ARTIGOS ORIGINAIS
A ideologia da ideologia de gênero e a escola
School and the ideology of gender ideology
A ideologia da ideologia de gênero e a escola
Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 19, núm. 3, 2017
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
Recepción: 06 Junio 2017
Aprobación: 19 Diciembre 2017
Resumo: O objetivo do presente texto é o de trazer elementos à compreensão da relação entre ideologia e gênero de forma a contribuir com o debate atual sobre a chamada “ideologia de gênero” e a educação. Embora se trate de argumentos genéricos e sem base científica sólida, os críticos à discussão sobre gênero na escola acabam por criar, eles próprios, uma mistificação da realidade, uma visão de mundo imaginada a ser imposta de forma acrítica. O objetivo do texto foi trazer ao debate a natureza da ideologia e a impossibilidade de se pensar numa neutralidade científica e política em qualquer âmbito de nossas vivências, aí incluída e destacada, a escola.
Palavras-chave: Ideologia, Ideologia de gênero, Escola.
Abstract: The paper aims at bringing elements to the understanding of the relationship between ideology and gender in order to contribute to the current debate on the so-called "gender ideology" and education. Although the arguments are generic and without solid scientific basis, critics of the discussion about gender in schools end up creating a mystification of reality and a vision of an imagined world that intends to be formally imposed without criticism. The purpose of the study is to debate the nature of this ideology and the impossibility of thinking about scientific and political neutrality in any sphere of our experiences, including schools.
Keywords: Ideology, Gender ideology, Schools.
É nuclear, na ideologia, que ela possa representar o real e a prática social através de uma lógica coerente. A coerência é obtida graças a dois mecanismos: a lacuna e a “eternidade”. Isto é, por um lado, a lógica ideológica é lacunar, ou seja, nela os encadeamentos se realizam não a despeito das lacunas ou dos silêncios, mas graças a eles; por outro lado, sua coerência depende de sua capacidade para ocultar sua própria gênese, ou seja, deve aparecer como verdade já feita e já dada desde todo o sempre, como um “fato natural” ou como algo “eterno”. (CHAUÍ, 2016).
1 Introdução: o imbróglio
Com a célebre frase “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher...”, Simone de Beauvoir abriu o capítulo 1 do segundo volume do seu livro “O segundo sexo”. Publicado originalmente na França em 19491, a obra, que é considerada um marco para os estudos feministas no mundo, teve sua trajetória marcada por uma série de polêmicas e críticas recebidas tanto por grupos católicos quanto pela esquerda comunista francesa de então (CHAPERON, 1999). Recentemente no Brasil, a inclusão desse trecho na prova do Exame Nacional de Cursos (ENEM) de 2015 trouxe consigo uma polêmica que reverberou tanto em duras críticas em blogs e em redes sociais quanto em investidas e questionamentos jurídicos contra a prova pelo Brasil afora. O foco dos questionamentos se direcionou contra a pertinência da escolha da inclusão da citação e da temática feminista naquele contexto e do papel ideológico que tal questão ensejava.
O pano de fundo mais imediato que embalou aquelas críticas, na verdade, é o momento histórico por que passa o país com o avanço dos direitos de minorias sociais e maior visibilidade de pautas e reivindicações de garantias de direitos, a exemplo do reconhecimento, por parte do Supremo Tribunal Federal (STF), do casamento entre pessoas do mesmo sexo. Embora se trate de avanços ainda muito pontuais e relativamente incipientes, fruto de um longo processo de lutas e reivindicações, tem sido o bastante para todo um movimento mais ou menos organizado (na sua maioria com forte cunho religioso), de oposição a essas garantias.
No caso da prova do ENEM, as críticas tiveram como alvo o próprio Ministério da Educação (MEC) que, na visão dos opositores à temática, ao optar pela inclusão do tema “feminismo” na prova estaria revelando a presença no Ministério de indivíduos e grupos manipuladores das consciências dos jovens num momento no qual a própria “família tradicional” encontra-se em risco. Obra de “infiltrados” no MEC que com suas “garras fétidas” tentam impingir aos estudantes visões de mundo, valores e ideologias nocivas e perniciosas que solapam a Escola e a própria sociedade, conforme declaração do deputado pastor Marcos Feliciano (PSC-SP), veiculada no site G1 do dia 25/10/2015 (MORENO, 2015).
Do alto, a partir de uma visão em perspectiva ampla, pode-se ver borbulhando aqui e acolá, opiniões contrárias aos movimentos sociais, às garantias e liberdades dos indivíduos num movimento de glorificação de um passado, de uma determinada ordem, de um modelo de sociedade e de família imaginados, idealizados. Enquanto “idealização”, tal ordem não passaria por um exame mais acurado a respeito de seus fundamentos e de sua correspondência em relação à realidade daqueles e daquelas que se encontravam em situação de dominação2. Potencializados pelo poder da internet e pela presença quase onipresente nas redes de televisão abertas, grupos de diferentes matizes religiosos e não religiosos perfilam-se em defesa de uma dada ordem natural das coisas de acordo com suas respectivas interpretações do que sejam os desígnios de Deuse da natureza. Da mesma forma que, mesmo sem evocar uma liturgia, diferentes grupos contrapõem-se ao que veem como uma ameaça aos jovens, à educação e à própria constituição da sociedade: a força da chamada “ideologia de gênero”.
2 A voz aos críticos: o que entendem por “ideologia de gênero”
Mas quais são as alegações utilizadas para referir-se a uma “ideologia de gênero” e como esta representaria um risco aos jovens nas escolas? Para compreender os argumentos, opta-se aqui por lançar-se mão do Requerimento de Informação N.º 565 de autoria dos deputados Izalci (PSDB/DF), Cesar Souza (PSD/SC), Diego Garcia (PHS/ PR) e outros, junto à Câmara dos Deputados em 20/05/2015 (BRASIL, 2015), cujos pressupostos, em variadas situações, têm sido utilizados para interpelar judicialmente órgãos públicos num esforço concatenado contrário a qualquer menção do “gênero” nas políticas públicas e na legislação.
Poderíamos sumarizar – de forma simplificada, é verdade – os argumentos contrários à chamada “ideologia de gênero” nos seguintes termos:
Trata-se de um conjunto de concepções (que chamam de “doutrinas”) que bebem diretamente no pensamento marxista-leninista e feminista e que propõem a destruição não só da família como também da cultura e da política com vistas à implantação da sociedade socialista;
A teoria de gênero surge nos anos 1960 como uma corrente de contraposição à família patriarcal, evocando o papel socialmente construído das diferenças de gênero, o que foi “[...] Assimilado, logo em seguida, durante a década dos anos 80, pelas teóricas do feminismo, e passou a ser utilizado pelo movimento feminista para promover a revolução marxista”;
Enquanto uma concepção na qual o masculino e o feminino não só não mais seriam determinados pelo biológico, mas sim pelo social, o conceito de “gênero” no debate acadêmico e político só encontraria eco e efetividade a partir do momento em que essa concepção fosse partilhada não só “por um pequeno punhado de feministas radicais” (p. 14), como também a partir da introdução da concepção de que os gêneros sejam “construções meramente culturais que poderiam e deveriam ser modificadas pela legislação até obter não apenas a completa eliminação de todas as desigualdades entre os gêneros, mas o próprio reconhecimento legal da não existência de gêneros enquanto construções definidas e distintas” (p. 15);
Haveria ainda, segundo estes, uma indefinição ou uma falta de clareza do que a palavra “gênero” signifique. Se um termo cambiável e mais elegante para sexo, se sinônimo de masculino e feminino ou se um papel atribuído socialmente aos indivíduos. Por detrás de tal indefinição o que ocorre na verdade, segundo os críticos, seria a sua utilização “para promover uma revolução cultural sexual de orientação neomarxista com o objetivo de extinguir da textura social a instituição familiar” (p. 17). Mais adiante, prossegue o documento referindo-se à educação, esta seria “uma tarefa exclusiva do Estado, e não existiriam mais traços diferenciais entre o masculino e o feminino. Em um mundo de genuína igualdade, segundo esta concepção, todos teriam que ser educados como bissexuais e a masculinidade e a feminilidade deixariam de ser naturais” (p. 17).
Com tal capacidade atribuída de destruição da família e com os riscos daí advindos, firma-se então uma trincheira relativamente coesa visando deter ou barrar tais pensamentos e posturas políticas na sua influência na educação dos jovens. Esta defesa tem se consubstanciado na atuação parlamentar no Congresso Nacional e nas Câmaras estaduais e municipais, não só eliminando a palavra “gênero” dos documentos e das legislações sobre o tema, mas criando legislações restritivas ao próprio trabalho docente. Tal discussão não passou incólume no momento da construção do Plano Nacional de Educação (PNE) tendo em vista as sugestões – acatadas, diga-se de passagem – para que toda e qualquer referência ao termo “gênero” fosse retirada do documento.
Como é sabido, o PNE é uma Lei Federal que visa fixar objetivos e metas para área educacional a serem alcançadas num período de dez anos. Constitui-se, portanto, num importante instrumento para a efetivação de ações e políticas públicas, em diferentes níveis de governo, visando à melhoria da Educação no país (BRASIL, 2014a). O documento estabelece dez diretrizes além de metas e estratégias consonantes com aquelas diretrizes (BRASIL, 2014b). Após intenso debate entre diversos setores da sociedade, a Lei foi promulgada em junho de 2014 com uma significativa alteração, feita pelo Senado Federal: a retirada da palavra “gênero” do corpo do texto. Assim, em vez da redação inicial que propunha “a superação de desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da igualdade racial, regional, de gênero e de orientação sexual” restou somente o objetivo expresso de “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”. “Gênero” como se vê, tornou-se uma palavra maldita, cuja simples menção traria consigo todo um conjunto de implicações nefastas contrárias aos alicerces da família e da ordem estabelecida.
Nesse mesmo contexto, o chamado “Movimento Escola Sem Partido”3 tem incitado um clima de “ódio aos professores” (2016a) e de criminalização das práticas docentes (PENNA, 2016; RAMOS, 2017), por meio de ações visando principalmente à criação de aparatos legais para punir profissionais da educação que abordem questões de gênero e correlatas ou que promovam suas “preferências ideológicas”, por meio da “doutrinação”.
Estamos, portanto, diante de uma disputa por hegemonia em torno daquilo que se entende por educação e pelo papel a ser desempenhado pelos educadores e pela escola na sociedade brasileira contemporânea. Ao fim e ao cabo o que se tem é uma luta política pela fixação de significados por meio de práticas discursivas (que são, essencialmente, práticas políticas), “na tentativa de dominar o campo da discursividade, de deter o fluxo das diferenças, de construir um centro” (LACLAU; MOUFFE, 2015, p.187).
3 A ideologia da ideologia de gênero
Os críticos da inclusão da discussão sobre gênero nas escolas lhes associam ao epíteto “ideologia” num sentido ou formato pejorativo ou digno de desqualificação. “Ideologia de gênero”, nesse sentido, refere-se a um conjunto de ideias construídas por grupos sociais bem definidos, visando incutir valores e crenças na sociedade, especialmente por meio da educação, de forma perniciosa e insidiosa.
A “ideologia” figura como um importante verbete em dicionários da área de Ciências Humanas e, pelos seus variados usos nos debates contemporâneos no Brasil, faz-se necessário revisitar esse conceito, a fim de mais bem qualificá-lo.
O filósofo Destutt de Tracy é considerado o criador do vocábulo ideologia (BOUDON; BOURRICAUD, 1993). A sua obra, produzida num período de efervescência na França de final do século XVIII e início do XIX, tinha como preocupação fundamental os aspectos sensíveis, biológicos da formação do pensamento. Ideologia, nesse contexto, significava “ciência das ideias” ou “análise das ideias” dedicando-se à observação e à descrição da mente humana como um objeto natural, um mineral ou planta. Ideologia, assim, seria parte da zoologia (BARTH, 1976).
Aquilo que poderia significar, à primeira vista, uma ciência livre de maiores considerações ou implicações políticas, na verdade se insere num quadro de conflitos desde o seu nascedouro. É conhecida, nesse sentido, a querela entre os filósofos comprometidos com essa corrente e Napoleão Bonaparte sintetizada na sua célebre declaração de que
Todas as desgraças que afligem nossa bela França devem ser atribuídas à ideologia, essa tenebrosa metafísica que, buscando com sutilezas as causas primeiras, quer fundar sobre suas bases a legislação dos povos, em vez de adaptar as leis ao conhecimento do coração humano e às lições da história. (CHAUÍ, 2004 p.10-11).
À ideologia e aos ideólogos (como Napoleão chamou os filósofos dessa corrente) é atribuído um caráter negativo, pejorativo no cenário francês de então. Ideólogos eram então aqueles se opunham ao despotismo napoleônico, às medidas autocráticas, ao tolhimento das liberdades e ao peso da religião (BARTH, 1976). O germe da desordem e da contenda com a política de então residiria justamente na defesa, por parte dos ideólogos, de que a investigação da capacidade mental dos homens deveria ser feita sem a interferência de considerações religiosas de nenhum tipo, da mesma forma que a pesquisa científica deveria ser feita sem restrições. E foi a partir dessa ordem racional, pautada na liberdade como condição fundamental ao conhecimento da natureza preconizada por essas ideias científicas, que se fundamentaram as iniciativas de reforma pedagógica na França de então, com a preconização de uma educação popular, nacional pública e universal (PIMENTA, 2012; BARTH, 1976).
Na concepção de Marx, por seu turno, a ideologia refere-se a uma “falsa consciência”, socialmente determinada pelas relações de produção e de dominação (BOBBIO; MATTEUCI; PASQUINO, 2004). Grosso modo, a ideologia objetiva escamotear o fundamento da sociedade capitalista: a exploração do homem pelo homem e a extração da mais-valia num esforço de “naturalização” das relações sociais e de negação do antagonismo de classes. A ideologia surge, assim, como um instrumento de dominação de uma classe sobre outra (CHAUÍ, 2004). Lênin muda o foco da definição da ideologia desse caráter negativo, de falsa consciência, para um sentido mais amplo compreendendo-a como “armas doutrinais de que se munem as classes sociais” ou como “recursos de combates dos antagonismos da luta de classe” (BOUDON; BOURRICAUD, 1993, p. 275).
Nesse ponto parece-nos oportuno incluir no debate aquilo que Norberto Bobbio chamou de sentido fraco e de sentido forte da ideologia (BOBBIO; MATTEUCI; PASQUINO, 2004, p. 587). No seu sentido fraco a ideologia reveste-se de um caráter mais “neutro”, um sentido mais geral, relativo a um conjunto de crenças e valores relativos à ordem pública e tendo a função de orientar o comportamento coletivo; um programa partidário com vistas à ação política. Pode ser considerado, ainda nesse sentido fraco, como um conjunto de crenças políticas presentes numa sociedade (elites ou população em geral). No seu sentido forte, a ideologia liga-se à concepção marxiana de “falsa consciência” ou falsa representação da realidade. A “falsidade” da ideologia reside na própria falsa representação da realidade e a sua não correspondência com os fatos. É numa direção parecida que mira o The Dictionary of Human Geography (GREGORY et al., 2009), ao referir-se a uma dupla possibilidade de se pensar a ideologia, ou seja, tanto como um conjunto de crenças e ideias presentes na vida social quanto no seu papel na reprodução das relações de poder. Nesse último sentido, fortemente representado pela teoria marxista, a ideologia é vista como uma visão distorcida, invertida da realidade.
Em suma, utilizando-se das observações de Nogueira (2015), o conceito de ideologia reveste-se de uma “polarização básica”, na qual: “Um ideólogo pode ser, assim, ou o representante ativo de uma corrente de ideias ou alguém que deliberadamente superpõe suas convicções e idiossincrasias doutrinárias aos fatos da vida real” (NOGUEIRA, 2015, p. 440).
Demo-nos por satisfeitos com esses elementos – parciais, diga-se de passagem - deixando-se de lado outros autores e teorias sobre a ideologia. O que nos interessa nesse momento mais de perto é discutir a associação entre “gênero” e “ideologia” ou as alegações dos grupos de interesse acerca dos riscos da propagação de uma “ideologia de gênero” nas escolas e, nesse momento, explicar a provocação intelectual do título do presente texto ao referir-se a uma “ideologia da ideologia de gênero”.
À medida que há uma construção mental, uma justificação e contra-argumentação que chamam, pejorativamente, de ideologia de gênero, os seus críticos formulam um corpo de ideias visando desqualificar o debate. Não importa se esse corpo de ideias seja bem estruturado ou não, qualificado ou não, verdadeiro ou não, carregado de interesses de grupos ou não. Esses não são os questionamentos imediatos que nos interessam aqui. O que importa é que a crítica vem acompanhada de toda uma argumentação e de uma ação política baseada num dado programa - difuso, diga-se de passagem - em relação ao “gênero” e em oposição à simples menção nos documentos oficiais, como no PNE.
Nesse sentido, a “ideologia” da “ideologia de gênero” se refere a um conjunto de crenças e ideias presentes na sociedade a respeito do que seja família, religião, vontade de Deus ou natureza e que tentam, por meio do embate político, vir a tornar-se um discurso hegemônico: a acusação de a “ideologia de gênero” ser uma construção com o objetivo de promover a destruição da família e fazer-se a revolução socialista-marxista. Portanto, a “ideologia de gênero”, segundo seus críticos, procura criar uma falsa consciência, uma visão idealizada de mundo no qual a fronteira entre o masculino e o feminino se esvai. Aos professores caberia o papel de “ideólogos” que “deliberadamente superpõem suas convicções e idiossincrasias doutrinárias aos fatos da vida real”, conforme citação anterior de Nogueira (2015).
Contudo, ao seu tempo, a crítica à teoria de gênero se torna um discurso tão fortemente normativo (no sentido de querer-se impor como a visão do que seja o certo, de quais comportamentos são ou não desejáveis), que se transforma, ela própria numa ideologia, numa visão idealizada e idealizadora do mundo visando à manutenção de uma determinada ordem social.
Portanto, apesar de arvorar-se um caráter objetivo, neutro, a crítica à discussão sobre gênero não se colocaria, ela própria como uma poderosa ferramenta ideológica? Um exame mais aprofundado poderia revelar os interesses subjacentes, os grupos apoiadores, as referências normativas subsumidas nessas críticas e, ao fim e ao cabo, o seu caráter ideológico, baseada numa concepção conservadora da sociedade e da família (AÇÃO EDUCATIVA…, 2016). E isso, principalmente, se tivermos em mente a existência de diretrizes de ação política visando influenciar o jogo político mais amplo e, mesmo amiúde, na tentativa de liderança e disputas político-partidárias.
Na verdade, seja no seu sentido fraco ou forte vivemos num mundo de ideologias, no plural. Por isso,
Os interesses sociais que se revelam ao longo da história e se entrelaçam de modo conflituoso manifestam-se, no plano da consciência social, na grande diversidade de discursos ideológicos relativamente autônomos (mas de forma nenhuma independentes), que exercem forte influência mesmo sobre os processos materiais mais tangíveis do metabolismo social (MÉSZÁROS, 1996, p. 22 e 23, grifos no original).
Se vivemos num mundo de ideologias conflitantes haveria a possibilidade de uma neutralidade na Educação? É impossível imaginar a possibilidade de uma neutralidade, da parte de quem quer que seja e, principalmente, de professores? Na verdade, a prática pedagógica é eivada de escolhas e visões de mundo, de teorias e de conceitos, de objetivos e de diretrizes, de embates e de contradições. Obviamente que, ao indicar isso, não se está defendendo uma educação calcada em proselitismos políticos ou mesmo religiosos, mas sim se está chamando a atenção para o fato de que o discurso da neutralidade e da não política é, ao seu modo, também, um discurso ideológico e político.
O que se ensina nas escolas não é uma enumeração neutra de conteúdos e tópicos. Há, na verdade, fortes nexos entre currículo, relações de poder, ideologia e dominação (APPLE, 2006; SILVA, 2003; GOODSON, 1997; ERMANI; STRAFORINI, 2015), revelando que os currículos “não são conteúdos prontos a serem passados para os alunos”, mas sim uma “construção e seleção de conhecimentos e práticas produzidas em contextos concretos e em dinâmicas sociais, políticas e culturais, intelectuais e pedagógicas” (MOREIRA; CANDAU, 2007, p. 9). Por isso, o currículo “é um território em que se travam ferozes competições em torno dos significados. O currículo não é um veículo que transporta algo a ser transmitido e absorvido, mas sim um lugar em que, ativamente, em meio a tensões, se produz e se reproduz a cultura” (MOREIRA; CANDAU, op. cit., p. 28).
Assim sendo, não há currículos neutros, como não existe neutralidade na escolha dos conteúdos e na formatação dos componentes curriculares (ou seja, das disciplinas) que compõem a Educação Básica. Martins e Hoffmann (2007) defenderam a tese de que os livros didáticos de ciências numa fase muito inicial da escolarização (1.ª e 2.ª séries do Ensino Fundamental) contribuem para uma educação sexual das crianças sugerindo formas de pensar e agir. Segundo as autoras, os livros trazem textos sociais voltados para o desenvolvimento da percepção do que é ser mulher e do que é ser homem, sugerindo formas de pensar e de agir, criando, intrinsecamente, sugestões que podem ser processadas ativamente pelos alunos, de acordo com suas experiências pessoais.
Apesar de todos os progressos alcançados pelas mulheres nas últimas décadas, os resultados quanto aos papéis de gênero, não diferem dos achados nos estudos de décadas anteriores a esta. Os estudos sobre livros didáticos, revisados aqui, sugerem que a identidade feminina está subordinada em favor da dominação masculina. Desta forma, estes livros podem contribuir para o controle patriarcal das vidas femininas, reforçando, a partir das relações de gênero, as condições que legitimam as estruturas de poder existentes. (MARTINS; HOFFMANN, 2007, p. 146).
Há, evidentemente, aquelas disciplinas mais sujeitas a interpretações – e acusações – de serem ferramentas ideológicas, como a Sociologia (MORAES, 2014); mas mesmo no caso das ciências naturais, tidas como mais objetivas, é possível se identificar e discutir os papéis sexuais propagados pela mídia escrita por meio de discursos biológicos que “justificam e naturalizam as masculinidades e feminilidades como evidências biológicas, o que acaba por produzir e legitimar formas supostamente naturais de ser homem ou mulher e comportamentos esperados socialmente” (FREITAS; CHAVES, 2013). Em suma, o discurso da neutralidade pode revestir-se de práticas e do ensino de formas de pensar que reforçam determinados padrões consoantes aos interesses de determinados grupos sociais e de suas visões particulares de mundo.
4 Palavras finais
Por meio do presente texto, procurou-se trazer elementos ao debate sobre a relação entre ideologia, gênero e educação visando lançar luz por sobre uma temática que tem sido envolta por toda uma gama de argumentações que apelam para princípios que nos são muito caros, como a família e a religião. Longe de desconsiderar ou desprestigiar esses aspectos fundamentais das sociedades humanas, o objetivo do texto foi de trazer ao debate a natureza da ideologia e a impossibilidade de se pensar numa neutralidade científica e política em qualquer âmbito de nossas vivências, aí incluída e destacada, a escola.
Por fim, mas não menos importante, cabe não nos distanciarmos, na nossa análise, da realidade cotidiana de parcelas significativas da sociedade que se encontram em condição de desvantagem ou mesmo de vulnerabilidade social. Dados já amplamente conhecidos a respeito do mercado de trabalho dão conta da desigualdade de rendimentos entre homens e mulheres e entre estes e as mulheres negras, o que revela os matizes raciais – além do de gênero – da desigualdade de renda no nosso país (GARCIA, 2016). Cabe apontar ainda, os alarmantes índices de violência contra a mulher, principalmente negras e com baixa escolaridade (WAISELFISZ, 2015) bem como a violência contra a população LGBT (BRASIL, 2016) e os alarmantes índices de evasão escolar que afetam esse grupo, principalmente os transexuais.
Incentivar um clima persecutório em relação aos professores, como é proposto pelo movimento “Escola sem partido”, não se traduzirá em melhorias efetivas na educação no nosso país. Diga-se, de passagem, que os países que obtiveram os melhores índices em avaliações internacionais são justamente aqueles que priorizam a liberdade pedagógica, o debate e o livre pensamento, e não o contrário.
Estes são dados gerais que nos ajudam a pensar que, por detrás da negação da existência de uma questão de gênero bem como da não necessidade de seu debate em todas as instâncias da vida social, pode se esconder, perigosamente, um perfil de desprestígio, violência física e simbólica, racismo e intolerância.
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Notas
Notas de autor