ARTIGOS DE REVISÃO
O conceito de gênero em três tradições de estudos: uma introdução
The concept of genre in three traditions of studies: an introduction
O conceito de gênero em três tradições de estudos: uma introdução
Vértices (Campos dos Goitacazes), vol. 19, núm. 3, 2017
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Fluminense
Recepción: 13 Julio 2017
Aprobación: 11 Diciembre 2017
Resumo: Este artigo tem como finalidade principal discutir o conceito de gênero (textual e/ou discursivo) à luz de três perspectivas teóricas bastante difundidas no Ocidente e que têm influenciado significativamente a pesquisa e o ensino de línguas com base em gêneros, especialmente no contexto brasileiro, quais sejam: a visão dialógica do chamado Círculo de Bakhtin, a abordagem britânica do Inglês para Fins Específicos e a concepção norteamericana dos Estudos Retóricos de Gêneros. O trabalho configura-se como uma pesquisa de natureza bibliográfica, finalizando com uma discussão que enceta um diálogo entre as três teorias, na busca por aspectos comuns.
Palavras-chave: Gênero, Perspectiva bakhtiniana, Escola britânica, Escola norteamericana.
Abstract: The main purpose of this article is to discuss the concept of genre (textual and/or discursive) in the light of three theoretical perspectives fairly widespread in the West, and which have significantly influenced research and the teaching of languages based on genres, especially in Brazil, namely the dialogical approach of the so-called Bakhtin Circle, the British approach known as English for Specific Purposes, and the American conception of Rhetorical Studies of Genres. The work presents a review of the literature, and closes with a discussion of the aspects that are common to the three theories.
Keywords: Genre, Bakhtinian perspective, English for Specific Purposes, Rhetorical genre studies.
1 Introdução
Com a publicação e a divulgação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), as escolas brasileiras se depararam com um novo conceito que prontamente revolucionaria o ensino de línguas (quer materna, quer adicional) e que, ao mesmo tempo, era apontado como a forma mais eficaz de desestabilizar as conhecidas práticas pedagógicas tradicionais, as quais estavam prioritariamente centradas numa gramática normativa pouco funcional e numa prática de redação que não excedia a trilogia narração/descrição/dissertação.
É assim que, aos poucos, chega às escolas e torna-se comum entre os professores o conceito de gênero1. Entretanto, repensar o ensino de línguas a partir dos gêneros requer uma reflexão teórica sólida para não se tornar somente mais um modismo, visto que os primeiros questionamentos a surgir são: o que se entende efetivamente por gênero; gênero por quê, para quê e a serviço de quem; gênero sob qual perspectiva teórica e assim por diante. Hoje, com o avanço das pesquisas linguísticas, verifica-se que existem diversas abordagens teórico-metodológicas que abordam os gêneros, as quais tanto se aproximam quanto se distanciam em seus recortes epistemológicos. Efetivamente, elas não se excluem, muito menos podem ser vistas de uma maneira taxionomicamente fechada. Na verdade, elas dialogam entre si, embora, muitas vezes, apresentem terminologias específicas. A polêmica e equivocada distinção entre “gênero textual” e “gênero discursivo”, no Brasil, é um exemplo clássico disso que aqui se afirma (ROJO, 2005).
Com efeito, algumas dessas tendências são mundialmente conhecidas e adotadas em várias universidades brasileiras e do exterior, tais como: 1) a concepção sociossemiótica; 2) a concepção sociodiscursiva; 3) a concepção sociorretórica, dentre outras, para valer-se da terminologia proposta por Meurer, Bonini e Motta-Roth (2005). Contudo, convém ressaltar que, neste artigo, discutir-se-ão tão somente duas concepções anglofônicas (o Inglês para Fins Específicos e os Estudos Retóricos de Gêneros) e uma gestada na língua russa (a perspectiva dialógica do chamado Círculo de Bakhtin). A contribuição de Mikhail Bakhtin e seu Círculo é notória principalmente no que concerne a sua concepção de linguagem e de gênero, para além do campo da Arte e da Retórica Clássica. Na verdade, concordando-se com Marcuschi (2008, p. 152), pode-se afirmar que “como Bakhtin é um autor que apenas fornece subsídios teóricos de ordem macroanalítica e categorias mais amplas, pode ser assimilado por todos nós de forma bastante proveitosa”.
2 Três tradições para o estudo dos gêneros
Cumpre observar, inicialmente, que o conceito de tradição aqui rememora o clássico artigo de Hyon (1996), mas não segue as mesmas tradições propostas pela autora. Naquele trabalho, ela se debruça especificamente sobre três correntes para o estudo dos gêneros de base exclusivamente anglófona: o Inglês para Fins Específicos, a Nova Retórica e a Linguística Sistêmico-Funcional; em outros termos, dir-se-ia que se trata das escolas britânica, norte-americana e australiana, respectivamente. Apoiando-se, de algum modo, na terminologia proposta por Bawarshi e Reiff ([2010]; 2013), o presente artigo enseja uma discussão sobre gêneros que está retoricamente organizada da seguinte forma: (i) a visão dialógica do chamado Círculo de Bakhtin; (ii) a abordagem do Inglês para Fins Específicos e (iii) a concepção dos Estudos Retóricos de Gêneros, finalizando com algumas considerações que põem em cena elementos comuns entre as três teorias.
3 A perspectiva dialógica do Círculo de Bakhtin
Bakhtin é considerado o divisor de águas no estudo dos gêneros discursivos. É assim que se inicia aqui a descrição do filósofo russo que, longe de ser linguista ou teórico da literatura, é autor2 de uma teoria, em cujo âmago estão a visão dialógica e a visão discursiva da linguagem acima de qualquer terminologia. Primeiramente, convém salientar que Bakhtin e seu Círculo não estão preocupados em estabelecer relações dicotômicas entre os fenômenos da língua. Explica-se, por exemplo, o fato de eles não diferenciarem sequer os conceitos de língua e linguagem e de dispensarem atenção à fala, como, por outros motivos, não o fizera Saussure (2006)3. Seguramente, pode-se dizer que Bakhtin não é o teórico dos conceitos e das definições etiquetadas; sua discussão é de natureza filosófica, configurando-se como o teórico das questões discursivas. Enquanto Saussure era linguista, sob a influência do Positivismo, Bakhtin era filósofo, cuja preocupação está muito além de criar uma teoria linguística ou literária. Sob a influência do marxismo, o mestre russo trata os fenômenos linguísticos do ponto de vista sociológico, considerando, sobretudo, os valores ideológicos que perpassam a língua(gem), a qual constrói a realidade e é constituída por ela. Portanto, como disse Marcuschi (2008, p. 19, itálicos do autor), essa visão “toma a língua como um conjunto de práticas enunciativas e não como forma descarnada”.
Bakhtin e seus seguidores partem de uma abordagem crítica aos estudos linguísticos produzidos até então. Nesse sentido, atacam muito da literatura linguística, desde os estudos filológicos à abordagem dos neogramáticos, perpassando duas grandes correntes que eles denominaram de subjetivismo idealista (ou subjetivismo individualista) e objetivismo abstrato; essa última, uma crítica explícita ao formalismo saussuriano. Aliás, o objetivismo abstrato centra-se no sistema linguístico, bem entendido como o sistema das formas lexicais, gramaticais e fonéticas. Decorre daqui “uma visão de língua sob um olhar racionalista, em que o código linguístico assemelha-se ao código matemático. Neste ínterim, não interessa o signo que reflete a realidade, mas a relação de signo para signo no interior de um sistema fechado, como pura abstração” (NUNES, 2010, p. 1816).
Diante disso, o Círculo de Bakhtin nega as duas tendências do pensamento filosófico-linguístico acima referidas, que dominaram todo o movimento formalista, pois, para ele, “a língua vive e evolui historicamente na comunicação verbal concreta, não no sistema linguístico abstrato das formas da língua nem no psiquismo individual dos falantes” (BAKHTIN; VOLOCHINOV, 2009, p. 128, itálicos dos autores). Com efeito, a noção de língua na perspectiva do Círculo refere-se à língua viva, que acontece na interação verbal entre os sujeitos do discurso. É, portanto, dialógica e atravessada pela ideologia. Não é uma língua neutra, virtual, abstrata; ao contrário, caracteriza-se como dinâmica, plástica e flexível. Como reflete e refrata a realidade, a língua é tão heterogênea e complexa tanto quanto as relações humanas. Com ele a palavra.
Temos em vista não o minimum linguístico abstrato da língua comum, no sentido do sistema de formas elementares (de símbolos linguísticos) que assegure um minimum de compreensão na comunicação prática. Tomamos a língua não como um sistema de categorias gramaticais abstratas, mas como uma língua ideologicamente saturada, como uma concepção de mundo, e até como uma opinião concreta que garante um maximum de compreensão mútua, em todas as esferas da vida ideológica (BAKHTIN, 1998, p. 81).
Bakhtin e seus seguidores não negam a existência do sistema linguístico. Eles questionam os estudos linguísticos que não levam em consideração as questões discursivas inerentes ao mundo da vida, o que, segundo eles, tornaria a língua uma mera abstração. Bakhtin argumenta que a língua possui duas forças, as quais não se contradizem dicotomicamente, mas que são aplicadas concomitantemente pelos sujeitos do discurso no momento da enunciação: as forças centrípetas e as forças centrífugas. Enquanto as primeiras dizem respeito aos processos de centralização e de unificação da língua, as segundas referem-se ao curso da descentralização e da desunificação. Desse modo, depreende-se que as forças centrípetas concernem ao que é estático, ao passo que as forças centrífugas tendem para a inovação, para a dinâmica da língua. Bakhtin (1998) defende que esta estratificação e contradição reais não são apenas a estática da vida da língua, mas também a sua dinâmica: a estratificação e o plurilinguismo ampliam-se e aprofundam-se na medida em que a língua está viva e desenvolvendo-se; ao lado das forças centrípetas caminha o trabalho contínuo das forças centrífugas da língua, ao lado da centralização verbo-ideológica e da união caminham ininterruptos os processos de descentralização e desunificação. Em Estética da Criação Verbal, o estudioso russo também reconhece a existência do sistema linguístico, quando diz:
A língua como sistema possui uma imensa reserva de recursos puramente linguísticos para exprimir o direcionamento formal: recursos lexicais, morfológicos (os respectivos casos, pronomes, formas pessoais dos verbos), sintáticos (diversos padrões e modificações das orações). Entretanto, eles só atingem direcionamento real no todo de um enunciado concreto. A expressão desse direcionamento real nunca se esgota, evidentemente, nesses recursos especiais (gramaticais) (BAKHTIN, 2003, p. 306).
Portanto, há de se convir que nem tudo na língua é homogêneo, bem como nem tudo prescinde de regras. Há forças centralizadoras – o sistema normativo – que coexistem com forças descentralizadoras – a diversidade, as variações, as dispersões. As palavras do mestre russo evidenciam que uma língua vai muito além da sua estrutura lexicogramatical, devendo ser analisada no contexto dialógico da interação verbal. Essa contínua insistência do Círculo de Bakhtin em busca do concreto, do palpável, do que transcende o plano do puramente linguístico, leva-o a afirmar reiteradamente que o mundo teórico não deve se dissociar do mundo da vida, pois:
um ato de nossa atividade, de nossa real experiência, é como um Jano bifronte. Ele olha em duas direções opostas: ele olha para a unidade objetiva de um domínio da cultura e para a unidade irrepetível da vida realmente vivida e experimentada. Mas não há um plano unitário e único onde ambas as faces poderiam mutuamente se determinar com relação a uma única e singular unidade. É apenas o evento único do Ser no processo de realização que pode constituir essa unidade única; tudo que é teórico ou estético deve ser determinado como um momento constituinte do evento único do Ser, embora não mais, é claro, em termos teóricos ou estéticos (BAKHTIN, 1993, p. 20).
O filósofo russo, nesta citação extraída de um dos seus manuscritos inacabados, redigido na sua juventude, chama atenção para o fenômeno da enunciação como o ato irrepetível, responsável, único e singular do dizer. Assim, é somente na realidade vivida e experimentada que o Ser se constitui como Ser. Portanto, cultivar apenas o teoricismo sem uma responsabilidade com o mundo da vida seria, em termos bakhtinianos, uma “perniciosa divisão”. Asseverando-se com Marcuschi (2008, p. 152) que “Bakhtin representa uma espécie de bom-senso teórico em relação à concepção de linguagem”, entende-se que “a língua constitui um processo de evolução ininterrupto, que se realiza através da interação verbal social dos locutores” (BAKHTIN/ VOLOCHÍNOV, 2009, p. 131-132, itálico dos autores).
Contudo, é fundamental ressaltar que Bakhtin não criou o conceito de gênero. A propósito, Marcuschi (2008, p. 147) diz que “o estudo dos gêneros não é novo, mas está na moda”, esclarecendo que “seria uma gritante ingenuidade histórica imaginar que foi nos últimos decênios do século XX que se descobriu e iniciou o estudo dos gêneros textuais”, pois já se discutia gêneros desde a Antiguidade Clássica, na Literatura e na Retórica. Como disse Faraco (2003, p. 112), os estudos anteriores a Bakhtin “privilegiavam as formas em si e chegavam a operar normativamente sobre sua reificação”. Portanto, depreende-se que as abordagens feitas eram de cunho estrutural, sem levar em consideração a historicidade e a maleabilidade dos gêneros. Assim sendo, uma das grandes contribuições de Bakhtin (2003, p. 262, itálicos do autor) nessa questão – em consonância com a sua visão dialógica de língua – é reconhecer que “cada campo de utilização da língua elabora seus tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros do discurso.” Dessa forma, Bakhtin leva a ver os gêneros como construtos dinâmicos, ao mesmo tempo em que se mostram equilibrados, incluindo aí toda e qualquer forma de discurso social, inclusive os gêneros do cotidiano.
Em Marxismo e filosofia da linguagem, Bakhtin e Volochínov (2009, p. 44) chegam a afirmar que “cada época e cada grupo social têm seu repertório de formas de discurso na comunicação socioideológica”. Vê-se, por conseguinte, que Bakhtin não trata os gêneros discursivos de forma engessada, pronta e imutável. Ao contrário, embora reconheça certa padronização em função da recorrência, pois os gêneros do discurso têm estrutura composicional, o filósofo soviético enfatiza que eles são flexíveis e plásticos, assim como dinâmica é a vida. Ora, essa noção de gênero com relativa estabilidade – ou equilíbrio instável – provocou uma ruptura com a perspectiva formalista, elucidando que os gêneros não são enrijecidos, porém têm fronteiras muito tênues entre si, chegando mesmo a fundirem-se, o que justifica a hibridização dos gêneros discursivos.
A teoria bakhtiniana centra-se no fato de se considerar não somente os gêneros escritos, mas também os gêneros orais; aliás, o Círculo de Bakhtin preocupa-se em fazer referência à fala, visto que sua perspectiva não é dicotômica. Assim, a teoria bakhtiniana contempla desde a réplica do diálogo cotidiano aos tratados científicos, filosóficos e artísticos. Bakhtin (2003) afirma que os gêneros do discurso caracterizam-se por três elementos que estão indissoluvelmente imbricados: o conteúdo temático, o estilo e a construção composicional, os quais são determinados pelas necessidades comunicativas de determinado campo da comunicação discursiva. Como as atividades humanas são multiformes, é justificável a riqueza dos gêneros, bem como sua heterogeneidade.
Ademais, o mestre soviético chama atenção para dois conceitos basilares nesta discussão: os gêneros primários e os gêneros secundários. Enquanto os primeiros estão relacionados aos gêneros mais simples formados na comunicação discursiva imediata – gêneros da conversa familiar, das narrativas espontâneas, das atividades efêmeras do cotidiano etc. –, os segundos dizem respeito àqueles mais complexos e, relativamente, mais desenvolvidos e organizados – romances, dramas, pesquisas científicas etc. Ainda assim, é de fundamental importância não associar os gêneros primários à oralidade nem os gêneros secundários à escrita. O bilhete, por exemplo, que é um gênero escrito, deve ser tomado como um gênero primário, enquanto uma conferência, que é um gênero oral, pertence aos gêneros secundários. A diferença não reside, portanto, na modalidade de realização da língua(gem), mas na complexidade (mais formal) ou simplicidade (mais informal) do gênero. É válido sublinhar ainda que, para Bakhtin, o gênero discursivo é a unidade real da comunicação discursiva, pois sem ele a comunicação humana certamente ficaria comprometida. Segundo o mestre russo:
Nós aprendemos a moldar o nosso discurso em forma de gênero e, quando ouvimos o discurso alheio, já adivinhamos o seu gênero pelas primeiras palavras, adivinhamos um determinado volume (isto é, uma extensão aproximada do conjunto do discurso), uma determinada construção composicional, prevemos o fim, isto é, desde o início temos a sensação do conjunto do discurso que em seguida apenas se diferencia no processo da fala. Se os gêneros do discurso não existissem e nós não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo do discurso, de construir livremente e pela primeira vez em cada enunciado, a comunicação discursiva seria quase impossível (BAKHTIN, 2003, p. 283).
Seguindo essa discussão, o teórico russo chega mesmo a afirmar que se aprende uma língua por meio de gêneros. Por isso, não basta apenas dominar as formas da língua. Conforme disse o próprio Bakhtin (2003, p. 284), “muitas pessoas que dominam magnificamente uma língua sentem amiúde total impotência em alguns campos da comunicação precisamente porque não dominam na prática as formas de gênero de dadas esferas”. Convém salientar que os gêneros do discurso não existem no vazio. Eles não pairam no caos. Não são neutros nem estanques. Todo dizer é orientado para o que já foi dito e influenciado pelo que ainda se vai dizer. É com essa concepção que Bakhtin (2003, p. 296) entende o enunciado como “um elo na cadeia da comunicação discursiva de um determinado campo” e, mais adiante esclarece que “o falante não é um Adão bíblico, só relacionado com objetos virgens ainda não nomeados, aos quais dá nome pela primeira vez” (BAKHTIN, 2003, p. 300). Com efeito, enquanto elo, tal enunciado só se constrói dialogicamente; ademais, uma construção dialógica supõe sujeitos que interagem entre si ativamente, alternando os seus papéis – ora como falante/escrevente, ora como ouvinte/leitor. Assim, é possível dizer, com Bakhtin, que todo enunciado suscita resposta, quer imediata, quer retardada. Esse é o princípio da responsividade, propriedade de todos os gêneros.
4 A abordagem de gêneros do Inglês para Fins Específicos
Os estudos de gêneros, à luz da perspectiva do Inglês para Fins Específicos (English for Specific Purposes), tem dado uma contribuição fundamental, especialmente a estudantes de pós-graduação que não são falantes nativos de inglês, contribuindo para o letramento acadêmico desses alunos. Todavia, ressalta-se que a influência dessa concepção de gênero não se restringe aos meios acadêmicos de base anglófona, mas tem influenciado pesquisas sobre gêneros em outros domínios discursivos ao redor do mundo, inclusive no Brasil, tais como estudos sobre o ofício – gênero da correspondência oficial e empresarial – (SILVEIRA, 2005) e a carta do leitor na mídia impressa (NUNES, 2012), dentre outros. As figuras mais notáveis que representam essa concepção teóricometodológica para a análise de gêneros são, de fato, o linguista britânico John Malcolm Swales e o linguista indiano Vijay Kumar Bhatia.
A proposta de Swales (1990) para a análise de gêneros – especialmente voltada para aqueles do mundo acadêmico – tem contemplado gêneros variados, considerando tanto seus aspectos formais, quanto os discursivos. Ademais, no dizer de Hemais e Biasi-Rodrigues (2005), essa perspectiva é tributária de uma visão eclética do autor, uma vez que, para a construção da sua teoria, ele se ancora em vários estudos previamente realizados por outros estudiosos em diferentes campos de atuação, tais como: os estudos sobre folclore, os estudos sobre habilidades e estratégias usadas principalmente para leituras com objetivos variados, os estudos literários, a linguística, a retórica, a etnografia, a antropologia cultural, a análise do discurso, dentre outros. Todas essas concepções teóricas constituem-se em fontes valiosas para a própria formulação dos conceitos de gênero, propósito comunicativo . comunidade discursiva, marcas da perspectiva do autor. Assim, convém ressaltar que, para Swales:
Um gênero compreende uma classe de eventos comunicativos, cujos exemplares compartilham os mesmos propósitos comunicativos. Esses propósitos são reconhecidos pelos membros mais experientes da comunidade discursiva original e constituem a razão do gênero. A razão subjacente dá o contorno da estrutura esquemática do discurso e influencia e restringe as escolhas de conteúdo e estilo. O propósito comunicativo é o critério que é privilegiado e que faz com que o escopo do gênero se mantenha enfocado estreitamente em determinada ação retórica compatível com o gênero. Além do propósito, os exemplares do gênero demonstram padrões semelhantes, mas com variações em termos de estrutura, estilo, conteúdo e público-alvo. Se forem realizadas todas as expectativas em relação àquilo que é altamente provável para o gênero, o exemplar será visto pela comunidade discursiva original como um protótipo. Os gêneros têm nomes herdados e produzidos pelas comunidades discursivas e importados por outras comunidades. Esses nomes constituem uma comunicação etnográfica valiosa, mas precisam de validação posterior (SWALES, 1990, p. 58).
O conceito de gênero referido acima leva em consideração pelo menos cinco pontos que merecem ser colocados em relevo: (i) a ideia declasse, pois o gênero passa a ser considerado como uma classe de eventos comunicativos, levando-se em consideração as suas condições de produção e recepção; (ii) a noção de propósito comunicativo compartilhado, isto é, os objetivos, a finalidade do gênero; (iii) a prototipicidade, entendida como os traços especificados na definição do gênero; (iv) a razão ou lógica subjacente ao gênero, ou seja, as convenções esperadas e manifestadas nos gêneros, as quais facilitam o seu reconhecimento pelos membros da comunidade; e (v) a terminologia, uma vez que os membros mais experientes e ativos da comunidade discursiva reconhecem os eventos comunicativos como ações retóricas recorrentes e, portanto, dão nomes ao gêneros.
Todavia, posteriormente, o próprio Swales revisitou o conceito de propósito comunicativo – entendido inicialmente como o critério privilegiado na definição do gênero, embasando não só a sua estrutura esquemática, como também as escolhas em torno de conteúdo e estilo –, fazendo algumas modificações em sua teoria, uma vez que o autor reconhece as limitações dessa definição. Dessa forma, o propósito não deve ser tomado a priori como chave determinante para a definição de um gênero textual. Advertem Askehave e Swales (2009) que o propósito comunicativo assumiu um status de certeza absoluta, um ponto de partida conveniente, mas subestimado pelos analistas. Contudo, a maioria das obras importantes dentro da linha das primeiras publicações nesta área tem estabelecido, de várias formas, que os propósitos, os objetivos ou resultados públicos são mais evasivos, múltiplos, sobrepostos e complexos do que originalmente concebidos. Com efeito, essa não é uma questão tão simples que possa ser resolvida a partir de um olhar superficial sobre um gênero. Ao contrário, exige-se uma análise acurada do linguístico e seus entornos, a fim de que se possa chegar a uma conclusão razoável do(s) propósito(s) que permeia(m) determinado gênero. Aos olhos do analista, a questão se reveste de maior complexidade que, certamente, escapa à ótica do leitor comum. Não é sem razão que:
o propósito comunicativo não pode, por si mesmo, ajudar os analistas a decidirem rápida, tranquila e indiscutivelmente quais dentre os textos A, B, C e D pertencem ao gênero X ou Y, pois esses analistas dificilmente saberão, de saída, quais são os propósitos comunicativos daqueles textos. Antes, o que é imediatamente manifesto ao analista do gênero não é o propósito, e sim a forma e o conteúdo. Além disso, mesmo que um texto se refira ao próprio propósito comunicativo de forma explícita e evidente, como em ‘o propósito dessa carta é informar que sua conta excedeu o limite de crédito’, diríamos que é temerário interpretar sempre tais enunciados do modo como se apresentam (ASKEHAVE; SWALES, 2009, p. 228).
Para comprovar que o conceito de propósito comunicativo é fluido e indefinido, Askehave e Swales (2009) recorrem a alguns gêneros do quotidiano, dentre eles, a lista de compras. Os autores sustentam que a lista de compras pode cumprir diferentes propósitos, posto que, conforme pesquisas têm mostrado, além de servir para fazer a pessoa recordar o que se precisa comprar – como uma forma de auxílio à memória – a lista de compras também é usada por outras pessoas como autodisciplina, isto é, para prevenir compras por impulso. Mais que isso, ela ainda pode funcionar como um instrumento de esperança romântica, caso um jovem fortemente atraído pela balconista queira convencê-la de sua aptidão como um possível companheiro. Askehave e Swales (2009), à guisa de sugestão, insistem que o propósito (mais exatamente, os conjuntos de propósitos comunicativos) retenha o status de um critério “privilegiado”, mas em um sentido diferente daquele inicialmente proposto por Swales (1990). Não é mais privilegiado pela centralidade, proeminência ou clareza evidente, mas por sua posição como recompensa ou retribuição aos investigadores no momento em que chegam a completar o círculo hermenêutico.
Em se tratando de comunidade discursiva, esta pode ser entendida como “um grupo sociorretórico heterogêneo que compartilha objetivos e interesses ocupacionais ou recreativos” (SWALES, 2009, p. 205). Entretanto, a questão parece não ser tão pronta e acabada assim; dois problemas, pelo menos, surgem com essa definição: um deles diz respeito à dificuldade em se reconhecer tais comunidades e o outro está relacionado aos critérios usados para definir uma comunidade de discurso. Embora reconhecendo ser essa uma tarefa difícil, Swales (1990, p 24-27), inicialmente, enumerou seis critérios que poderiam definir uma comunidade discursiva: (i) possuir um conjunto de objetivos públicos comuns amplamente aceitos; (ii) possuir mecanismos de intercomunicação entre seus membros; (iii) usar mecanismos de participação principalmente para prover informação e feedback; (iv) utilizar e, portanto, possuir um ou mais gêneros para a realização comunicativa de seus objetivos; (v) desenvolver um léxico específico; e (vi) admitir membros com um grau adequado de conhecimento relevante e perícia discursiva. Essa visão do autor causou muitos debates, pois partia, para muitos outros estudiosos, de critérios reducionistas, utópicos e estáticos. Além do mais, faltavam-lhe mecanismos para distinguir ou medir a abrangência do termo. Questionou-se ainda que tal definição se aplicava apenas a comunidades já formadas e, portanto, não abarcava as comunidades em formação ou em fase de transição. Além disso, não contemplava o dissenso ou as tensões da comunidade, nem a possibilidade de incorporar avanços e novidades.
Essas implicações, de uma forma ou de outra, levaram Swales (2009, p. 207-208) a reformular os critérios definidores de uma comunidade discursiva, tomando-a numa dimensão mais complexa. Nessa nova concepção, uma comunidade de discurso: (i) possui um conjunto perceptível de objetivos. Esses objetivos podem ser formulados pública e explicitamente e também podem ser, no todo ou em parte, aceitos pelos membros; podem ser consensuais; ou podem ser distintos, mas relacionados; (ii) possui mecanismos de intercomunicação entre seus membros; (iii) usa mecanismos de participação para uma série de propósitos: para prover o incremento da informação e do feedback; para canalizar a inovação; para manter os sistemas de crenças e de valores da comunidade; e para aumentar seu espaço profissional; (iv) utiliza uma seleção crescente de gêneros para alcançar seu conjunto de objetivos e para praticar seus mecanismos participativos. Eles frequentemente formam conjuntos ou séries; (v) já adquiriu e continua buscando uma terminologia específica; (vi) possui uma estrutura hierárquica explícita ou implícita que orienta os processos de admissão e de progresso dentro dela.
Para ilustrar suas considerações teóricas, Swales (2009) recorre a dois exemplos. Primeiro, ele cita o caso de uma associação da qual faz parte; tal instituição pode ser considerada como uma comunidade discursiva em evolução, pois possui muitos dos mecanismos elencados para definir uma comunidade de discurso: reuniões mensais, boletim interno, rede de comunicação por telefone, hierarquia informal entre “veteranos” e recém-admitidos na comunidade, gêneros convencionalizados etc. Em seguida, o linguista britânico faz referência à marinha americana, a qual ele considera uma comunidade discursiva altamente conservadora e explica por quê: uma mensagem codificada de modo esquisito – na visão do leitor comum – foi apresentada a 350 oficiais da referida corporação e, curiosamente, em menos de 45 segundos mais de 95% deles foram capazes de identificar que se tratava de um memorando, cuja finalidade era requisitar ajuda para realizar a avaliação técnica de uma aeronave. É provável que para um sujeito não membro da comunidade aqueles dizeres não passassem de uma escrita indecifrável. Assim, crê-se que uma comunidade discursiva caracteriza-se como um grupo relativamente fechado, com características bastante peculiares. Contudo, como afirma Swales (2009, p. 213), “apesar do esforço em definir e estabelecer critérios, o conceito ainda não satisfaz. Um termo de arte continua sendo um termo de arte”. No entanto, há de se convir que:
Sejam quais forem as nossas inclinações acadêmicas, nossa deformation proffessionelle, independentemente de nos interessarmos por comunicação acadêmica ou comunicação nos lugares de trabalho, se nosso interesse é monocultural ou transcultural, à parte nosso envolvimento com sociologia ou retórica, escrita ou literatura, etnografia, análise do discurso, redação ou Inglês como Segunda Língua (ESL), o conceito de comunidade discursiva estabelece, embora de maneira imprecisa, uma rede de conexão interdisciplinar (SWALES, 2009, p. 214).
A par dessas discussões, convém trazer à tona um dos modelos de análise de gêneros proposto por Swales, o qual ele nomeou de modelo CARS (Create A Research Space) e que dá conta, principalmente, da análise de gêneros mais formatados, tais como aqueles do mundo acadêmico e profissional, conforme inúmeras pesquisas têm comprovado. É conhecida a pesquisa desenvolvida por Swales (1990), a qual deu origem ao modelo referido, com base em um corpus composto de 48 introduções de artigos de pesquisa, cujos resultados apontaram uma regularidade de quatro movimentos retóricos (moves) nesse gênero: (i) estabelecer o campo da pesquisa; (ii) sumarizar pesquisas prévias; (iii) preparar a presente pesquisa; (iv) introduzir a presente pesquisa.
Entretanto, conforme Silveira (2005), esse modelo baseado em quatro movimentos retóricos foi modificado pelo próprio Swales, em virtude da imbricação dos movimentos (i) e (ii), o que estava dificultando o trabalho de outros analistas. Diante disso, Swales revisou o modelo e reduziu-o para três movimentos; valendo-se de uma analogia ecológica, o autor subdividiu-os em passos (steps) opcionais e obrigatórios, que revelam como as informações são distribuídas nas introduções dos artigos. É bem verdade que o modelo anteriormente exposto não funciona como uma “camisa de força” para a análise de artigos de pesquisa, em função da maleabilidade dos gêneros. Não é sem propósito que os gêneros são tidos como tipos relativamente estáveis de enunciado, dada a sua flexibilidade nas comunidades de discurso em que circulam. Isso justifica a assertiva de que nem todas as introduções dos artigos de pesquisa apresentam essa organização retórica ou ainda que moves e steps podem variar na ordem em que aparecem.
Arrematando a discussão, corrobora-se que o modelo analítico de Swales mostrase fértil para a análise de gêneros, tanto do universo acadêmico e profissional, quanto para além desses, ressalvado com bom senso o fato de que o modelo pode não ser aplicável a todos os gêneros. Mesmo assim, a adaptação tem sido possível em alguns casos. Para Silveira (2005, p. 96), “essa adaptação é possibilitada pelo fato de o modelo priorizar a dimensão retórica, que é um fator importante em qualquer gênero”. Reiterase que uma das maiores contribuições do linguista britânico aos estudos de gêneros, em termos analítico-metodológicos e pedagógicos, seja esse seu modelo de análise de gêneros, que se caracteriza pela regularidade dos movimentos retóricos, com a força e a flexibilidade suficientes para ser aplicado nos mais variados contextos (BIASI-RODRIGUES; HEMAIS; ARAÚJO, 2009, p. 32).
Por outro lado, não menos importante que o modelo desenvolvido por Swales (1990) para a análise de gêneros é a metodologia empreendida por Bhatia (1993) para analisar os gêneros. Situando-se também na abordagem do Inglês para Fins Específicos, o trabalho do linguista indiano reveste-se de grande importância, principalmente no que toca os gêneros profissionais, embora não descarte os gêneros acadêmicos. Uma das perguntas norteadoras do trabalho de Bhatia (2009, p. 160, itálico no original) é: “por que os membros de comunidades discursivas específicas usam a língua da maneira como fazem?” A busca incessante pela(s) resposta(s) levou Bhatia a focar sua descrição nos usos da língua, para além de uma abordagem superficial apoiada nas formas linguísticas. Embora seja autor de uma metodologia própria, é inegável admitir que sua concepção de gênero é bastante influenciada pelo modelo de Swales; no entanto, cumpre observar que sua teoria tem particularidades, devidas, talvez, ao fato de Bhatia lidar com gêneros cujo teor é mais persuasivo (SILVEIRA, 2005).
Bhatia (1993, p. 17-22) argumenta que uma análise equilibrada de gêneros deve contemplar três tipos de orientação que são fundamentais para a sua compreensão: (i) uma orientação linguística, que deve privilegiar os traços linguísticos do gênero (gramaticais, lexicais, estilos, registros, aspectos discursivos e retóricos), com relevo para a questão do registro, tomando-o não em si e por si, mas, sobretudo, buscando compreender por que uma determinada variedade toma a forma que toma em determinados gêneros; (ii) uma orientação sociológica, cuja pretensão é possibilitar ao analista o entendimento de como um determinado gênero define, organiza e comunica a realidade social; corolário da visão de gênero como ação social defendida por Miller (2009), Bhatia (1993) destaca que os estudos sociológicos podem se tornar mais atentos aos usos que se fazem dos recursos linguísticos para fins sociais, ao passo que os linguistas podem adicionar a explanação sociológica às suas interpretações do uso da língua em contextos acadêmicos e profissionais; e (iii) uma orientação psicológica ou psicolinguística, que focaliza os aspectos táticos ou estratégicos da construção de gêneros – ponto que Bhatia (1993) considera subestimado por Swales (1990), na teoria deste. Aqui entram em cena questões referentes à estruturação cognitiva, às escolhas estratégicas individuais do escrevente, ao propósito comunicativo, dentre outras.
Obviamente, para se fazer uma análise de gênero não é preciso seguir essa ordem, visto que os aspectos linguísticos, sociais e psicológicos coexistem nos gêneros. Aliás, eles também não devem ser analisados isoladamente, mas sim como fazendo parte do gênero em sua inteireza, restando ao analista atentar para tais aspectos. Portanto, a sequência em que essas orientações aparecem acima tem apenas cunho didático. Em termos metodológicos, Bhatia (1993) apresenta uma proposta para a análise de qualquer gênero, organizada em sete passos: (i) colocar o texto-gênero num contexto situacional; (ii) levantar a literatura existente sobre o gênero em questão; (iii) refinar a análise contextual/situacional; (iv) selecionar o corpus; (v) estudar o contexto institucional; (vi) fazer a análise linguística; e (vii) coletar informações especializadas para a análise de gênero. Acerca da análise de gêneros, Bhatia (2009) afirma que essa teoria apresenta uma considerável base comum, visto que enfatiza: (i) o conhecimento convencionado do gênero; (ii) a versatilidade da descrição dos gêneros e (iii) a tendência para a inovação. Em primeiro lugar, no que diz respeito ao conhecimento convencionado, Bhatia diz que:
Os gêneros são definidos essencialmente em termos de uso da linguagem em contextos comunicativos convencionados, que dá origem a conjuntos específicos de propósitos comunicativos para grupos sociais e disciplinares especializados, que, por sua vez, estabelecem formas estruturais relativamente estáveis e, em certa extensão, até mesmo impõem restrições quanto ao emprego de recursos léxico-gramaticais (BHATIA, 2009, p. 161).
Partindo desse ponto de vista, o autor assegura que tal conhecimento convencionado se apresenta em função: (i) da recorrência de situações retóricas (contexto em que um dado evento comunicativo acontece); (ii) dos propósitos comunicativos compartilhados (relação mútua entre participantes de uma comunidade discursiva em particular); e (iii) das regularidades da organização estrutural (formas estruturais que delineiam um construto genérico). Curiosamente, o autor ilustra que as situações retóricas são tipificadas, a partir do exemplo da relação paciente/ginecologista. Com efeito, mesmo o médico tranquilizando a paciente, com voz gentil e suave, pedindo para ela relaxar o máximo possível, durante o exame, a situação não é confundida com um encontro sexual, mas entendida como um encontro médico, em virtude do contexto das consultas ginecológicas: hospital ou consultório, parafernália médica etc. Segundo Bhatia (2009, p. 163), isso evidencia que “as convenções dos gêneros são de grande utilidade para manter a atmosfera comunicativa e a ordem social desejáveis nas comunidades profissionais civilizadas”. De fato, a situação retórica acima exemplificada (consulta médica) tem propósitos comunicativos compartilhados de forma óbvia (a paciente vai ao ginecologista porque deseja consultar-se, diagnosticar possíveis problemas de saúde, prevenir-se de problemas futuros etc.), o que justifica o emprego de um léxico específico pelo médico (“relaxe”, “serei o mais delicado que puder”), sem que ele seja mal interpretado.
É válido considerar também que, embora os gêneros sejam formas sociais padronizadas em função da recorrência, eles são construtos versáteis. A compreensão de tal versatilidade exige que se considere: (i) texto e contexto em sentido estrito; (ii) o uso que as pessoas fazem da linguagem e o que torna isso possível; e (iii) língua e cultura, em sentido amplo. Torna-se necessário esclarecer que essa versatilidade dos gêneros, na visão de Bhatia (2009), toma como critério privilegiado o propósito comunicativo ligado a uma situação retórica específica, o que justifica a descrição de gêneros em níveis, ora mais específicos, ora mais generalizados. Dito de outra maneira, é o propósito comunicativo, um conceito também muito versátil na opinião do autor, que garante a identificação de um gênero em particular ou de uma constelação de gêneros, entendida como um agrupamento em que os gêneros “são pouco discerníveis em termos de propósitos comunicativos e mais em termos de meio de discurso” (BHATIA, 2009, p. 165).
A respeito da tendência para a inovação dos gêneros, cumpre esclarecer que, embora a relativa padronização dos artefatos genéricos seja fundamental para manter a sua integridade na comunidade discursiva em que circula, é verdade também que eles são altamente maleáveis, plásticos e, por isso, sujeitos à inovação e à mudança. Essa dinamicidade, aparentemente contraditória quando relacionada ao caráter convencional dos gêneros, ratifica a ideia de que eles são entidades complexas, haja vista a explosão da tecnologia informacional e dos recursos multimídia, que têm acelerado o surgimento, a transmutação e, até mesmo, o desaparecimento de inúmeros gêneros. Nesse sentido, é coerente pensar com Bathia (2009) que os gêneros se misturam e se imbricam o tempo todo sem que muitas vezes se perceba. Tal hibridização é explorada pelos membros mais experientes da comunidade discursiva, os quais, para atingir os efeitos pretendidos, baseiam-se no que já foi estabelecido dentro da comunidade, ou, como afirma o próprio Bhatia (2009, p. 170), “o aspecto decisivo em tais associações é que elas comunicam melhor no contexto daquilo que já é familiar”.
Para efeito de exemplificação, tome-se um artigo de pesquisa cujo título seja: “Blog meu, blog meu, existem alunos mais conectados do que os meus?”. A princípio, é possível considerar o enunciado destacado como altamente criativo e inovador, porém não se pode esquecer de que, em tal contexto, a significação desse enunciado só se completa quando relacionada àquilo que é familiar ao leitor, pois “é a experiência que lhes confere o efeito desejado. [...], se não houver familiaridade com o original, o valor da inovação se enfraquece” (BHATIA, 2009, p. 170). Nesse caso, a construção dos sentidos deve levar em consideração o clássico conto Branca de Neve e os sete anões, cuja personagem, a rainha feiticeira, formulava sempre esta pergunta – “Espelho meu, espelho meu, há no mundo alguém mais bela do que eu?” – para o espelho mágico, a fim de manter, a todo custo, sua beleza soberana no reino. Tais considerações corroboram a discussão de que “o escritor de gêneros hábil utiliza o que é convencionalmente disponível em uma comunidade discursiva para promover seus próprios e sutis objetivos” (BHATIA, 2009, p. 170).
A bem dizer, em seu clássico Analysing Genre: language use in professional settings, Bhatia (1993, p. 40) já afirmava que “explorar as regras e as convenções em nome da criatividade e da inovação é bom, mas é muito melhor fazer isso depois que se tem desenvolvido pelo menos uma boa compreensão, senão um bom domínio sobre as convenções”. É útil esclarecer que essa tendência natural dos gêneros à imbricação e à mistura, fenômeno que tem sido referido por alguns como “falsos gêneros”, configurase em razão de os gêneros servirem a mais de um propósito, ou melhor, a diferentes finalidades. É dessa forma que um gênero pode ter a forma de um e a função de outro. Para o linguista indiano,
seja qual for a explicação, os gêneros muito dificilmente servem a propósitos únicos; eles apresentam um conjunto de propósito, mas esse conjunto muito frequentemente se torna um misto de propósitos complementares. Não será errado alegar que esses mesmos propósitos apresentam ‘valores genéricos’, caso se possa identificá-los separadamente (BHATIA, 2009, p. 171).
Outro ponto a se ressaltar na teoria de Bhatia é a relação que ele estabelece entre gênero e autoridade. O autor enfatiza que “os gêneros derivam sua autoridade das convenções, que se baseiam na crença de que todas as formas discursivas, especialmente aquelas usadas em contextos institucionalizados, são socialmente determinadas” (BHATIA, 2009, p. 178). E, mais adiante, completa: “como outras formas de discurso, os gêneros são socialmente construídos e, mais ainda, intimamente controlados pelas práticas sociais” (BHATIA, 2009, p. 179). Diante disso, não se pode negar que os gêneros refletem as relações de poder estabelecidas na sociedade. Em outras palavras, só exploram, interpretam e inovam os gêneros aqueles membros legitimados nas comunidades discursivas, os quais já detêm conhecimentos prévios para regular os construtos genéricos, preservando-lhes a sua integridade. A título de ilustração, o autor recorre ao mundo acadêmico, destacando que um artigo de pesquisa, para ser submetido a um periódico, passa por no mínimo dois mecanismos que asseguram a sua integridade genérica: a revisão em pares e a intervenção editorial. E, como prova de autoridade e poder, ele ressalta que as comissões editoriais tendem a emitir parecer favorável aos artigos que têm a ver com suas respectivas áreas de pesquisa; caso contrário, os artigos serão desencorajados ou até mesmo rejeitados. Além disso, a equipe editorial goza de todo o poder inimaginável para manter a integridade do gênero em tela. Tais atitudes elucidam a forte “função censora das comunidades discursivas” (BHATIA, 2009, p. 188).
À parte os conflitos e as tensões – que são normais em qualquer comunidade de discurso –, os gêneros possibilitam uma relação de aproximação entre os membros da comunidade, pois “o uso recorrente de tais formas discursivas cria solidariedade entre os membros, conferindo-lhes sua arma mais poderosa para manter os estranhos à comunidade a uma distância segura” (BHATIA, 2009, p. 183). Sob esse ponto de vista, é pertinente dizer que os gêneros típicos de uma determinada comunidade discursiva fazem dela um reduto próprio, com suas normas, seus valores, suas particularidades, ou seja, sua força controladora.
5 Os Estudos Retóricos de Gêneros
A perspectiva dos Estudos Retóricos de Gêneros (Rhetorical Genre Studies) emerge no seio da Nova Retórica norte-americana, uma revitalização da Retórica Clássica com suas características próprias, cujos propósitos se voltam para o ensino da composição (produção textual), especialmente para falantes nativos de inglês. Essa abordagem caracteriza-se por ser uma perspectiva teórica que, a despeito de considerar o texto interessante, ocupa-se essencialmente de procurar entender as situações comunicativas que tecem o agir social; nesse sentido, o gênero vai muito além dos seus componentes linguístico-discursivos, sendo compreendido como uma espécie de acordo social. Dois autores notabilizam-se nesse ramo do saber: a professora Carolyn Miller e o linguista Charles Bazerman, cujas obras são, de algum modo, bem difundidas na literatura linguística brasileira.
O cerne dos estudos de Carolyn R. Miller é a noção de gênero como ação social. Para a autora, “uma definição retoricamente válida de gênero precisa ser centrada não na substância ou na forma de discurso, mas na ação que é usada para sua realização” (MILLER, 2009, p. 22). Em outras palavras, a sua abordagem vai muito além da exploração do conteúdo e da forma do gênero, ao passo que aponta em sua definição para critérios pragmáticos. É dessa forma que ela rejeita explicitamente quaisquer abordagens de gênero que se concentrem apenas em taxonomias, visto que não passariam de uma visão reducionista, ou seja, puro formalismo. Assim, “a classificação do discurso será retoricamente sólida se contribuir para uma compreensão de como o discurso funciona – isto é, se reflete a experiência retórica do povo que cria e interpreta o discurso” (MILLER, 2009, p. 22). A propósito, convém afirmar que:
Como ação social, tanto um recado anotado para alguém que não está em casa, como uma mesma mensagem informando a mudança de endereço eletrônico, direcionada a pessoas com quem mantemos os mais variados tipos de distância ou proximidade social, são construídos com base em nossa experiência sociorretórica: estabelecemos propósitos comunicativos e cuidamos para que sejam alcançados, dando-lhes forma segundo nossa percepção de semelhanças, gerais ou específicas, entre a situação atual e outras situações que julgamos análogas. As regularidades na forma e conteúdo desses textos seriam reflexo de outros tipos de regularidades subjacentes, a indicar que, por exemplo, as práticas de produção e/ou recepção desses textos também apresentam regularidades passíveis de ser identificadas (CARVALHO, 2005, p. 136).
Nesse sentido, a visão milleriana não desmerece a importância das convenções da prática retórica. Dando exemplos, a autora argumenta que discursos inaugurais, elogios fúnebres, discursos jurídicos e outros semelhantes têm formas convencionais porque surgem em situações com estruturas e elementos semelhantes e porque os retores respondem de modo semelhante, tendo aprendido de um precedente o que é apropriado e que efeitos suas ações provavelmente terão sobre outras pessoas. Logo, os gêneros são tomados como “artefatos culturais” que constituem uma classe aberta, com novos membros evoluindo e velhos membros decaindo (MILLER, 2009, p. 25), o que justifica sua natureza instável. As noções de recorrência e ação retórica são consideradas basilares nessa concepção, porquanto “o genêro, dessa maneira, torna-se mais que uma entidade formal; ele se torna pragmático, completamente retórico, um ponto de ligação entre intenção e efeito, um aspecto da ação social” (MILLER, 2009, p. 24). A proposta de Miller converge para levar os estudos dos gêneros a fundo, com uma veia etnometodológica, aberta e pragmática. No dizer dela mesma, “essa abordagem insiste que os gêneros ‘de facto’, os tipos para os quais temos nomes na linguagem cotidiana, nos dizem algo teoricamente importante sobre o discurso” (MILLER, 2009, p. 28). Fundamental também na teoria de Carolyn Miller é o conceito de situação retórica, pois:
o que recorre não pode ser uma configuração material de objetos, eventos e pessoas, tampouco pode ser uma configuração subjetiva, uma ‘percepção’, porque essas também são únicas de momento a momento e de pessoa a pessoa. A recorrência é um fenômeno intersubjetivo, uma ocorrência social e não pode ser entendida em termos materialistas (MILLER, 2009, p. 30).
Assim, não se pode deixar de mencionar que, para essa compreensão, é preciso perceber ainda dois outros conceitos basilares na teoria de Miller: exigência e motivo. Embora sejam termos correlatos, de alguma forma, eles apresentam certa tensão. No entanto, o que é relevante para esta discussão é compreender que “a exigência tem que estar localizada no mundo social, e não numa percepção privada nem numa circunstância material” (MILLER, 2009, p. 32). Portanto, vê-se que a abordagem da autora vai além do individual, considerando a exigência como um propósito retórico de fato e não como a mera intenção individual do sujeito falante/escrevente. Por isso, a exigência fornece ao retor uma maneira socialmente reconhecível para realizar suas intenções conhecidas. E a exigência precisa ser vista não como a causa da ação retórica nem como a intenção, mas como motivo social.
Partindo da noção de recorrência das situações retóricas, sempre motivadas socialmente, cumpre dizer que, em função das similaridades com as quais os sujeitos se deparam, vão-se criando tipos e armazenando-se na memória discursiva – como se formassem um estoque de conhecimentos –, ou seja, a tipificação. Assim, os sujeitos relacionam experiências o tempo todo: o novo só se torna familiar porque se reconhece semelhanças relevantes com o já conhecido. Diante dessas ações tipificadas, passa-se a usar os gêneros retóricos tipificados, obviamente. É como se as situações recorrentes “convidassem” os interactantes a utilizar determinados gêneros. É assim que se veem, rotineiramente, jogadores instruindo novatos num jogo, professores dando aulas, mães contando histórias para seus filhos, fregueses fazendo pedidos por telefone, alunos de pós-graduação defendendo dissertações e teses, pesquisadores participando de bancas de defesas, crianças participando de rituais religiosos e assim por diante.
Por um lado, a ideia de compartilhamento desses gêneros tipificados é indispensável para o engajamento social, caso contrário seria difícil manter a comunicação e a ordem social; por outro lado, convém destacar que esses mesmos gêneros também evoluem – ainda mais se se pensar numa era de instabilidades constantes como o mundo atual –, embora o estoque de conhecimentos dos sujeitos seja bastante estável. Com efeito, os gêneros são reconhecidos porque se fundam em situações recorrentes; por conseguinte, são compreendidos como entidades completas: uma conferência, um elogio fúnebre, um manual técnico e assim por diante. Entretanto, urge ressaltar o componente social na definição de gênero, já que ele se refere a uma categoria convencional de discurso baseada na tipificação em grande escala da ação retórica; como ação, adquire significado da situação e do contexto social em que essa situação se originou. Dessa concepção, decorre que os gêneros são práticas sociais; por conseguinte, a realização de tais práticas evidentemente baseia-se nas convenções do discurso, as quais são estabelecidas pelos membros da sociedade como forma de agir conjuntamente.
Miller (2009), em outro artigo, – intitulado Comunidade retórica: a base cultural dos gêneros – cita alguns exemplos dessa plasticidade dos gêneros, recorrendo a pesquisas já realizadas por outros estudiosos. Ela se refere ao artigo de pesquisa como um gênero que muito mudou nos últimos trezentos anos; destaca que o discurso dos tribunais norte-americanos no final do século XX apresenta semelhanças perceptíveis com o discurso das cortes na cultura ateniense (século IV a.C.); enfatiza que a encíclica papal contemporânea tem sua gênese nos documentos do Império Romano, assim como o discurso do rei dirigido ao parlamento deu origem ao gênero discurso inaugural dos presidentes eleitos dos Estados Unidos. Segundo a autora:
aquilo que aprendemos quando aprendemos um gênero não é apenas um padrão de formas ou mesmo um método de realizar nossos próprios fins. Mais importante, aprendemos quais fins podemos alcançar: aprendemos que podemos elogiar, apresentar desculpas, recomendar uma pessoa para outra, assumir um papel oficial, explicar o progresso na realização de metas. Aprendemos a entender melhor as situações em que nos encontramos e as situações potenciais para o fracasso e o sucesso ao agir juntamente. Como uma ação significante e recorrente, um gênero incorpora um aspecto de racionalidade cultural (MILLER, 2009, p. 44).
Diante disso, Miller toma o gênero como um constituinte específico da própria sociedade, uma vez que é apontado como fundamental para organizar a estrutura comunicativa; além do mais, ele é uma das estruturas de poder que perpassam a vida institucional. Logo, pensar gênero, na perspectiva da autora, é pensar um aspecto da comunicação situada que é capaz de reprodução, com regras, tipificações sociais, exigência recorrente, restrições, num dado espaço-tempo concreto. Isso posto, convém esclarecer que a autora não está dando primazia aos aspectos estruturais em detrimento da ação social; ao contrário, ela entende que a estrutura, ou forma, é um aspecto constituinte da ação e que a ação é o aspecto principal. Ressalta também que, embora as estruturas sejam o que se reconhece como constituintes da sociedade, pois é o que é reproduzível, a ação é o que é significativo, e é na ação que se cria o conhecimento e a capacidade necessária para reproduzir a estrutura.
É assim que a ideia de comunidade retórica conecta-se ao que se vem discutindo, já que “não podemos compreender completamente os gêneros sem uma compreensão mais profunda do sistema comunal do qual são constituintes, sem explorar mais detidamente a natureza da coletividade” (MILLER, 2009, p. 53). No dizer da autora, uma comunidade retórica não se centra em coletividades taxonômicas – entendidas como grupos que têm similaridades e talvez até crenças compartilhadas, porém sem inter-relação real, tal como o grupo de pessoas que possui passaporte britânico – nem em coletividades relacionais, isto é, grupos cujos membros têm relações reais uns com os outros, por meio das quais acontece o compartilhamento ativo. Negando essas duas concepções, a autora propõe uma comunidade com um terceiro status: o virtual. Assim:
Uma comunidade retórica, proponho eu, é apenas essa tal entidade virtual, uma projeção discursiva, um construto retórico. É a comunidade tal qual é invocada, representada, pressuposta ou desenvolvida no discurso retórico. É constituída por atribuições de ações retóricas articuladas, características, gêneros de interação, modos de realização, que inclui o de reproduzir a si mesma. Do mesmo modo que as estruturas de Giddens, as comunidades retóricas ‘existem’ nas memórias humanas e nas suas instanciações específicas em palavras: não são inventadas do zero, mas persistem como aspectos estruturadores de todas as formas de ação sociorretórica. Como os gêneros, as comunidades retóricas ‘existem’ em uma hierarquia discursiva, não no espaço-tempo; elas existem, contudo, em um nível cumulativo muito mais elevado do que os gêneros (MILLER, 2009, p. 55).
De forma ilustrativa, a pesquisadora norte-americana exemplifica que essas comunidades não devem ser procuradas demográfica ou geograficamente: nas salas de aula, nas forças-tarefa civis, nos grupos que cultivam um hobby, nos congressos acadêmicos. O que é significativo nessa concepção de Miller é que uma comunidade retórica sempre deverá ser vista como um lugar de conflitos, tensões, contrassensos, (des)acordos e contenção. Todavia, na visão de Miller (2009, p. 57-58), o que sustenta tal comunidade são estes três elementos: 1) o gênero; 2) a metáfora ou figuras de uma forma geral; e 3) a narrativa. O primeiro impõe estrutura a uma dada ação no espaçotempo; o segundo estabelece conexões que de outra forma não podem ser feitas; o terceiro impõe inteligibilidade a eventos passados. Aliás, “os gêneros não apenas ajudam pessoas reais, em comunidades espaço-temporais, a fazer seu trabalho e realizar seus propósitos; eles também ajudam as comunidades virtuais – as relações que carregamos em nossas mentes – a reproduzir e reconstruir a si mesmas para continuarem suas histórias” (MILLER, 2009, p. 58).
Dentro dos Estudos Retóricos de Gêneros, a visão de Bazerman (2006) dialoga, de algum modo, com a perspectiva de Miller (2009), especificamente no que concerne aos processos de tipificação e à abordagem de gênero como ação social. O autor enfatiza a relevância dos gêneros para as práticas de letramento. É nessa direção que, para ele, o conceito de gênero “pode nos falar da mente, da sociedade, da linguagem e da cultura e até da organização e do funcionamento das leis e da economia, como também de muitos outros aspectos da vida letrada moderna” (BAZERMAN, 2006, p. 10). Não é sem propósito que tal visão prescinde de uma abordagem puramente formal de gênero, considerando-o uma ação tipificada pela qual se pode tornar as intenções e os sentidos inteligíveis para outros. Pensar gêneros é pensar formas de tipificação social imbuídas de agência, já que se está falando em ação social e, portanto, não cabe aqui a ideia de sujeito passivo. Assim, no dizer do pesquisador norte-americano:
Gêneros não são apenas formas. Gêneros são formas de vida, modos de ser. São frames para a ação social. São ambientes para a aprendizagem. São os lugares onde o sentido é construído. Os gêneros moldam os pensamentos que formamos e as comunicações através das quais interagimos. Gêneros são os lugares familiares para onde nos dirigimos para criar ações comunicativas inteligíveis uns com os outros e são os modelos que utilizamos para explorar o não familiar (BAZERMAN, 2006, p. 23).
O autor adverte que o conceito de gênero em língua inglesa surge na arena discursiva da arte. Ao mesmo tempo, critica a abordagem desse conceito no campo dos estudos literários que, numa visão normativa, tem dado mais atenção às questões puramente textuais e de mera contemplação que às sobre as relações sociais, embora reconheça que, depois dos estudos de Bakhtin e de outros teóricos, essa visão tem se alargado e incorporado uma preocupação com o histórico e com o psicossocial. Ancorada nos desenvolvimentos da linguística, da retórica, da psicologia e da sociologia, a concepção de gênero de Bazerman extrapola substancialmente essa visão reducionista e formalista que o autor critica, pois “os gêneros, da forma como são percebidos e usados pelos indivíduos, tornam-se parte de suas relações sociais padronizadas, de sua paisagem comunicativa e de sua organização cognitiva” (BAZERMAN, 2006, p. 28). Eis aqui um diálogo claro com a visão milleriana de gêneros como ações retóricas tipificadas baseadas em situações recorrentes; além disso, não descarta o papel das agências na comunicação discursiva.
Na ótica do autor, hoje os leitores lidam com textos em que é provável que o único contexto que se acha para eles seja em sua relação com outros textos, ou seja, a intertextualidade. Em geral, não se recebe muitas dicas do ambiente físico, material ou social para orientar na sua interpretação. Gêneros podem ajudar os leitores/escreventes nessa confusão ao assinalar a situação e a ação, projetando o contexto invisível. Ainda segundo o autor, os gêneros se constituem em verdadeiros habitats, na medida em que definem espaços sócio-historicamente. Portanto, Bazerman (2006) esclarece que o que emerge dos vários estudos, revelados por essas investigações, é que os gêneros constituem um recurso rico e multidimensional que ajuda a localizar a ação discursiva em relação a situações altamente estruturadas. O gênero é apenas a realização visível de um complexo de dinâmicas sociais e psicológicas. Ao compreender o que acontece com o gênero, porque o gênero é o que é, percebem-se os múltiplos fatores sociais e psicológicos com os quais os enunciados precisam dialogar para serem mais eficazes.
6 Considerações finais
Este artigo encetou uma introdução a três tradições de estudos e pesquisas sobre gêneros, com o devido cuidado de esclarecer que se constituem em três lugares teóricos distintos. Na verdade, cada um deles foi gestado a partir de perspectivas diferentes: (i) a perspectiva bakhtiniana (filosofia da linguagem); (ii) o inglês para fins específicos (o ensino instrumental de línguas); e (iii) os estudos retóricos de gêneros (a nova retórica). No entanto, cada vez mais, essas perspectivas têm dialogado, no sentido de se enriquecerem mutuamente. Não se pode negar que há muito mais um diálogo crescente entre essas teorias do que um jogo de oposições claras, conforme já afirmaram Meurer, Bonini e Motta-Roth (2005, p. 8). Ante esses cruzamentos teóricos, Bakhtin aparece como uma espécie de consenso, já que muito do que os pesquisadores anglófonos afirmaram posteriormente já havia sido pensado pelo filósofo russo no começo do século XX. Portanto, depreende-se que os conceitos de gênero discutidos neste trabalho assemelham-se pelo menos no que diz respeito à visão de que os gêneros estão imbricados às atividades sociais (esfera da comunicação humana, para o Círculo de Bakhtin; comunidades discursivas, no Inglês para Fins específicos (ESP); e comunidades retóricas para os Estudos Retóricos de Gêneros (ERG)). Outro aspecto comum concerne à visão de que os gêneros situam-se num contínuo jogo de forças entre estabilidade e variação (tipos relativamente estáveis de enunciados, forças centrípetas e forças centrífugas para o Círculo; propósitos comunicativos múltiplos, prototipicidade, para o ESP; ação social, recorrência, tipificação, para os ERG).
Referências
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Notas
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