Artigos Originais
A Geografia, o lugar e os sujeitos
Geography, the place and the subjects
La Geografía, el lugar y los sujetos
A Geografia, o lugar e os sujeitos
Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 20, núm. 1, 2018
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
Recepción: 30 Mayo 2017
Aprobación: 03 Enero 2018
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo compreender como a relação entre os sujeitos e os lugares pode ser compreendida pela análise das corporeidades. Reforçar o papel que o corpo tem na relação dos sujeitos com o espaço é importante para entendermos como esses elos são criados, bem como entender o reflexo das identidades nas corporeidades e nas formas de agir nos lugares. Tuan (1980), Oliveira (2014), Chaveiro (2014), Gomes (2013), Relph (2014) entre outros, dão suporte teórico para a compreensão do conceito de lugar e algumas diferentes visões que a Geografia Humana tem sobre esta categoria de análise da ciência geográfica. Este artigo conclui que as relações com o lugar são dadas pela experiência que os sujeitos têm com o espaço e que o corpo é o veículo pelo qual os indivíduos têm a vivência dele. Portanto, torna-se importante a reflexão sobre as identidades e como elas aparecem na ligação dos sujeitos com o lugar através das corporeidades.
Palavras-chave: Geografia, Lugar, Corporeidades.
Abstract: The present work aims to understand how the relationship between individuals and places can be understood by the analysis of corporeities. Reinforcing the role of the body in the individual’s relationship with space is important for us to understand how these bonding links are created, as well as to understand the reflection of identities in corporeities and ways of acting in places. Tuan (1980), Oliveira (2014), Chaveiro (2014), Gomes (2013), Relph (2014) and others provide theoretical support for the understanding of the concept of place and some different views that Human Geography has on this category of geographic science analysis. This article concludes that the relations with the place are given by the experience that individuals have with the space and that the body is the vehicle by which they experience it. Therefore, it is important to reflect on identities and how they influence the connection of individuals with place through corporeity.
Keywords: Geography, Place, Corporeity.
Resumen: El presente trabajo tiene como objetivo comprender cómo la relación entre los sujetos y los lugares puede ser comprendida por el análisis de las corporeidades. Reforzar el papel que el cuerpo tiene en la relación de los sujetos con el espacio es importante para entender cómo esos eslabones son creados, así como entender el reflejo de las identidades en las corporeidades y en las formas de actuar en los lugares. Tuan (1980), Oliveira (2014), Chaveiro (2014), Gomes (2013), Relph (2014), entre otros, dan soporte teórico para la comprensión del concepto de lugar y algunas diferentes visiones que la Geografía Humana tiene sobre esta categoría de análisis de la ciencia geográfica. Este artículo concluye que las relaciones con el lugar son dadas por la experiencia que los sujetos tienen con el espacio y que el cuerpo es el vehículo por el cual los individuos tienen su vivencia. Por lo tanto, se hace importante la reflexión sobre las identidades y cómo aparecen en la conexión de los sujetos con el lugar a través de las corporeidades.
Palabras clave: Geografía, Lugar, Corporalidades.
1 Introdução
O conceito de lugar possuiu diferentes significados durante a história do pensamento geográfico. As concepções de lugar na geografia tiveram tanto abordagens locacionais (no sentido de sítio), como salientam Stanniski (2014), Kundlatsch (2014) e Pirehowski (2014), quanto teóricos que visavam às relações humanas estabelecidas com o lugar, como Tuan (1980) e outros contribuintes da Geografia Humana. Embora esta última forma de pensar o lugar na ciência geográfica pareça dominante no meio acadêmico, outras maneiras de analisar essa categoria têm aparecido.
Considerando a multiplicidade de concepções sobre o lugar dentro da Geografia Humana, faz-se necessário para este artigo entender a relação dos sujeitos com o lugar, uma vez que os autores selecionados, como Tuan (1980), Oliveira (2014), Chaveiro (2014), Relph (2014) e Gomes (2013), recorrem a abordagens humanistas que valorizam a experiência dos sujeitos na análise dos lugares.
Diante disso, o presente artigo possui o objetivo de compreender como a relação entre os sujeitos e os lugares pode ser entendida mediante a análise das corporeidades, reforçar o papel que o corpo tem na relação dos sujeitos com o espaço, bem como entender o reflexo das identidades nas corporeidades no mundo contemporâneo.
Para cumprir os objetivos propostos, o presente artigo é dividido em três partes. Na primeira parte é levantada a importância das contribuições de Yi-Fu Tuan (1983; 1980) para entendermos o conceito de topofilia como o elo dos sujeitos com os lugares. O autor possui grandes contribuições que enriqueceram os estudos de lugar na Geografia Humanista.
Na segunda parte, as colaborações de geógrafos como Oliveira (2014), Relph (2014), Gomes (2013) e Chaveiro (2014) são ressaltadas. Os autores possuem um vasto trabalho nos estudos do lugar. A experiência dos sujeitos que dá existência aos lugares é muito enfatizada na obra dos autores, o que fornece subsídios para este artigo compreender as corporeidades como ligação dos sujeitos com os lugares.
Na terceira parte, o artigo se atenta a discutir a corporeidade e o modo como os sujeitos se ligam aos lugares por meio das afetividades, as relações que o corpo possui com as identidades, e como os sujeitos são afetados pelos lugares.
Ao final, conclui-se que as afetividades são entendidas como qualquer fato, vivência e experiência que afetam os indivíduos. As afetividades não se reduzem a bons sentimentos. Também foi possível concluir que as relações culturais com o corpo são um reflexo da sociedade e que a cultura como modo de organização da sociedade possui poder sobre os corpos. Compreendeu-se também que os lugares influenciam no modo como os sujeitos agem pela relação de identidade que têm com o lugar.
2 O lugar na Geografia Humanista: contribuições de Yi-Fu Tuan para entender a topofilia como elo entre sujeitos e lugares
Esta seção tem como objetivo dissertar sobre o conceito de lugar na ciência geográfica relacionando-o com as contribuições feitas pelo autor Yi-Fu Tuan (1983; 1980) a partir da sua concepção de topofilia. A discussão acerca do conceito de lugar é necessária pela importância que a dimensão subjetiva dos indivíduos possui na criação desses vínculos. É também por uma necessidade de entender como os sujeitos se relacionam com o espaço e se ligam fortemente a ele que o autor propõe pensar os vínculos de lugar pela topofilia. Esta é todo e qualquer elo afetivo que liga o homem ao ambiente. São formas simbólicas de viver o espaço — atos de enunciar significados considerando a experiência que possui com o espaço. A Geografia como a ciência que estuda os fenômenos recorrentes à superfície terrestre deixou por muito tempo a categoria lugar em segundo plano, focando apenas no conceito de paisagem, território e espaço. Assim como ressalta Holzer (2003, p. 2113), “lugar é o conceito espacial que durante longo tempo foi utilizado pelos geógrafos para expressar o sentido locacional de um determinado sítio”.
De acordo com Staniski (2014), Kundlatsch (2014) e Pirehowski (2014), o conceito de lugar tem umas das suas mais antigas interpretações feitas por Aristóteles em sua obra Física. Para ele o lugar seria o limite do corpo. Alguns séculos depois, o conceito de lugar foi aprimorado por Descartes. Para o filósofo, o lugar também deveria ser definido em relação à oposição de outros corpos. Como podemos observar, nessa época, o que acreditavam ser lugar estava longe de ser concernente com as relações estabelecidas pelo homem em um determinado espaço geográfico, mas sim ao espaço ocupado pelo corpo. Até então, lugar era mais relacionado com sentido locacional e referencial do que com a concepção que os geógrafos humanistas trariam de lugar como casa de sentimentos, diferentes formas de afetividade com o espaço.
Segundo Holzer (2003), na primeira metade da década de 70, Tuan e Buttiner foram os autores que mais contribuíram na busca pela identidade própria para a Geografia Humanista. O autor destaca que esses pensadores foram os pioneiros na utilização do conceito de lugar e de mundo vivido. Holzer (2003) assinala que Tuan foi com toda certeza um dos principais responsáveis pela valorização do “lugar” como conceito de extrema importância para os estudos geográficos.
O autor alertava para a disparidade entre objetivos, métodos, pressupostos filosóficos e escalas envolvidas nesta empreitada, que seriam unificados em um único tema: o modo como os seres humanos respondem a esse ambiente. Nenhum conceito abrangente reconhece, une essas disparidades. Contenta-se, então, em estruturá-las em tomo da topofilia, definida como o elo de afeição que une as pessoas aos lugares (HOLZER, 2003, p. 116).
Uma das grandes revoluções que essa forma de analisar o lugar, conhecida como Geografia Humanista, traria para a área é não somente o elo de afeição citado anteriormente, mas toda a humanização dessa ciência e a valorização não só da subjetividade, mas dos sentimentos dos indivíduos, e como essas afetividades se constroem no espaço. Entende-se que o lugar começou a ser estudado por uma perspectiva que procura entender não só o que é lugar, mas como este é construído e a partir de quais relações subjetivas ele é formado.
Os geógrafos começaram a enxergar e entender que o lugar é muito mais do que um espaço preenchido por construções provenientes das ideias humanas. Lugar que antes era visto como ferramenta de localização começa agora a ser compreendido e pensado através das reflexões sobre os sentimentos que antes pareciam lhe faltar. O estudo do lugar está imbricado com as dinâmicas dos seres humanos no espaço e os efeitos que essas dinâmicas causam nos indivíduos.
Sobre isso, Holzer (2003) considera que, para Tuan, a importância do lugar para a geografia cultural e humanista é ou deveria ser óbvia. Trata-se de como nós funcionamos no espaço, de como o espaço nos afeta e a razão de fazermos parte do espaço tornar-se algo significativo.
Sendo assim, com base nas considerações feitas sobre a Geografia Humanista, é possível entender que o lugar é um tipo de vínculo afetivo. Uma relação que liga os sujeitos ao espaço, seja essa afetividade benéfica ou não. Esses vínculos são criados pela vivência, pelo contato com o espaço e pela experiência de ser sujeito no espaço (TUAN, 1980).
A experiência é fundamental para o lugar. Se o caráter de vivência for retirado do lugar ele perde o seu sabor e sua humanidade, ou seja, o que o torna diferente dos outros lugares. Sem dúvida, as contribuições feitas por Tuan (1983) e o caráter humanista e subjetivo que sua concepção de lugar trouxe para a Geografia abriram muitas portas para novas pesquisas surgirem na ciência geográfica.
Então, algumas ponderações feitas por Tuan (1980) são importantes para entendermos o caráter humano e subjetivo de sua ideia de lugar. Considerando a experiência como elemento fundamental da criação de vínculos de lugar, o autor analisa a vida moderna e como as formas de viver da modernidade afetam as ligações afetivas com o espaço.
Na vida moderna, o contato físico com o próprio meio ambiente natural é cada vez mais indireto e limitado a ocasiões especiais. Fora da decrescente população rural, o envolvimento do homem tecnológico com a natureza é mais recreacional do que vocacional. O circuito turístico, atrás das janelas de vidro Raiban, separa o homem da natureza. De outro lado, em certos esportes como o esqui aquático e alpinismo, o homem entra em contato violento com a natureza. O que falta às pessoas nas sociedades avançadas (e os grupos hippies parecem procurar) é o envolvimento suave, inconsciente com o mundo físico, que prevaleceu no passado, quando o ritmo da vida era mais lento e do qual as crianças ainda desfrutam. (TUAN, 1980, p. 110)
Ao relatar que as crianças desfrutam de um ritmo de vida mais lento e envolvem-se mais suavemente com o mundo físico, Tuan (1983) destaca que a vida moderna trouxe para os sujeitos não só um contato limitado com a natureza, mas também uma ideia pequena e objetificada dela.
Percebe-se que na modernidade a ideia de natureza tem sido usada constantemente pelas empresas de turismo para a criação e venda de lugares (RELPH, 2014). O ideal de natureza, que muitas vezes é representado pelo rural, bucólico e campestre, pode ser percebido nas grandes redes de hotéis fazenda, parques aquáticos e outras formas que o mundo moderno tem de “aproximar” o homem da natureza.
O interessante dessa faceta da modernidade é entender como as empresas de turismo constroem lugares, primeiro mediante a representação de um ideal e, posteriormente, pela venda desses lugares, utilizando a propaganda da oportunidade de viver aquele lugar e as experiências que ele proporciona. Relph (2014) coloca esse papel das agências de turismo e viagem como uma das formas de criação de lugar do mundo contemporâneo. Vale ressaltar que as construtoras agem de forma muito parecida quando vendem apartamentos, casas e outros tipos de moradia.
Portanto, se o lugar, na perspectiva dos geógrafos humanistas, mais especificamente na de Tuan (1983), é baseado na experiência de ser no espaço, é impossível pensar o lugar sem as relações com o corpo físico da terra e as materialidades postas no espaço. A materialidade enquanto algo tátil e passível de ser visto marca a paisagem, as lembranças e também os lugares.
As experiências intensas e repetitivas com e nos lugares podem se tornar relações de dependência com eles. A memória funciona como registro das experiências tidas nos lugares e reforçam a intensidade desses vínculos positivos ou negativos (OLIVEIRA, 2014; CHAVEIRO, 2014).
Tuan (1980) faz algumas considerações importantes sobre como o agricultor mantém uma relação de dependência com a natureza.
Para o trabalhador rural a natureza forma parte deles - e a beleza, como substância e processo da natureza pode-se dizer que a personifica. Este sentimento de fusão com a natureza não é simples metáfora. Os músculos e as cicatrizes testemunham a intimidade física do contato. A topofilia do agricultor está formada desta intimidade física, da dependência material e do fato de que a terra é um repositório de lembranças e mantém a esperança. (TUAN, 1980, p. 111)
Esse tipo de relação pode ser vista na vivência de populações ribeirinhas, quilombolas e outras comunidades campesinas que têm um contato maior com o que se entende por natureza ou meio físico. São populações que veem a natureza como parte da história delas, seja pela experiência que elas possuem ou pelas histórias de parentes guardadas na memória.
A forma como as comunidades rurais criam e recriam as narrativas de seus lugares é peculiar. Essas formas de viver dão sentido particular ao campo, tanto as relações de trabalho com o campo e sua dependência da natureza bem como o caráter místico que algumas comunidades atribuem à natureza por meio da ingestão de chás, crenças em lendas etc.
Dessa forma, é desenvolvendo o argumento de que a memória, vivência e experiência caracterizam os lugares que Tuan (1980) levanta o termo topofilia. Essa colocação do autor além de ser uma de suas grandes contribuições para a Geografia torna possível entender os vínculos de lugar pelas formas de afetividade.
A topofilia é uma intimidade com o ambiente em que se vive, essa relação de intimidade é construída de maneiras diferentes e depende das vivências de cada indivíduo (TUAN, 1980).
Segundo Tuan (1980), a topofilia está relacionada com a familiaridade. O autor acredita que ela pode gerar afeição ou desprezo. Com o passar do tempo, as pessoas investem suas vidas emocionais em suas casas e, além de suas casas, no próprio bairro (TUAN, 1980; OLIVEIRA, 2014).
É o caso de pessoas que relutam em abandonar suas velhas casas por novas moradias, mesmo em uma situação de risco. Por mais que seja um novo lar, ele não guarda as memórias e vivências como o antigo lar fizera. Nesse caso, é possível perceber o papel importante das narrativas criadas sobre os lugares e como a falta de vivência em um lugar pode retirar seu significado ou criar uma aversão a ele.
Tuan (1980) ressalta que a consciência do passado é um elemento importante no amor pelo lugar, então, deixar sua casa seria como deixar parte do passado, tudo que foi vivido e construído para trás.
Agora que algumas considerações sobre o conceito de lugar e como Yi-Fu Tuan (1980) entendia o lugar através da experiência foram feitas, é necessário ir além na perspectiva humanista da ciência geográfica. A concepção de topofilia já exposta aqui é base para a argumentação de muitos autores da Geografia Humanista, justamente pela importância que dá às diferentes formas de ter o espaço como experiência.
3 O lugar a partir dos sujeitos e suas vivências
A seção anterior foi apresentada a partir das ideias de Yi-Fu Tuan e suas contribuições para a ciência geográfica através de seu modo de pensar o lugar. A proposta desta seção é pensar o lugar pelas lentes de outros geógrafos. As concepções de lugar aqui apresentadas tiveram em sua maioria as ideias de Tuan (1980) como norteadoras de seu pensamento. Não significa, porém, que tais concepções sejam todas iguais, elas possuem semelhanças e também diferenças.
Oliveira (2014) faz um caminho interessante para pontuar como tem pensado o lugar. É de suma importância ressaltar que a autora possui um trabalho imenso acerca do lugar e da Geografia Humanista no Brasil. Oliveira (2014) desenvolve seu pensamento baseando-se nas ideias de Tuan (1980) acerca do lugar e por isso alguns traços da obra da autora apresentam um pouco do entendimento do autor sobre a relação dos sujeitos com o lugar.
“A concepção atual de lugar é de tempo em espaço; ou seja, lugar é tempo lugarizado, pois entre espaço e tempo se dá o lugar, o movimento, a matéria.” (OLIVEIRA, 2014, p. 5). A partir dessa afirmação, a autora deixa clara a importância da experiência e da memória para o lugar. Ao considerar o lugar como tempo lugarizado, Oliveira (2014) evidencia da vivência que existe no lugar. Lugar como tempo lugarizado é a memória de um evento registrada naquele lugar.
Nenhum lugar está dado e desabotoado de significados e intenções; se não há laços afetivos (sejam eles negativos ou positivos), não há lugar. Lugar é espaço experienciado através do tempo, é um espaço vazio que a partir de algum acontecimento passou a ter certa relevância (OLIVEIRA, 2014).
Outro autor que muito contribui com a Geografia Humanista e, principalmente, com a teorização sobre o lugar é o geógrafo Paulo Cesar da Costa Gomes. Ao dissertar sobre o lugar do olhar na ciência geográfica, Gomes (2013) propõe uma abordagem um pouco diferenciada. Gomes (2013) abre mão da rigidez de definir uma teoria única do lugar e procura entender o ato de olhar.
Com isso, o autor faz alguns esclarecimentos acerca de regimes de visibilidade, exposição, olhar e outros pontos que dão suporte ao seu objetivo. Entretanto, é interessante abordar como Gomes (2013) representa a ligação dos sujeitos com o lugar. Percebe-se que, ao sustentar a argumentação de que os lugares influenciam a forma como os sujeitos se portam neles, o autor recorre a uma questão da identidade.
Gomes (2013) ressalta que os lugares funcionam como motores de identidades. Ou seja, os lugares de alguma forma fornecem possibilidade de ser. O autor não assume uma postura determinista, pelo contrário, mostra a capacidade que os lugares têm de representação das identidades.
Essa afirmação fica evidente se considerarmos o fato de que fazemos uma ideia ainda que mínima de como nos portar em uma igreja, mesmo sem nunca ter ido a uma. Essa concepção do lugar como motor de identidade faz parte de uma argumentação bem mais complexa sobre o lugar, normatividades, e identidades, entre outros campos do conhecimento.
Vale ressaltar que as formas como os lugares estão organizados, o que está exposto neles e quem os organiza também fazem parte desse jogo de normatividade a que as identidades são submetidas nos lugares. Gomes (2013) traz uma argumentação importante para tratar das relações de poder nos lugares ao falar sobre o regime de visibilidade, espacialidade e configuração espacial. Isso porque, por meio dessas argumentações, o autor aponta que tudo o que está exposto no espaço encontra-se em tal condição por algum motivo, da mesma forma que nada que não está visível é por acaso.
Outras abordagens sobre lugar trazem uma visão mais conflituosa da criação desses vínculos entre os sujeitos e o espaço. Segundo Relph (2014, p. 21), alguns geógrafos radicais como David Harvey e Doreen Massey começaram a criticar as ideias humanistas de lugar como “locais de nostalgia”, os quais eram limitados, autênticos e de algum modo entendidos como eternos.
Talvez a ideia desses geógrafos radicais pareça sombria quando comparada às ideias humanistas de lugar, que retratam aconchego ou casa de bons sentimentos. Embora as ideias radicais citadas antes tenham certa dissemelhança com as ideias humanistas, elas têm o seu valor e estão muito visíveis nos dias atuais. De qualquer modo, é necessário entender que os conflitos não estão excluídos dos vínculos de lugar. Pelo contrário, não são eternos, eles estão em constante mudança assim como as identidades.
“O apego extremo com os lugares pode manifestar atitudes excludentes, causando assim grandes conflitos. Esses conflitos são criados pela entrada do diferente no lugar do outro, pelo contato e choque com a alteridade” (RELPH, 2014, p. 24). Ao falar sobre essas atitudes exclusivistas, Relph (2014, p. 24) deixa claro que elas mostram um sentido contaminado de lugar, um sentido que foge de algumas ideias humanistas baseadas na harmonia e mostram um lado sombrio que o lugar pode assumir por meio dessas demonstrações rígidas.
Para Edward Relph, “esse tipo de atitude exclusivista a que me referi é como um sentido contaminado de lugar. É baseado no enraizamento e na convicção de que este é o meu lar, manifestando-se como uma visão preconceituosa.” (RELPH, 2014, p. 24).
Relph (2014), além de caracterizar a poluição que o enraizamento excludente pode trazer para o lugar, levanta, nessa mesma afirmação, o modo pelo qual o lugar pode ser usado como justificativa para exclusão do outro e aversão às formas de diferença.
Carlos (1995) contribui muito com os estudos do lugar e pontua algumas formas pelas quais os sujeitos se ligam aos lugares. Para a autora, os indivíduos não só transitam pelos lugares. Além de vivê-los, eles dão vida, atribuem significado ou mudam os significados dos lugares.
“O lugar é criado a partir das relações humanas de significação, fala e representação. O lugar é oriundo das relações humanas, entre homem e mundo.” (CARLOS, 1995, p. 22). É nos lugares que as pequenas representações do global aparecem para os indivíduos. É neles que nos damos conta do movimento da vida e das rugosidades que o tempo nos deixou com o desenrolar da história dos homens e também do que chamam de natureza. As identidades dos lugares são criadas pela fala e outros atos de enunciação. A representação de um lugar descreve tanto o lugar como as pessoas que o frequentam, esse é o jogo das identidades presentes nos lugares (OLIVEIRA, 2014; CARLOS, 1995; RELPH, 2014). Para Carlos (1995), “a realidade do mundo moderno reproduz-se em diferentes níveis sem com isso eliminar-se as particularidades do lugar, pois cada sociedade produz seu espaço, determina os ritmos de vida, formas de apropriação expressando sua função social, projetos e desejos.” (CARLOS, 1995, p. 23).
Voltando às características conflituosas do lugar, é de suma importância ressaltar a contribuição dos geógrafos radicais levantada por Relph (2014). No mundo contemporâneo, os lugares têm sido palco de conflitos de diversos tipos, afastando-se assim, das visões muito harmoniosas de lugar. Os conflitos da contemporaneidade são em grande maioria conflitos das identidades (HALL, 2006).
Em um mundo pós-moderno como o que vivemos, onde identidades têm sido defendidas e reivindicadas em busca de direitos, liberdade e dignidade para viver, alguns autores como Hall (2006 e 2009), Woodward (2009) e Silva (2009) justificam esses embates como uma crise das identidades e metanarrativas. Isso quer dizer que no mundo contemporâneo os conflitos identitários são antes de mais nada conflitos do lugar.
Hall (2006) argumenta que os descentramentos que a pós-modernidade sofre variam das relações de trabalho às formas como os sujeitos se relacionam nas diferentes esferas da vida contemporânea. Sendo assim, considera-se que os movimentos sociais e as formas de reinvindicação de mudança na pós-modernidade são mudanças de lugar na sociedade. A desconstrução das grandes narrativas são antes de mais nada as minorias ressignificando seu lugar na sociedade (WOODWARD, 2009; SILVA, 2009).
Essas abordagens nos mostram em perspectivas diferentes a relação que os sujeitos criam com os lugares e como os lugares têm sido formados no mundo contemporâneo. Agora que alguns apontamentos necessários sobre o lugar foram feitos, a próxima seção se atentará à corporeidade como vínculo de lugar.
4 A corporeidade como um elo dos sujeitos com os lugares
Repetindo, há inúmeras noções sobre o que seria o lugar, mas uma entre as tantas que existem chama a nossa atenção: a noção sociofísica de lugar. Acreditamos que seu destaque se dê por causa da influência que não só os sentimentos têm na criação do vínculo de lugar, mas também a linguagem, os acontecimentos e as modificações que a própria cultura causa nos ambientes. O meio físico se relaciona com o meio social a todo tempo, e também se constroem a partir dessa relação. É importante dizer que tanto o meio físico quanto os significados que a ele são atribuídos são produzidos por meio de atos culturais.
Os atos da fala, representação, de viver e conceituar são produtos da cultura e têm grande importância na criação da significação e produção dos lugares. O falar e o habitar estão associados com todos os eventos exteriores ao indivíduo (OLIVEIRA, 2014), os quais são transmitidos oralmente ou com demonstrações culturais para as linhagens seguintes a partir da tradição. Fugindo de qualquer generalização que possa nos levar a cair em algum tipo de reducionismo, podemos dizer que o lugar é um signo ao qual atribuímos significados.
O lugar é formado pelos significados, mas também pelas emoções, portanto os lugares são criados pela vivência que neles temos, emoção e significados que atribuímos a esses espaços. Em outras palavras, o lugar é criado por atos culturais e, como qualquer ato cultural, o lugar também está sujeito a reformulações, sejam elas radicais ou não.
Silva (2009) pontua que, se nem a linguagem e o modo de uso dela é fixo, as identidades não seriam eternamente fixadas. Se nem a linguagem é fixa, por que os lugares e suas significações seriam, se a linguagem é um dos meios de propagar os lugares através das gerações e mesmo de criá-los? Portanto, podemos dizer que os sentidos de lugar e o que eles representam podem sim mudar com o tempo, e o indivíduo também é passível de sofrer essa mudança. Talvez a transformação ocorra antes no indivíduo e, em decorrência da alternância na sua forma de ver e encarar o mundo, os lugares mudem também.
Para Woodward (2009), Silva (2009) e Hall (2014), nem as identificações são fixas e totalmente íntegras como imaginamos ser. Os indivíduos mudam constantemente, as identidades que possuímos são muitas e por diversas vezes os seus requisitos acabam se chocando. Toda essa discussão sobre identidade é de suma importância quando tratamos de lugar, pois os indivíduos estão nos lugares e, se tais indivíduos não forem estáveis, acreditamos que os lugares também não o serão. A pós-modernidade exige muitas coisas de nós ao mesmo tempo e, em grande parte das vezes, não somos um, mas muitos. Quanto a isso, Hall (2006) argumenta sobre a multiplicidade das identidades que habitam a pós-modernidade, enfatizando a fragmentação dos sujeitos em diferentes esferas da vida humana.
A exigência de ser mãe pode se chocar com a exigência de ser trabalhadora, os horários podem não bater, talvez tenha que agir de uma maneira no seu trabalho que a sua religião não permita (WOODWARD, 2009). Toda essa discussão faz-se necessária para entendermos que os sujeitos são importantes na construção do lugar, e, se partimos de uma concepção em que os sujeitos se constroem nos lugares e na relação com eles, temos de dar atenção às identidades contemporâneas e à forma como elas se constroem.
Isso posto, podemos concluir que os sujeitos são instáveis e suas identidades são cambiantes como Hall (2006) já enfatizou em sua obra. Esse quadro das identidades contemporâneas nos faz retornar ao lugar e sua relação com os sujeitos. Se os sujeitos estão em constante transformação (na maioria das vezes contraditória), será que os lugares também estão?
Diante dessa afirmação somos levados a pensar a ligação dos sujeitos com o lugar para além de laços afetivos. As considerações feitas acerca das identidades segundo Hall (2006), Woodward (2009) e Silva (2009) em relação com os apontamentos feitos sobre o lugar a partir de Oliveira (2014), Relph (2014), Gomes (2013) e Chaveiro (2014) torna o lugar uma questão da identidade.
Considerando o lugar um motor de identidade, formas de agir, maneiras de falar e existir a partir de Gomes (2013), entendemos que cada lugar possui uma forma específica de afetar os sujeitos, bem como cada sujeito absorve o lugar de forma única. A forma pela qual os lugares afetam os sujeitos fornecendo possibilidades de ser para suas identidades é entendida nesse artigo como corporeidade. Para entender a corporeidade é necessário que a importância do corpo na relação dos sujeitos com o lugar seja esclarecida.
Independentemente de como acreditamos que os lugares são construídos e de como mantêm uma relação com a identidade dos sujeitos que os habitam, precisamos concordar que o corpo é o instrumento pelo qual o indivíduo se projeta e atua no espaço.
O corpo não é uma externalidade da mente, mas sim sua extensão. Podemos, então, dizer que o corpo é um reflexo das identidades do sujeito e que, se os indivíduos mudam sua maneira de pensar e de agir o corpo também atua de maneiras diferentes nos lugares.
Vale lembrar que é por meio do corpo que os lugares são experienciados; o espaço está para os homens da mesma forma que as nuvens estão para o céu. O corpo passa por lugares, e é por meio dele que os homens registram sua história no mundo. Da mesma forma, o corpo registra a história que os sujeitos viveram nos lugares.
O corpo é reflexo da cultura. É através de relações culturais que os indivíduos constroem seu ideal de corpo. As identidades se compõem no próprio corpo (WOODWARD, 2009). Em algumas culturas, o corpo também determina os espaços que alguns grupos podem ocupar na sociedade (SILVA, 2009). A história de repressão e exclusão que as mulheres sofreram nos mostram isso muito bem.
Diante disso, podemos dizer que, além de ser um instrumento de transformação e de apropriação do mundo, o corpo é o instrumento de diferenciação entre os indivíduos. É em virtude de diferenciações corporais que muitos paradigmas nasceram e caíram por terra; foram as diferenças entre os corpos que influenciaram a escravidão, por exemplo.
Segundo Chaveiro (2014, p. 250),
O corpo é a propriedade pela qual o sujeito pode fundar a sua extrema singularidade, registrar na carne a sua história na linha de contato e de intersecção com a história do mundo e dos lugares, mote para experimentar a si mesmo, peça de sentido para colher a propriedade das coisas e para afetá-las com a percepção e com a ação, recurso de estranhamento no tempo e de realização temporal no encontro com o outro, figura de interferência, de gozo – e de descoberta.
A corporeidade e as ações que a partir dela são possíveis constituem exemplos do que é existir. É a partir do corpo e das experiências que temos através deles que os atos culturais de atribuir significações ao lugar podem ocorrer. É impossível existir lugar ou qualquer atributo que exija a ação humana sem a experiência do corpo, como não é possível que o corpo exista sem tais espaços.
A partir da diferença entre o seu corpo e modo de agir que sua identidade e sua necessidade de se identificar começa a nascer (HALL, 2014; WOODWARD, 2009; SILVA, 2009). Portanto, podemos dizer que é a partir da diferenciação dos corpos, seja pelos marcadores raciais, sexuais ou outros que nele existam, que a diferença se destaca. Vale lembrar que não só os corpos físicos chamam atenção, mas a diferença da mobilidade e intencionalidade que esses corpos têm nos lugares também. Os lugares ditam as regras e nos dizem como devemos nos portar quando estamos neles (GOMES, 2013).
Você não tem um corpo, você é um corpo (RELPH, 2014; CHAVEIRO, 2014). Os corpos não estão no mundo, os corpos são no mundo. O mundo não está dado para nós como nós não estamos dados para os corpos, nós os construímos assim como construímos nossas identidades. Melhor dizendo, nós os construímos juntamente com nossas identidades, portanto nada nos impede de alterá-los.
Com base na noção humanista de lugar como um centro de significados, afeição e vivência (TUAN, 1980; RELPH, 1976), acrescentamos que é no lugar que a corporeidade se torna compreensível enquanto experiência.
Assim, consideramos o lugar como uma experiência do corpo do sujeito que age em espaços repletos de significados e atividades culturais. Todos os bons sentimentos e até mesmo os mais conflituosos que configuram o que acreditamos ser o lugar são experienciados antes de mais nada pelo corpo.
Portanto, precisamos ter em mente que o lugar é algo cultural. Assim sendo, os lugares são guardadores de identidade sexuais, raciais, religiosas entre outras que são inerentes à cultura. O corpo é oriundo de experiências culturais que, antes de trazerem significados ao lugar, trazem significados aos indivíduos que nele transitam ou o contrário. Não podemos nos esquecer de que o homem se apropria de espaços e constrói lugares pela ação de seus corpos (CARLOS, 2007). Carlos (2007) nos deixa outra contribuição muito interessante para a abordagem que tentamos fazer sobre o lugar e sua relação com os sujeitos ao dizer que o habitar, a identidade e o lugar são intrínsecos e juntos formam uma tríade para a análise do lugar.
5 Conclusões finais
Entende-se que o lugar dentro da Geografia é uma das categorias de análise mais discutidas nos dias de hoje, o que se deu pela explosão da Geografia Humanística a partir da década de 70, juntamente com outros ideais humanistas que ganharam enorme proporção em várias áreas da ciência.
Vale ressaltar que várias concepções de lugar existem dentro dessa ciência. Muitos geógrafos que pertencem a diferentes linhas de pesquisa têm se dedicado a essa categoria analítica e, como consequência, obviamente temos concepções de lugar muito peculiares.
Para alguns teóricos, lugar tem de ser entendido como laços de afeto, sentimentos que ligam indivíduos a lugares. Tais sentimentos nem sempre são positivos. Para outros pesquisadores, o lugar tem de ser entendido como algo conflituoso, algo que não é tão simples de ser criado, cujos processos de desenvolvimento não são harmoniosos.
Contudo, o presente artigo considera lugar algo não estático, muito pelo contrário, ele é tão cambiante como nós enquanto indivíduos que estão sujeitos a todas as alterações que as relações culturais das quais participamos nos possibilitam. Entendemos que o lugar é algo criado a partir de atos de significação, que ele pode sim ser criado através de afetos que ligam sujeitos a lugares, mas que pode, por outro lado, ser conflituoso e não harmonioso.
Diante disso, entendemos o lugar como algo criado mediante atos de atribuição de significado ao que está à nossa volta. Conclui-se que os sujeitos têm enorme participação na formação e manutenção dos lugares e são peças fundamentais para lhes atribuir significado. Seja de modo negativo ou positivo, os sujeitos têm grande importância em sua significação.
O lugar é, portanto, formado pelos significados, e também pelas emoções. Os lugares são, dessa forma, criados pela vivência que neles temos, pela emoção e significados que atribuímos a esses espaços. Em outras palavras, o lugar é criado por atos culturais e, como qualquer ato cultural, o lugar também está sujeito a reformulações, sejam elas radicais ou não. Os atos da fala, da representação, de viver e conceituar são produtos da cultura e têm grande importância na criação da significação e produção dos lugares. O falar e o habitar estão associados com todos os eventos exteriores ao indivíduo (OLIVEIRA, 2014).
Podemos ir além com as contribuições feitas pelos autores Oliveira (2014), Chaveiro (2014), Carlos (2007) e Silva (2009) e dizer que os lugares são uma experiência do corpo, ou seja, a corporeidade dos sujeitos está relacionada com a maneira pela qual experienciam o mundo à sua volta. O lugar é, portanto, uma experiência de tudo que está exterior ao corpo dos indivíduos.
Assim, podemos considerar que, seja qual for a ideia que se tenha sobre lugar, há de se considerar que este é uma experiência dos sujeitos e, por consequência, de seus corpos. Assim, as maneiras de viver, perceber, significar e se relacionar no e com o espaço podem ser um ponto de partida para as análises do lugar.
Referências
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Notas de autor