontrar-se enquanto sujeitos ativos dentro deste processo, pois como apresenta Weber (1999):

Chamamos “dominação” a probabilidade de encontrar obediência para ordens específicas (ou todas) dentro de determinado grupo de pessoas. Não significa, portanto, toda espécie de possibilidade de exercer “poder” ou “influência” sobre outras pessoas. Em cada caso individual, a dominação (“autoridade”) assim definida pode basear-se nos mais diversos motivos de submissão: desde o hábito inconsciente até considerações puramente racionais, referentes afins. Certo mínimo de vontade de obedecer, isto é, de interesse (externo ou interno), na obediência, faz parte de toda relação autêntica de dominação (WEBER, 1999, p. 139).

A violência simbólica é muitas vezes compartilhada pelo próprio dominado, daí a importância de se pensar esse processo de ressignificação por meio também da formação das estudantes junto à formação das mulheres vítimas de violência, processo esse que fica claro por meio dos discursos. Mas é de crucial importância refletir sobre a dinâmica deste processo para entender o que configura este sistema de ressignificação dentro do contexto em questão, pensando o que está em jogo para cada uma delas, focando nos estudos dos conflitos e concepções de mundo, pensando na violência simbólica legítima para identificar profundamente se essas pessoas se identificam com a causa e se empoderam sobre o tema por meio de suas falas em virtude da percepção que tem de si mesmas dentro deste contexto, ou se percebem assim porque os outros a veem desta forma após o início do trabalho que inclui uma formação contínua dentro do Programa Casa das Mulheres (BOURDIEU, 2006; ELIAS, [s. d.]).

Me enxergo como uma pessoa mais dedicada a lutar pelos direitos das mulheres e me enxergo como uma mulher mais empoderada. Além disso, me entendo como uma mulher negra que precisa lutar pelos direitos das mulheres e principalmente das mulheres negras que são as principais vítimas da violência no Brasil. (Estudante universitária, 24 anos, urbana, sem religião).

Um traço interessante acerca dessa narrativa diz respeito à adesão da luta enquanto reconhecimento de associação por meio do enegrecimento da causa. Para Simmel (2007), a sociedade toma forma a partir do momento em que os atores sociais criam relações de interdependência ou estabelecem contatos ou interações sociais de reciprocidade. Assim, o ponto crucial deste trabalho não é apenas a vida de cada mulher vítima de violência, mas como são associadas pelas estudantes às próprias experiências de vida e como se associam enquanto grupo.

Representa uma superação de mim mesma em relação aos meus preconceitos e machismos incutidos em mim por tanto tempo, além da possibilidade de oferecer apoio a mulheres que precisam de orientação ou simplesmente de um ouvido atento à sua história e ao mesmo tempo que não a julgue por ter passado isso. (Estudante universitária, 27 anos, urbana, sem religião).

Nada nunca tinha me feito crescer tanto. O que eu aprendo na Casa não tem preço, ela desatou o nó da venda que me colocaram, no tocante ao SER MULHER. (Estudante universitária, 19 anos, urbana, católica).

A duração do processo e a transformação variam muito de mulher para mulher, mas, de modo geral, percebemos que as mulheres passam a ter mais autonomia pra gerir a própria vida e a dos filhos, elas ficam mais vaidosas, mais fortes e mais felizes, a partir do momento que se livram da violência. (Estudante universitária, 23 anos, urbana, sem religião). Com certeza, tenho casos maravilhosos de mulheres que começaram a se perceber como pessoas de valor quando antes consideravam que homens seriam mais valorosos ou inteligentes. Em geral, percebemos isso ao longo dos atendimentos, a mulher chega bastante insegura e com a aparência de cansaço e de pouco cuidado consigo mesma, pois ela já não se dá muito valor e respeito pela situação que vive, durante a caminhada, vemos ela mudando de postura, de tom de voz, de vestimenta e até de corte de cabelo, depois algumas voltam para agradecer ou para acompanhar processos mas já certas de seus direitos e de suas qualidades, soltam frases que quando compartilhamos em reuniões nos deixam emocionadas. (Estudante universitária, 27 anos, urbana, sem religião).

Ao serem questionadas sobre qual classe mais procura o atendimento por meio do Programa, as opiniões ficaram divididas. Duas (2) disseram atender um índice maior de mulheres de classe baixa, duas (2) de classe alta e uma das entrevistadas disse que o atendimento é solicitado por mulheres de todas as classes. Além disso, no que se refere ao nível de escolaridade, percebeu-se uma grande variação, sendo atendidas em número recorrente tanto mulheres que não estudaram além dos níveis fundamental ou médio, quanto mulheres analfabetas, alunas de graduação e mulheres com nível superior completo.

“Varia bastante, pois a violência alcança todas as classes sociais, níveis econômicos e escolaridade. Já atendi professoras universitárias, mulheres de professores, mulheres formadas no ensino superior. Mas a maioria são mulheres entre formação no ensino médio e fundamental.” (Estudante universitária, 24 anos, urbana, sem religião).

O II Plano Nacional de Políticas para mulheres prevê que:

Primeiramente, é preciso garantir que meninos e meninas, homens e mulheres, tenham o mesmo acesso à educação de qualidade, e recebam tratamento igualitário das instituições e profissionais envolvidas nos processos educacionais formais. Em segundo lugar, para garantir que todas as mulheres sejam respeitadas em seu direito à educação, há que ser combatida não apenas a discriminação de gênero, mas todas as outras formas de discriminação – geracional, étnico-racial, por orientação sexual, pessoas com deficiência, entre outras – que as afetam e interferem não apenas no acesso, mas também no seu desempenho escolar. Por fim, mas não menos importante, por seu próprio objeto a política educacional tem papel fundamental a desempenhar na mudança cultural necessária para que a sociedade brasileira seja de fato igualitária (BRASIL, 2008, p. 53).

Saber que a violência atinge diversas mulheres, independente da classe, não impede que se pense a respeito da importância da igualdade ao acesso à educação, pois se entende que por meio desta se encontra também o acesso à informação e aos mecanismos que possibilitem acesso à justiça. Se analisarmos outros aspectos que não se limitem apenas à classe social e à escolaridade, temos também que as mulheres atendidas são em sua maioria negras (4), a procura por mulheres da zona rural é média (2) e por mulheres homossexuais é muito baixa (4) ou não procuram por atendimento (1).

Furlani (1993) apresenta de forma clara o reflexo desse índice de violência acentuado na cultura negra:

O contexto atual das discussões de gênero, de sexualidade e relações étnico-culturais pode ser compreendido como constituído pelas mudanças sociais e teóricas, ocorridas no mundo Ocidental, nos últimos anos. Essas mudanças foram proporcionadas especialmente, pelas contribuições oriundas de movimentos políticos de contestação da dita “normalidade” (especialmente os movimentos de mulheres e os feminismos, os movimentos de gays, lésbicas, travestis, transexuais, os movimentos em prol das crianças e adolescentes e os movimentos raciais e étnicos). Hoje, as representações que as históricas “minorias” assumem no contexto social são resultantes da visibilidade conquistada, nos discursos dominantes, nas várias instituições sociais, nos currículos escolares, nas políticas públicas, como também, nas representações oriundas do interior dos seus movimentos. No entanto, nem sempre essas representações foram ou são convergentes. Desiguais relações de poder estabelecem, numa dada sociedade, os padrões de normalidade hegemônicos que marcam as identidades consideradas ‘normais’, permitidas, autorizadas. Os movimentos sociais, no contexto cultural de disputas por representação, buscam, constantemente, contestar essa normalidade – e a isso é dado o nome de políticas de identidade. Nesse quadro de resistência e contestação, a representação adquire importância ainda maior para as identidades subordinadas, especialmente quando o movimento organizado, (em ONGs principalmente) estabelece um processo de se autorrepresentar (FURLANI, 1993, p. 7).

Para Chauí (1980):

[...] o racismo é uma ideologia das classes dominantes e dirigentes, interiorizada pelo restante da sociedade. Ora, o fato de que no Brasil não tenha havido uma legislação apartheid, nem formas de discriminação como as existentes nos Estados Unidos, e que tenha havido miscigenação em larga escala, faz supor que, entre nós, não há racismo. O fato de que tenha sido necessária a promulgação da Lei Afonso Arinos e que o racismo tenha sido incluído pela Constituição de 1988 entre os crimes hediondos, deve levar-nos a tratar a suposição da inexistência do racismo num contexto mais amplo, qual seja, no de um mito poderoso, o da não violência brasileira. Trata-se da imagem de um povo ordeiro, pacífico, generoso, alegre, sensual, solidário que desconhece o racismo, o sexismo, o machismo e o preconceito de classe, que respeita as diferenças étnicas, religiosas e políticas, não discrimina as pessoas por sua posição econômico-social nem por suas escolhas sexuais, etc. (CHAUÍ, 1980).

Dizer que a pouca procura por atendimento por parte da população rural é em virtude do pouco índice de violência na zona rural seria um equívoco. A sociedade rural é também pautada em bases patriarcais, nas quais a mulher, apesar de contribuir inclusive para a geração de renda nesses espaços, é vista apenas como uma ajudante e enclausurada ao âmbito privado, além de não possuir renda própria senão por meio da aposentadoria, e nem mesmo direito a terra por herança, privilégio dos homens.

Ao relatarem sobre o empoderamento das mulheres em situação de vulnerabilidade contrastando questões como classe, cultura étnico-racial e espaço de moradia (rural/urbano), as estudantes dizem que:

Existe um recorte de acordo com o que elas conseguem adaptar às suas realidades, se há uma abertura social maior, mais livres elas ficam, do contrário, se apropriam da forma como podem e que não ofenda seus princípios ou modo de vida. Há ainda uma dificuldade com relação a essas diferenciações que é como os outros indivíduos se portam diante do empoderamento dessas mulheres, as brancas, com maior nível de escolaridade e da zona urbana continuam mais bem atendidas em ambientes como a Delegacia, já as negras, de origem pobre/rural não tem essa facilidade e demoram mais a se apropriar de sua nova imagem e de seus direitos por dificuldades impostas pelo ambiente externo. (Estudante universitária, 27 anos, urbana, sem religião).

Nunca reparei sob essa perspectiva, mas geralmente as pessoas com baixa escolaridade e que residem na zona rural tendem a ser menos questionadoras, e simplesmente aceitam muito do que lhe é dito. (Estudante universitária, 21 anos, urbana, católica, espírita).

Carneiro (1994) chama atenção para o fato de que “[...] para as mulheres rurais, a construção da identidade de trabalhadora rural passa pelo reconhecimento da importância do seu papel como reprodutora da família e como produtora de bens de valores simbólicos e culturais [...]”. Diz que, portanto, “o que ao mesmo tempo é sua principal característica agregadora também favorece um modelo de família com um chefe que organiza a produção e decide sobre as outras fases, e um grupo de sujeitos subordinados a esta lógica e que naturaliza a divisão sexual do trabalho e as relações de opressão em que ela se estabelece.”

Outros aspectos também foram extraídos das falas das estudantes, como as mudanças em relação à percepção de beleza que as mulheres têm de si mesmas após o atendimento no Programa:

Geralmente antes elas não têm autoestima elevada, não se cuidam, não cuidam do vestir e nem dos cabelos e costumam falar baixo. Quando elas rompem o laço da violência costumam se apegar a beleza física delas e procuram se colocar mais em suas falas e atitudes. (Estudante universitária, 24 anos, urbana, sem religião).

Algumas mudam o cabelo (pintam, colocam aplique) durante o processo e se mostram mais vaidosas. É interessante a manifestação do processo de luta contra a violência na estética das mulheres. (Estudante universitária, 21 anos, urbana, católica e espírita).

Em relação à ressignificação dos direitos e identidades:

Muitas mulheres costumam chegar com uma postura submissa, e sem muita expressão. Elas não conhecem seus direitos, ou não acreditam que possam alcançá-los, e ainda relatam um histórico de obediência ao agressor em relação a comportamentos e vestimentas, por exemplo. Ao longo do processo passam a perceber seus direitos e liberdades e conseguem lutar por eles, desenvolvendo melhor sua própria identidade ao conseguirem agir e se vestir livremente. (Estudante universitária, 23 anos, urbana, sem religião).

Essas mudanças ocorrem a partir do conhecimento dos direitos da mulher, que ainda são desconhecidos da grande maioria, e que, ao serem apresentados às detentoras desses direitos, lhes conferem força e poder para sair da situação de violência e exigir seus direitos garantidos constitucionalmente. (Estudante universitária, 21 anos, urbana, católica e espírita).

Sobre o retorno após o atendimento:

Já tivemos assistidas que prestaram seus serviços à Casa. Muitas assistidas acabam tendo atuação política em seu bairro, informando outras mulheres e orientando a procura pela Casa. Além disso, ao longo desse ano foi desenvolvida uma peça teatral apenas com as assistidas da Casa. Essa peça serve pessoalmente às mulheres, como forma de terapia, mas serve também à Casa das Mulheres, como forma de divulgação e informação. (Estudante universitária, 23 anos, urbana, sem religião).

Algumas começaram a fazer parte do grupo de teatro, outras se tornam disseminadoras do trabalho da Casa. No entanto a Casa ainda não oferece um trabalho específico para as mulheres que desejam ser voluntárias, acredito que se houvesse esse trabalho muitas voltariam e se dedicariam a ajudar. (Estudante universitária, 24 anos, urbana, sem religião).

Ao escreverem sobre as cinco primeiras palavras que lhes vinham à cabeça quando pensavam no próprio processo de formação, as mais evocadas foram: empoderamento (2), crescimento (2), e por uma (1) vez feminismo, vivência, amor, cuidado, vida, chance, esperança, força, liberdade e paz. Isto faz perceber que elas realmente enxergam o processo de formação como um empoderamento do tema gênero e enfrentamento da violência contra as mulheres, sendo que a palavra empoderamento não foi constitutiva de nenhuma das questões do roteiro de entrevista semiestruturado.

Acho que a Casa me mostrou vários lados que eu me negava a observar dentro da sociedade e de mim mesma. Eu passei a perceber tantos aspectos de situações que geralmente julgamos só pela nossa vivência que é difícil desvincular e pensar de forma apenas objetiva em algumas situações. As palestras, os cursos, a convivência diária com mulheres que assim como eu estavam se transformando ao passar pela experiência da Casa, os textos passados [...] as discussões frequentes e o contato com a militância e com o planejamento de políticas públicas para as mulheres fizeram parte desse processo de formação e foram muito importantes para minha compreensão a respeito do tema e a respeito de várias outras coisas pertinentes ao que se tem que lidar na Casa [...]. (Estudante universitária, 27 anos, urbana, sem religião).

Por meio dos depoimentos, é possível perceber que as mulheres, mesmo que muitas vezes em tentativas falhas, tentam quebrar não apenas com uma violência do corpo, mas do espírito, quebrar com o elogio da força e virilidade associados ao masculino e a fragilidade associada ao feminino, que possuem o intuito de mascarar a violência do machismo, pois neste contexto a mulher não é sujeito e sim objeto sexual.

Antes que se conclua a análise, é pertinente que se entenda que nas descrições das características das universitárias entrevistadas, a religião foi vista como um indicador, pelo fato de ser uma forte instituição reprodutora do discurso heteronormativo e da submissão da mulher ao lar. Para Costa (2015), a ideia bíblica de que “a mulher sábia edifica a casa, mas a tola a destrói” transporta para a mulher toda a responsabilidade de manutenção da harmonia do lar, sendo ela julgada socialmente, caso não prevaleça essa harmonia (COSTA, 2015, p. 166). Não obstante, não foram percebidas, neste trabalho, nuances nos depoimentos em virtude da orientação religiosa.

4 Considerações finais

Esta pesquisa não se conclui, ao contrário, traz desdobramentos para novas questões. Os conflitos são sempre públicos e políticos baseados no enfrentamento, porém essas jovens estudantes universitárias já possuíam vínculos sociais anteriores que contribuíram para a percepção das mesmas quanto à transformação, ou talvez seja correto dizer, ressignificação de pensamento que passaram ao iniciar o trabalho de atendimento no Programa Casa das Mulheres. A formação dessas mulheres aconteceu em conjunto com as práticas já vivenciadas, mas essas práticas sofreram uma mudança de pensamento quanto ao significado.

Foi possível perceber que, por meio do trabalho realizado no Programa Casa das Mulheres, o pensamento muito enraizado nas questões de gênero que denotam a forma de ser de cada indivíduo, em conformidade com os papéis sociais instaurados pelas características biológicas associadas ao tema, sofre ressignificação por parte das vítimas, a partir do momento em que elas entendem as relações de poder que as cercam.

Conclui-se que, por meio do atendimento da Casa, essas mulheres vítimas de violência puderam se perceber dentro do contexto da violência contra as mulheres como agentes políticos dotados de poder simbólico de luta, ao mesmo tempo que se identificam enquanto vítimas de uma sociedade que ainda agride as mulheres diariamente, por meio de uma legitimação respaldada pelas desigualdades de gênero.

Referências

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Notas

1 O Programa Casa das Mulheres é resultante de um conjunto de ações voltadas para o enfrentamento da violência contra as mulheres na microrregião de Viçosa/MG. Construído pelo Conselho Municipal de Direitos da Mulher de Viçosa em 2009 e tendo como referência o Plano Nacional de Políticas para Mulheres, dentre várias ações encontra-se a orientação e atendimento de mulheres em situação de violência em Viçosa, em parceria com a Defensoria Pública, a Delegacia de Polícia Civil, Polícia Militar, Centro Viva a Vida, Unidades Básica de Saúde do PSF, Hospitais, CRAS, CREAS, ALANON e Secretaria Municipal de Ação Social. Disponível em: < http://projetocasadasmulheres.blogspot.com.br/p/o-projeto.html >. Acesso em: 2017.
2 Cabe destacar dentre estas campanhas, com base no Mapa da violência de 2015: Homicídios de Mulheres no Brasil, a Campanha UNA-SE Pelo Fim da Violência contra as Mulheres, lançada pelo secretário-geral das Nações Unidas, que proclamou o dia 25 de cada mês como um Dia Laranja, dia em que, em todo o mundo, agências das Nações Unidas e organizações da sociedade civil promovem atividades para dar mais visibilidade às questões que envolvem a prevenção e a eliminação da violência contra mulheres e meninas. A campanha é descrita como um movimento solidário que tem como foco a igualdade de gênero (WAISELFISZ, 2015, p. 5).
3 O conceito de Rede aqui utilizado baseia-se na ideia de Rede de interações entre diferentes atores sociais proposto por Scherer-Warren (1993): “[...] a análise em termos de redes de movimentos implica buscar as formas de articulação entre o local e o global, entre o particular e o universal, entre o uno e o diverso, nas interconexões das identidades dos atores com o pluralismo. Enfim, trata-se de buscar os significados dos movimentos sociais num mundo que se apresenta cada vez mais como interdependente, intercomunicativo, no qual surge um número cada vez maior de movimentos de caráter transnacional, como os direitos humanos, pela paz, ecologistas, feministas, étnicos e outros” (SCHERER-WARREN, 1993, p.10 apud DIAS, 2000, p. 158).
4 Extraído de http://projetocasadasmulheres.blogspot.com.br/p/o-projeto.html , onde se encontram informações detalhadas sobre o trabalho desenvolvido pelo Programa Casa das Mulheres.
5 “Papel é aqui entendido no sentido que se usa no teatro, ou seja, uma representação de um personagem. Tudo aquilo que é associado ao sexo biológico fêmea ou macho em determinada cultura é considerado papel de gênero. Estes papéis mudam de uma cultura para outra. A Antropologia, que tem como objetivo estudar a diversidade cultural humana, tem mostrado que os papéis de gênero são muito diferentes de um lugar para outro do planeta”. (GROSSI, 1998)

Notas de autor

1 Licenciada em História (UFV). Mestrado em andamento em Extensão Rural (UFV) – Viçosa/MG - Brasil. E-mail: paolagf05@hotmail.com.
2 Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor Associado I da Universidade Federal de Viçosa (UFV) lotado no Departamento de Ciências Sociais – Viçosa/MG - Brasil. E-mail: douglas.mansur@ufv.br.
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